Apontamentos para a
história de Viseu

Das vias romanas ao caminho de ferro

António João Cruz

As orientações geográficas de Cláudio ao séc. XVI

Diz-se frequentemente que Viseu nasceu de um cruzamento de vias romanas. José Coelho fala numa dúzia. Moreira de Figueiredo refere um número ainda maior, Amorim Girão e outros ficam-se por sete ou oito.

Hoje, muitos desses levantamentos surgem a nossos olhos como falhos de métodos e de rigor científicos e marcados por alguma confusão.

Esta reside sobretudo na importância atribuída às estradas identificadas.

É possível, o que não é o mesmo que provável, que na realidade tenha existido um tão elevado número de vias romanas com destino à povoação continuada por Viseu ou daí saídas. É possível. No entanto, a dimensão desse aglomerado e os testemunhos que dessas vias até nos chegaram, não torna razoável a atribuição de importância, ainda que implicitamente, a todos esses caminhos.

Os marcos miliários até agora encontrados, os melhores testemunhos arqueológicos de uma via romana, dispõem-se na região segundo um eixo que liga a estrada Olisipo-Cale-Bracara (Lisboa-Porto-Braga) com Emerita (Mérida). Por isso, dessa via podemos estar certos. Ou, segundo a terminologia que tem sido usada, temos apenas duas estradas confirmadas: a de Viseu a Mérida e a de Viseu à mais ocidental estrada do império romano (Jorge de Alarcão, Portugal Romano, Lisboa, Verbo. 1973, pp. 95-99).

O facto de apenas esta via estar arqueologicamente bem testemunhada e o facto de ela ter sido restaurada menos de um século depois de construída (cf. João L. Inês Vaz, "Introdução ao estudo de Viseu na época romana", in Beira Alta, XLII, 4, Viseu, 1983, pp. 741-742), quando em Portugal muitos trechos de vias romanas têm alcançado o séc. XX em muito bom estado de conservação, permitem atribuir a essa estrada uma importância considerável.

Esta conclusão é reforçada por um argumento de outra natureza: as regiões que põe em comunicação: Mérida, capital da província romana da Lusitânia, e o noroeste peninsular, região de forte densidade demográfica.

Estes indícios permitem distinguir as direcções então privilegiadas: a do litoral, sobretudo para NW, e a do interior da península, a SE.

Mais de mil anos depois, na Idade Média, essas são ainda direcções preferidas: para o litoral dirige-se a estrada para o Porto e, possivelmente, para Aveiro e em sentido oposto se encaminha a estrada para a Covilhã e, daqui, para Castelo Branco. No entanto, agora há uma procura de outros espaços: para Coimbra segue uma estrada de não menor importância (Humberto Baquero Moreno, A Acção dos Almocreves, Porto, Brasília Ed., 1979 e Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, 1.° vol., Lisboa, Verbo, 2.ª ed., 1978, p. 203) e, embora não seja, talvez, tão percorrida, uma outra dirige-se a Lamego, de onde se alcança a província de Trás-os-Montes (Fernando Castelo-Branco, "Subsídios para a história económica de Lamego", in Beira Alta, XXXVI, 3, Viseu. 1977, p. 374).

A coincidência de algumas das direcções não pode, contudo, esconder o que de diferente existe.

Na Idade Média, as estradas que levam a Viseu ou de Viseu partem têm, sobretudo, funções inter-regionais; põem Viseu em comunicação com outras regiões. No tempo de Cláudio ou no tempo de Adriano, a povoação de escasso significado demográfico e administrativo não admite uma tal situação. Essa povoação é então um ponto de passagem, apenas um pequeno aglomerado ao lado da estrada de Emerita a Bracara. A confirmação está na Cava de Viriato, uma fortificação levantada num descampado para protecção da estrada e de quem por ela passa (hipótese levantada por Orlando Ribeiro. "Em tomo das origens de Viseu", in Revista Portuguesa de História, XIII, Coimbra, 1971, p. 218).

Em meados do séc. XVI, a rota que atravessa a Beira e que se integra na rede da economia ibérica, função que antes a via romana sugere desempenhar, deslocou-se para Norte e para Este: Viseu é substituída por Lamego (cf. Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, 1.° vol., Lisboa, Dom Quixote, 1983, p. 313).

Um segundo aspecto convém notar: embora as aparências mostrem que algumas direcções resistem aos séculos, nada se sabe do que aconteceu durante um milénio. O que parece ser resultado de uma longa continuidade histórica pode ser, apenas, um reatar de velhos caminhos que, por causa das invasões bárbaras e da ocupação muçulmana, deixaram de ser percorridos. Pode ser não significa, no entanto, que assim tenha acontecido.

