Apontamentos para a
história de Viseu

A exploração do espaço e o comércio antes da Restauração

António João Cruz

Em 1955 publicou a então Junta de Província da Beira Alta um texto da historiografia viseense há muito inédito: os Diálogos Morais e Políticos, escritos por um nobre, Manuel Botelho Ribeiro Pereira, entre 1630 e 1636.

É sobretudo aos bispos de Viseu que se refere o grosso volume e, por isso, é sobretudo sobre os bispos de Viseu que a sua investigação e o seu testemunho têm sido aproveitados.

Porém, ao longo da obra, aqui e ali, se refere à vida económica viseense. À falta de outros textos mais pormenorizados sobre a vida da cidade antes da Restauração e na ausência de investigação profunda nesse domínio empreendida no Arquivo Distrital e na Biblioteca Municipal, esse é um testemunho que não devemos desprezar.

É certo que o seu autor não é completamente insuspeito — porque é o louvor da cidade que está no seu ânimo. Mas, por certo, não foi esse o motivo que levou esse testemunho ao esquecimento. O desprezo da historiografia viseense por determinados problemas, eis antes o que lhe deve estar por detrás.

Na companhia de Botelho Pereira procuremos então conhecer alguns aspectos da economia viseense anterior à Restauração. Será necessário, por vezes, juntar ao seu testemunho outros testemunhos, contemporâneos para o quadro não ficar tão vazio, para podermos passear na cidade de casas escuras (Joaquim Veríssimo Serrão, Viagens em Portugal de Manuel Severim de Faria. 1604-1609-1625, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1974, p. 105) e procurar com o olhar os seus habitantes, quase 4500 homens e mulheres em Viseu e arrabaldes (p. 137). Mas, mesmo assim, será o seu testemunho a guiar-nos.

Apenas uma advertência: perdoem-se-lhe os excessos nascidos na vontade de ver celebra: da a sua terra: onde se lê muito abundante ou terra como outras não há, leia-se, quase sempre, medianamente abundante ou terra como as outras.

O espaço limitado por algumas serras e montes, é sulcado por rios e ribeiros.

Todo o território das alturas "é muito sujeito a frio e neves e por o amor delas costumam os moradores destas terras andarem todos com sapatos de pau a que chamam tamancos" (J. V. Serrão, op. cit., p. 107).

Como é muito povoado de castanheiros, de que por toda a Beira há grande abundância", "são as castanhas o comum mantimento das gentes", em substituição do pão que não há (J. V. Serrão, op. cit., p. 106). Desse espaço vem para a cidade a lenha e o carvão, abundantes sobretudo nos montes que lhe ficam a légua e meia para Norte (p. 83).

Dos rios consome-se o pescado: os bordalos do Pavia, "em extremo gostosos", as bogas e as trutas do Vouga, as bogas e os barbos do Dão (p. 83) e as bogas e os bordalos do Troce (pp. 87-88). Das suas areias, principalmente das do Pavia, retira-se o estanho "em quantidade" e em bondade finíssimo", "de que El-Rei tira muito proveito e renda" e "de que se aproveitam as viaturas" (p. 82 e 140 e J. V. Serrão, op. cit., pp. 105). As suas águas fertilizam esse espaço (pp. 87-88) e, por isso, é ele "mui abundante de todas as cousas para sustentação da vida humana" (p. 63). Nas suas margens multiplicam-se as "frescas hortas" com "muita hortaliça" e cresce "grande quantidade de verde linho" (p. 139). Aos rios e ribeiros se deve a abundância de alimentos: "trigo, centeio, milho, vinho, azeite, castanhas, carnes de todo o género, aves, caça, frutas, legumes e hortaliça" (p. 82).

Esta abundância atrai a população. Por isso, "os lugares do seu termo são tão bastos que não há de uns a outros quarto de légua" (p. 81). Como consequência dessa densidade demográfica, os homens "não vivem todos muito ricos" (p. 81) e são "as terras limitadas" (p. 193). Além disso, estão "os lavradores carregados de pensões e tributos" (p. 193).

O comércio de quase todos esses géneros faz-se no mercado, a partir das sete horas da manhã (Alexandre de Lucena e Vale, Um Século de Administração Municipal. Viseu, 1605-1692, Viseu, sep. da Beira Alta, 1955, p. 67). Só aí os géneros alimentares podem ser vendidos mas só por quem tiver contrato ou obrigação na Câmara (inúmeras disposições em A.L. Vale, op. cit.).

