Apontamentos para a
história de Viseu

Os hábitos alimentares:
transformações e permanências da Idade Média ao séc. XX

António João Cruz

Como penetrar nesse quotidiano quase sem história, quotidiano de lutas e de sabores, de saberes e de prazeres, a alimentação que todos os dias se repete? A dificuldade é esta: depois de levantada a mesa que testemunhos nos ficam da refeição acabada de tomar?

Em questões alimentares é a sociedade prisioneira de usos legados de geração em geração e que só raramente se alteram (Georges Duby, Guerreiros e Camponeses, Lisboa, Estampa, 1980, p. 29). Por isso, a etnografia, pode aqui dar a sua contribuição.

Ora, ainda há pouco, nas aldeias de mais tradicional viver, era o pão o suporte da alimentação. "Posto sobre a mesa, cada um o partia, a mãe ou o pai para todos, ao longo do dia para as crianças que sempre pedem pão. Pão e queijo. Pão e azeitonas. Pão tão só. "Pão e vinho anda o caminho" diz-se num ditado de muita verdade. Valorizava o caldo, caldo migado com sopas, ou enriquecia uma água de unto em casas mais pobres" (Alberto Correia, "O Ciclo do pão, Concelho de Sernancelhe", in Beira Alta, XL, 4, Viseu, 1981, p. 566).

Porem, de que é feito o pão?

Na Idade Média, na região de Viseu, os textos dos forais concedidos nos sécs. XII e XIII mostram uma produção, que por vezes se afigura equivalente de trigo, milho miúdo e centeio ou apenas destes dois (AH. de Oliveira Marques, Introdução à História da Agricultura em Portugal, 3.ª ed, Lisboa, Cosmos, 1978, p. 69). De trigo é o pão que comem as classes abastadas e de trigo é o pão que os enfiteutas põem na mesa, uma vez por ano, quando o padre celareiro do mosteiro de Salzedas os vai visitar (Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, "Pam de rua", in Elucidário, ed. de Mário Fiúza, reimpressão, Porto-Lisboa, Civilização, 1984, 2.º vol, pág. 461). De milho miúdo e de centeio, deste sobretudo, se faz o pão dos homens que trabalham: em 1532, segundo Rui Fernandes, leite, pão de centeio e carne às vezes é a ementa dos habitantes, da serra do Montemuro; em 1555 comem os lavradores da Beira mais pão de centeio que nas províncias do sul comem o de trigo, pois, diz Fernando de Oliveira, aquele é mais ruim e dá menos forças (Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2.ª ed., 4.º vol, Lisboa, Presença, 1983, pp. 7-9).

A par desses cereais come-se o pão de castanha. Refere Rui Fernandes que no séc. XVI, região de Lamego, nos anos estéreis de cereais, os pobres moem a "castanha e fazem dela pão, e é muito fartum e muito doce que chamam falacha" (cit. em V. M. Godinho, op. cit., p. 8). Ainda há pouco se podiam comprar na feira de Cinfães as falachas feitas em todo o concelho (J. Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, 6.º vol, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1975, p. 352). Ao abrir o séc. XVII, Manuel Severim de Faria refere que "na Beira são as castanhas o comum mantimento das gentes" (J. Veríssimo Serrão, Viagens em Portugal de Manuel Severim de Faria, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1974, p. 106).

Nos sécs. XVIII e XIX, na Beira o pão é sobretudo de milho, o milho grosso ou milho maiz, introduzido em Portugal no séc. XVI. Di-lo D. Luís da Cunha em 1736, di-lo António Henriques da Silveira em 1789, di-lo Rodrigues de Brito em 1803. Para a classe trabalhadora, meia broa e uma sardinha por refeição (referência em V. M. Godinho, op. cit., p. 7). Em 1906 em quase todo o distrito, os jornaleiros e os artesãos comem, por dia, 1 kg ou mais de pão de milho (Miriam Halpem Pereira, "Níveis de con sumo e níveis de vida em Portugal", in Política e Economia (Portugal nos séculos XIX e XX), Lisboa, Horizonte, 1979, p. 90).

No entanto, em anos difíceis voltam os outros cereais a serem consumidos. Nota-o Fr. Domingos Vieira, em 1871, quando refere que serve a aveia de pão em tempo de esterilidade (cit. em J. L. Vasconcelos, op. cit., p. 359). Mostra-o uma fonte viseense inédita: após as crises de 1767-70 e 1775, manifestadas por grandes aumentos dos preços do milho e do trigo, de novo cai o interesse, em Viseu, no centeio, no milho miúdo e no painço.

Esse mecanismo provavelmente surge também na introdução da batata na alimentação humana. Em 1803, segundo o testemunho de João Manuel de Campos Mesquita, datado de 1812, fez-se na Beira "muito geral" o cultivo da batata (cit. em Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal, Paris, Armind Colin, 1955, p. 301). No entanto, durante meio século são os animais quem a come. Em 1858, depois dos preços dos cereais terem duplicado em 1852 a 1857, aparece a batata pela primeira vez mencionada no livro de preços da Câmara, ao lado dos cereais, do vinho e do azeite, estes todos ai inscritos, pelo menos desde o século anterior, 1858 parece ser, por isso, o ano em que a batata ganha verdadeira importância nos hábitos alimentares viseenses.

A par destas transformações e desta permanência, substituição dos cereais utilizados no amassar dó pão e sua presença sempre sobre a mesa a par da batata que conquista peso só há pouco mais de um século, que outros alimentos nos surrem nestes séculos todos?

A acompanhar o pão está, quase sempre, o vinho. Nos sécss XII e XIII, do Douro ao Tejo, a vinha está por todo o lado (cf. Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XII.e et XIII.e Siècles, Paris, Centro Cultural Português, 1982, p. 180). Em 1900, domina completamente nas vizinhanças do Douro, nos bordos dos campos cultivados dos vales do Paiva e do Vouga cresce enlaçada às árvores, no Dão e em Besteiros dá a cor à paisagem (Filipe de Almeida Figueiredo, "Le sol arable et le climat", in Le Portugal au Point de Vue Agricole, Lisboa Imprensa Nacional, 1900, p. 75).

Amorim Girão, baseado nos livros de dízimos e de prazos do cabido da Sé de Viseu, dos séc.s XV e XVI, refere que ao redor da cidade os olivais predominam sobre todas as outras formas de exploração do solo (Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana, Coimbra, 1925, p. 55). A partir daí todas as corografias e todos os dicionários geográficos mencionam o azeite entre as produções locais, ao lado dos cereais e do vinho.

Como o aspecto da paisagem depende, entre outros factores da dieta tradicional (G. Duby, op. cit., p. 29), a partir destes testemunhos não é difícil vislumbrar a importância do vinho e do azeite na alimentação viseense.

NOTA: Este texto retoma e desenvolve o capítulo "As refeições de todos os dias" de "A demografia viseense (Sécs. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo", de minha autoria, publicado no último número da Beira Alta (XLIII, 3, 1984, pp. 487-517), agora posto à venda.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Os hábitos alimentares: transformações e permanências da Idade Média ao séc. XX», A Voz das Beiras, 547, 6-6-1985, pp. 4, 8.

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