Cidades e rotas, do séc. XVIII ao séc. XX

Em meados de setecentos, as estradas ao redor de Viseu formam uma complicada teia. No entanto, orientam-se quase todas nas direcções NE-SW e E-W e poucas têm outras orientações (cf. João Bautista de Castro, "Roteiro terrestre de Portugal", in Mappa de Portugal Antigo, e Moderno, t. III, parte V. Lisboa, 1763, pp. 54-75).


As estradas em 1763 segundo João Bautista de Castro.

Entre tantas estradas, quais serão as verdadeiramente importantes?

Segundo um documento de 1835 são as que de Viseu saem para Coimbra, para Aveiro, para o Porto e para Lamego (Maximiano de Aragão, Viseu. Instituições Políticas, Porto, 1928, p. 507). A coincidência com o que se passa na Idade Média — à excepção da estrada para a Covilhã que agora não é mencionada — não pode ser ignorada. Pelo menos, durante três ou quatro séculos a estrutura viária em que Viseu se insere parece não se ter alterado de maneira significativa.

No entanto, são propostas então algumas mudanças, não no destino das estradas principais mas nos seus trajectos.

A estrada de Viseu a Coimbra liga directamente as duas cidades pela Foz-Dão mas a Câmara viseense é de opinião que se deveria preferir atravessar o Vale de Besteiros e entroncar na estrada Porto-Coimbra. Ganhariam tempo os correios, passariam a ter as cidades do Porto, de Aveiro e de Coimbra acessos fáceis ao centro da Beira, ao Vale de Besteiros e ao Mondego. Não perderia a importância, no entanto, a estrada pela Foz-Dão: por ser toda em terra e sem encontrar serras ou passagem arriscadas, por ela se deveria continuar a fazer o abastecimento da Beira e a exportação de seus vinhos, aguardentes e cereais.

A estrada para Lamego, por onde são conduzidos muitos cereais da região de Vila Nova de Paiva, está em péssimo estado. É claro que se deveriam fazer alguns consertos. Mas, na proximidade dos rios, quando a estrada os transpõe, especial atenção deveria ser prestada pois com algumas obras o percurso poderia ser encurtado de algumas léguas.

A do Porto, caminho de almocreves, que atravessa a serra da Gralheira, é de mais difícil conserto. Talvez por isso se devesse preferir algumas variantes, das quais existem já troços bastante cuidados (M. Aragão, op. cit., pp. 507-510).

Prenúncio das obras profundas que no pais se iniciam poucos anos depois, muitas das quais ficaram ligadas ao fontismo?

Certo é que algumas dessas propostas são aceites. Em 1868 as estradas de 1.ª ordem que convergem para Viseu são a que vem de Aveiro por Oliveira de Frades e Vouzela, a que saindo da estrada Lisboa-Porto, passa pela Mealhada, por Mortágua, por Santa Comba-Dão e por Tondela e a que vem da Guarda por Celorico (ponto de cruzamento de outras importantes estradas), Fornos e Mangualde (outro nó de estradas) (cf. Carlos Ribeiro e Nery Delgado, Relatório Ácerca da Arborisação Geral do Paiz, Lisboa, 1868, mapa). Portanto, a estrada até Coimbra pela Foz-Dão dá lugar à estrada que a vereação viseense propunha 33 anos antes e o Porto alcança-se pela estrada que segue para Aveiro e depois pela que une Lisboa e Porto, ou seja, uma das variantes possíveis, em 1835, ao caminho pela serra da Gralheira.

Então, há 120 anos, está já estabelecida a hierarquia de hoje, quando a melhor estrada que sai de Viseu é a que se dirige a Coimbra pelo percurso de 1868 e quando está em construção a via rápida Aveiro-Viseu-Vilar Formoso com ligação à Guarda.

Em 1929 essas direcções estão confirmadas pela rede de camionagem e pelo caminho de ferro, tal como em 1940 (cf. António Lopes Vieira, "Os Transportes rodoviários em Portugal, 1900-1940", in Revista de História Económica e Social, 5, Lisboa, 1980, p.69 e 89).

1940, 1929, 1868, hoje — é indiferente. A rede viária é a mesma: Viseu-Coimbra, Viseu-Aveiro, Viseu-Porto, Viseu-Guarda. A ligação com Lamego, antes importante, está agora reduzida a uma importância secundária. Depois de, por momentos breves, em 1835, a capital de distrito passar de Viseu a Lamego (cf. Manuel Gonçalves da Costa, Lutas Liberais e Miguelistas em Lamego, Lamego, 1975, pp. 138-144) as duas cidades aparecem de costas voltadas, separadas pela rede viária e separadas pela legislação administrativa: Viseu na Beira Alta, Lamego em Trás-os-Montes e Alto Douro.