A par das produções locais vende-se o peixe fresco trazido por almocreves, do Porto, de Matosinhos, de Vila do Conde, de Esposende, de Viana do Castelo e de Aveiro (p„ 82). Pela sua abundância diz Botelho Pereira que Viseu, "às vezes, parece mais porto de mar que sertão da Beira" (p. 82). Embora esse fluxo tenha bastantes tradições em Viseu (cf. Humberto Baquero Moreno, A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações, inter-regionais portuguesas nos fins da Idade Média, Porto, Brasília Editora, 1979), de tal modo que é "de a par de Viseu um dos almocreves de Gil Vicente ("Farsa dos Almocreves", in Sátiras Sociais, Lisboa, Publ. Europa-América, 1975, p. 201) é provável que existam então problemas de abastecimento de peixe de mar pois a 4 de Março de 1626 estabelece a Câmara uma multa para os almocreves que o não tragam à cidade (A. L. Vale, op. cit., p. 84).

Além do mercado, na cidade realizam-se duas feiras: uma, mensal, na primeira terça-feira de cada mês e a outra, anual, em Setembro.

A mensal, ao abrir do século faz-se na Praça mas, por não haver espaço devido à muita gente que a ela concorre, a partir de 1605 muda-se para o Rossio de Massorim (A.L. Vale, op. cit., p. 12). Nela se vendem panos de linho que alguns mercadores levam para o Alentejo e outros para Castela, onde os tornam a vender (p. 82), toucas e beatilhas de algodão "que só nesta cidade se fiam e tecem", ocupação das mulheres nobres, e que chegam também até Castela (p. 83 e 138), e objectos de barro negro de Molelos que, "bem lavrado, é o mais cheiroso e fresco que se pode achar, assim para beber como para outro serviço" (p. 82).

A feira anual realiza-se em dia de S. Mateus no verde e espaçoso rossio da Ribeira, junto à Capela de S. Luís. "Vai em tanto aumento que lhe faz pouca ou nenhuma vantagem a de S. Bartolomeu de Trancoso" (p. 470). Não nos diz Botelho Pereira o que aí se vende nem o mais que se pode encontrar na feira mensal. Talvez um dia a investigação no Arquivo Distrital o revele.

O quadro atrás esboçado é naturalmente imóvel. Ele não nos deixa sequer antever a dinâmica da vida económica viseense.

Infelizmente, não dispomos de nenhuma série de preços contínua que nos permita saber quais as grandes linhas desse movimento. Melhor do que nada é recolhermos, ainda que de maneira fragmentária, os preços que foram tabelados nas sessões camarárias (publicados, de modo deficiente, em A. L. Vale, op. cit.)

A série menos incompleta é a do azeite, preços de retalho env réis por quartilho: 1613, 20; 1614, 27; 1615, 20; 1620 24; 1626,31; 1637, 23; 1642, 25; 1650, 30.

Com estes dados podemos traçar dois movimentos distintos (contudo, em qualquer um deles, o preço anormalmente elevado de 1614), comparado com o de 1613 e o de 1615, será desprezado). Podemos vislumbrar uma fase de subida até à segunda metade da década de 20, seguida de uma curta fase descendente e logo de outra de alta que, como o mostram os preços posteriores a 1650, continua para lá do meio do século. Em alternativa, podemos olhar para 1626 como um ano de preços anormalmente elevados e, assim, temos apenas uma subida suave de 1613 a 1650. Esta última hipótese tem em seu apoio a epidemia que em 1626 assolou a cidade e "todo o Reino" (p. 142).

Qual destas hipóteses estará correcta?

A série de preços da carne de carneiro não permite decidir: 1610, 12 réis por arrátel; 1615, 14; 1626, 16; 1637, 15,5; 1650, 17. Do mesmo modo, os preços da carne de vaca também permitem essa dupla interpretação: 1610, 9 réis por arrátel; 1615,10; 1626, 11; 1637, 10.

A comparação com outros mercados nacionais (cf. Frédéric Mauro, Le Portugal, le Brésil et l’Atlantique au XVII.e siècle (1570-1670). Étude Economique, Paris, Centre Culturel Portugais, 1983, gráficos) leva a preferir, talvez, a hipótese dos preços subirem muito lentamente durante essas quatro décadas (no caso do azeite, em média, um aumento anual de 1,1 por cento). Porém, essa comparação é bastante insegura devido, sobretudo, à fragilidade da série viseense.

NOTA: Porque as referências aos Diálogos de Botelho Pereira foram numerosas, para economia de espaço, resumiram--se, apenas, desde a primeira, à indicação da página.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A exploração do espaço e o comércio antes da Restauração», A Voz das Beiras, 543, 9-5-1985, pp. 4, 8.

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