Fatalidades?

Obstáculos e incentivos

Poder-se-ão justificar as preferências geográficas das estradas, da Idade Média a hoje, sempre ou quase, orientadas nas mesmas direcções, as das quatro ou cinco cidades mais próximas de Viseu? Ou, pelo menos, poder-se-ão compreender?

Em primeiro lugar há que procurar os obstáculos e os incentivos geográficos, serras e planaltos, rios, a dureza do solo, a chuva e a neve.

Viseu situa-se num planalto granítico inclinado para o Mondego e limitado pelas serras da Lapa, Leomil, Montemuro, Gralheira, Caramulo e Buçaco e pela Cordilheira Central. Planalto sulcado por rios, é penetrando pelos vales do Mondego e do Dão, do Vouga e do Paiva que se diminuem os acidentes do relevo. Em relação a Viseu, essas direcções definem-se, respectivamente, pelas orientações SW, W e NW. O Mondego dá origem a uma outra entrada, pela bacia de Celorico da Beira, numa direcção mal definida, que tanto pode ser E como SE.

Estas são precisamente as direcções que tomam as principais estradas. Mais: as entradas geográficas que mais se destacam, as duas primeiras, dão origem às estradas que com mais insistência são referidas como importantes.

A ligação com Lamego ilustra precisamente o contrário. Embora Lamego seja a cidade mais próxima de Viseu, a estrada que une os dois aglomerados tem de transpor o obstáculo que é a serra, obstáculo da altura e do relevo, obstáculo da neve, obstáculo do nevoeiro. Ainda neste século, fazer essa viagem era partir para o cabo do mundo (cf. Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental, Lisboa, Bertrand, 1983, pp. 9-14). Das estradas importantes esta é, naturalmente, a estrada menos importante ou não é sequer incluída nesse grupo.

Em contrapartida, a preferência pela direcção SW, a direcção de Coimbra, em parte justificada pela topografia, tem um outro incentivo geográfico: a navegabilidade do Mondego a partir da Foz-Dão. Antes do caminho de ferro da Beira Alta, terminado em 1882, quando não existe um meio de transporte terrestre adequado às grandes quantidades e às grandes distâncias, a facilidade que o rio oferece é aproveitada nas ligações com Coimbra e com o mar (cf. José Pinto Loureiro, Concelho de Nelas, 2.ª ed., Nelas, 1957, p. 211).

Se os aspectos geográficos condicionam de maneira clara as orientações das estradas viseenses, os factores económicos são como uma arma de dois gumes.

As relações económicas entre Viseu e o Porto estão desde há alguns séculos documentadas: por exemplo, no séc. XVII é do Porto e de Aveiro o peixe fresco que em Viseu se come (Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955, p. 82). No entanto, é porventura no séc. XIX que elas se intensificam. Então Viseu e grande parte da Beira estão na zona de influência do Porto (Fernando Piteira Santos, Geografia e Economia da Revolução de 1820, 3.ª ed., Lisboa, Publ. Europa-América, 1980, p. 45). Alguns dos edifícios da praça D. Duarte, casas altas e estreitas, lojas no rés-do-chão, janelas largas e sacadas, edifícios que reproduzem um dos modelos portuenses (Orlando Ribeiro, "A rua Direita de Viseu", in Geographica, 16, Lisboa, 1968, pp. 57-58), são testemunho não apenas dessa relação económica mas também de uma certa afinidade de ideias e de mentalidades que apenas contactos frequentes podem justificar. Outro indício de natureza diferente é o que nos mostra que em meados de oitocentos, quando a Feira Franca de Viseu é uma das maiores de Portugal, dos comerciantes que vêm de fora do concelho 40 % são do Porto (trabalho em preparação sobre a Feira Franca no séc. XIX).

Porém, o que é causa e o que é consequência? Quem toma vantagem: as estradas ou os interesses económicos? Ou será que causa e consequência são as estradas e a economia a um mesmo tempo?

Os incentivos culturais não são menos ambíguos na relação que estabelecem com a rede viária.

Enquanto o Porto estende até Viseu a sua área de influência económica, Coimbra, mais modesta neste aspecto, tem por si a posição de contacto e de comunicação entre os planaltos e as montanhas do massiço central e a orla de planícies, vales extensos e colinas por onde passa a estrada Lisboa-Porto (Orlando Ribeiro, Le Portugal Central, Lisboa, 1949, pp. 169-170) e tem, sobretudo, a Universidade para onde vão os filhos segundos e terceiros da nobreza viseense e os filhos dos homens honrados e ricos.

Também aqui o problema de saber quem tem a iniciativa se pode colocar. No entanto, talvez não seja uma questão importante, nem aqui nem ali. São homens que atraem os outros homens — esta é a verdade. Por isso as estradas que saem de Viseu dirigem-se aos aglomerados mais próximos e demograficamente mais importantes. No caso do Porto é o seu papel económico que é mais visível; no de Coimbra é a sua importância cultural que sobreleva as outras funções; em qualquer dos casos são os homens que estão por detrás.

Na reconstituição rapidamente esboçada da rede viária insistiu-se, talvez demasiado, na influência das cidades mais próximas de Viseu. Aparentemente elas surgem como uma meta. Em alguns casos isso será verdade. Noutros, contudo, a cidade que uma estrada põe em contacto com Viseu é apenas ponto de partida para outra cidade, e de cidade em cidade ou de vila em vila se faz um percurso por mais extenso que seja.

Apenas dois exemplos.

Embora na Idade Média as comunicações à distância sejam difíceis e morosas, em 1455 a Câmara viseense, por achar que a bandeira do município está demasiado rota, manda vir uma nova da Flandres (A. de Sousa Silva Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no Século XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, pp. 224, 561-562).

Quase um século depois, Vasco Fernandes, ao contrário de Jorge Afonso e outros pintores lisboetas, mostra conhecer a produção artística alemã, nomeadamente duas gravuras de Albrecht Dürer ou, pelo menos, obras nestas inspiradas (Dagoberto L. Markl, "Duas gravuras de Albrecht Dürer no painel 'Jesus em casa de Marta e Maria' atribuído a Vasco Fernandes", in História e Sociedade, 4-5, Lisboa, 1979, pp. 18-19).

Como seria isso possível se as estradas viseenses levassem apenas ao Porto, a Coimbra, a Aveiro, a Lamego e à Guarda? Se daqui, por estrada ou por mar, se não alcançassem outras cidades e outras gentes? Na primeira metade do séc. XVII julgava Botelho Pereira que por Viseu estar no interior estava fora dos rebates e sobressaltos dos portos de mar e fora do concurso de várias gentes e nações (op. cit., pp. 82-83). Pura ilusão!

Tempos, distâncias, velocidades

Antes das estradas de macadame, abertas em Portugal a partir de 1849, as estradas do "distrito — salvo raríssimas excepções — eram uma sequência de barrancos de tal ordem que nem para liteiras se prestavam todas" (Pedro Augusto Ferreira, Portugal Antigo e Moderno, 12.º vol, Lisboa, 1890, p. 1776).

Segundo o conselho da câmara viseense em 1835, às estradas devia dar-se uma forma abaulada de modo que a água das chuvas rapidamente escorresse para um e outro lado e as rodas dos carros deviam ser ferradas e sem pregos salientes (Maximiano de Aragão, Viseu. Instituições Políticas, Porto, 1921, p. 511), Porém essas medidas são insuficientes para as estradas se manterem em bom estado. Por isso, segundo o art.º 81 das posturas camarárias aprovadas a 10 de Dezembro de 1852, no concelho deveria um homem de cada fogo dar, por ano, dois dias de trabalho para o conserto dos caminhos e limpeza das fontes.

Por uma dessas estradas anteriores ao macadame viaja em 1834 o bispo D. Francisco Alexandre Lobo: "saí (de Viseu) pois a 13 de Abril por duas da tarde, encaminhei-me a Quintela de Azurara, em distância três léguas de mau caminho e cheguei quasi ao anoitecer" (D. Francisco Alexandre Lobo, Obras, Lisboa 3.º vol., 1853, p. 452). Portanto, demorou no percurso umas 6 horas, o que corresponde a uma velocidade de 0,5 léguas por hora.

Alguns anos depois, uma diligência percorre as 3 léguas da estrada de macadame entre Viseu e a vila do Banho em 3 horas (J. Augusto d’Oliveira Mascarenhas, Memória da Antiga Villa do Banho e Caldas de S. Pedro do Sul, Viseu, 1855, pp. 21-22). A velocidade é então de 1 légua por hora.

O duplicar de velocidade que estes exemplos mostram é significativo ou, pelo contrário, não pode ser generalizado? Como consequência da primeira hipótese, as estradas de macadame representam em relação às anteriores uma pequena revolução: tempos de idas e de vindas iguais apenas ao de uma só viagem, resposta a uma carta em metade do tempo, famílias separadas pela distância agora mais próximas, quadruplicado o espaço ao alcance de uma jornada.

Alguns indícios parecem confirmar essas mudanças: "as distâncias desaparecem, a humanidade agrupa-se", escreve-se no Jornal de Vizeu em 1866. Com a "facilidade de tais comunicações resulta em toda a parte, onde aparece alguma luz de civilização, o desenvolvimento do comércio". "Hoje escusado é fazer depósitos de víveres e de outros objectos necessários à vida. O comércio derrama-se por toda a parte. Em cada burgo, em qualquer aldeia, aparecem à venda as coisas mais precisas que se julgam para satisfação das muitas necessidades" (cit. em José Alves Madeira, "A Feira de S. Mateus há 115 anos", in Programa. Feira de São Mateus, Viseu, 1981).

Essa pequena revolução e a euforia que provoca pode ser melhor compreendida se notar-mos que antes as inovações introduzidas nas vias de comunicação e nos transportes têm poucas ou nenhumas consequências na velocidade: em 1743 o bispo D. Júlio Francisco de Oliveira viaja à mesma velocidade que o bispo D. Francisco Alexandre Lobo em 1834. 9 dias demorou de Lisboa a Viseu D. Júlio Francisco de Oliveira mas, diz Aragão, foi uma viagem com todas as comodidades: pausas regulares, para refeições e descanso, visitas, repouso à noite numa hospedaria ou numa casa oferecida. No penúltimo dia sai de Coimbra e gasta 5h15 até ao Luso e do Luso a Mortágua 4h30. No total percorre 6 léguas a uma velocidade média de 0,62 léguas por hora. No dia seguinte faz as 4 léguas entre Mortágua e Tondela em 8h30 e as 3 léguas entre Tondela e Viseu em 5h, portanto, respectivamente, à velocidade de 0,47 e 0,60 léguas por hora. No total desses dois dias de jornada, 13 léguas, 23h15, 0,56 léguas por hora (cálculos feitos a partir da narração de M. Aragão, Viseu. Instituições Religiosas, Porto, 1928, pp. 210-218).

Estas velocidades são as das viagens de homens importantes, homens que não abandonam facilmente determinadas comodidades e determinados hábitos. Estas são, por isso, velocidades mínimas.

No outro extremo estão as noticias, sobretudo as que dão conta de grandes acontecimentos.

A viagem que o bispo faz em 9 dias, a viagem de Lisboa a Viseu, faz o correio em 1835 apenas em 5 dias. Para o Porto o tempo é o mesmo (M. Aragão, Viseu. Instituições Políticas, pp. 509-510). No entanto, em 1640, a notícia da Restauração demora 6 dias a vir do Porto a Viseu, mas, em compensação, uma segunda notícia, expedida de Lisboa, gasta apenas 4 dias (Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, 5.º vol., Lisboa, Verbo, 1980, pp. 20-21).

Além dessas velocidades máximas há ainda as velocidades excepcionais.

Segundo Gomes Eanes de Azurara, "foi coisa maravilhosa que o Infante D. Henrique veio de Viseu aos paços da Serra em um dia e uma noute, que são quarenta léguas" (cit. em Jaime Cortesão, "O desígnio do Infante e as explorações atlânticas até à sua morte", in Damião Peres, História de Portugal, 3.º vol., Barcelos, Portucalense, 1931, p. 352). 40 léguas em 24 horas: 1,7 léguas por hora. Um dia para percorrer metade do espaço que D. Júlio Francisco de Oliveira faz em 9 dias e o correio em 5. Velocidade excepcional, não há dúvida.

Cronologicamente a seguir ao macadame a grande inovação é o caminho de ferro. Novas velocidades, novas sensações, um mundo que se estreita ainda mais. Quais foram as reacções em Viseu a esse novo meio de transporte? No início como se relacionou com os transportes já existentes? Quem viajava regularmente de comboio? Quais as sensações? Tais são algumas das questões a que um paciente estudo nos jornais viseenses da época poderia responder. Para nos ajudar a melhor compreender esses homens, o seu olhar das coisas, a sua visão do mundo. Mes quem mete mãos a esse trabalho?

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Das vias romanas ao caminho de ferro», A Voz das Beiras, 550, 27-6-1985, pp. 2, 6;551, 4-7-1985, pp. 2, 8; 552, 25-7-1985, pp. 5, 8; 553, 8-8-1985, pp. 2, 8.

Artigo em formato pdf (versão publicada)

Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.