Viseu, a cidade do barroco
António João Cruz
De Viseu se costuma dizer que bem se poderia chamar «cidade
princesa do barroco»1. Deixando de
parte o que nessa afirmação há de bairrismo,
é, no entanto, verdade que um dos estilos que mais marcas
deixou na cidade de hoje foi o barroco período que se
inicia com toda a pujança (é Alexandre Alves, um
especialista da história da arte visiense, que o reconhece)
com a morte do bispo D. Jerónimo Soares, ocorrida em 1720, e
que se prolonga até 17382 ,
época de vacância (que vai até 1741) em que foi o
Cabido a administrar os bens que doutro modo seria o bispo a
fazer.
Ora, que sucede então em Viseu? Em fins do séc. XVII a
cidade tem uns 900 fogos, tantos quantos em meados do séc.
XVIII. Ao abrir o séc. XIX serão uns 10003.
Embora estes números sejam dados com algumas reservas
não se pode deixar de reconhecer que o crescimento que eles
traduzem é modestíssimo o aumento do
número de fogos que nesse período ocorre em Portugal
é de mais de 65%4 enquanto em
Viseu é apenas de 11%. Isto tem um significado: Viseu, no
séc. XVIII, está em crise: a sua
população não cresce. O gráfico
15, onde se esboça uma
descrição, na longa duração, do movimento
demográfico visiense, mais põe em evidência essa
crise setecentista.
Gráfico 1
A população de Viseu e arrabaldes
(sécs. XVI-XIX). 1.
População da cidade e arrabaldes; 2. Fogos da cidade e arrabaldes multiplicados por 4 e
4,5; 3. População da cidade; 4. Fogos da cidade multiplicados por 4 e 4,5.
Tornemos um outro indicador: os preços os
preços do azeite porque são aqueles que formam a
série menos incompleta. Para a primeira metade do
século, os elementos disponíveis, que já por si
são escassos, há que pôr também algumas
reservas. No entanto, eles permitem-nos vislumbrar um movimento que
se pode descrever assim: na década de 10 um ciclo de grande
amplitude (reflexos da Guerra da Sucessão de Espanha), de 20
até aos começos da década de 30 um interciclo em
que os preços se mantêm estáveis, daí
até 50 uma fase ascendente, de 50 a 59 uma fase de baixa e,
finalmente, uma subida firme que se prolonga pelos inícios do
séc. XIX6.
Gráfico 2
O preço do azeite (1613-1877).
Amorim Girão diz que em Viseu «os olivais
predominavam sobre as outras formas de
exploração agrícola do solo». A
ser assim, o azeite tinha um peso assinalável na vida
económica viseense. Os preços marcados de modo
descontínuo estão expressos em réis por
quartilho enquanto os preços marcados continuamente
são em réis por alqueire.
Repare-se: durante a década de 20 e parte da de 30 o
gráfico da população e o dos preços
têm uma mesma curva: uma recta horizontal. Ora, isto levanta
uma questão que é a de saber explicar o desenvolvimento
do barroco neste contexto. É que há uma
contradição: uma cidade onde a circulação
monetária aparentemente se mantém constante
facto que se traduz na horizontalidade da curva dos preços
como se pode abalançar a essa quase que
renovação urbana? Por outro lado, como é que
essas obras não deixaram marcas na vida económica
visiense? Não se diga que a arte não influi na
economia: numa cidade tão pequena como é Viseu
setecentista, a presença dos artistas, as somas gastas em
materiais e pagamentos teriam de deixar as suas marcas. Essas
«grandes somas, [...] de tamanho vulto»7,
que então se despenderam, pelo aumento da
circulação monetária que provocaram, não
poderiam deixar de causar um aumento dos preços. Mas
não foi isso que, na realidade, sucedeu: essa
renovação barroca ocorreu durante um período em
que a curva dos preços se mantém horizontal. Por isso,
cabe perguntar se esse movimento dos preços não
é também resultado de uma conjuntura nacional, quem
sabe se internacional8.
Uma coisa é certa: a época que vai de meados da
década de 10 até à década de 30 é
de descida dos preços do azeite, pelo menos no mercado de
Lisboa9. Esse desfasamento entre os dois
mercados não terá a sua explicação na
renovação urbana visiense? Exploremos esta
hipótese.
Segundo Irving Fischer, de uma forma simplificada, os
preços P são directamente proporcionais à
quantidade de moeda m e à velocidade da sua
circulação v e inversamente proporcionais
à produção q, ou seja
P = mv/q10 .
Fazendo a aproximação q = constante,
desprezando assim a variação da produção
durante a 1.ª metade do séc. XVIII, o que é
razoável, vem que a um aumento da circulação
monetária (quantidade em velocidade) corresponde um aumento
dos preços. Porém, pela conjuntura económica a
tendência é a de descida dos preços. A resultante
destas duas tendências de sentidos opostos depende, por isso,
da intensidade com que elas se manifestam. Assim, os preços
poderão descer ou subir conforme seja predominante,
respectivamente, a contribuição da conjuntura nacional
ou do aumento da circulação monetária provocada
pelas obras empreendidas na cidade ou poderão manter-se
estáveis se as duas tendências se compensarem.
Será este último caso o que ocorre em Viseu durante a
década de 20 e começos da de 30? É uma
hipótese a considerar pois que na ausência de outros
elementos nada podemos afirmar com certeza.
Porém, mesmo assim, não fica resolvido o problema
pois fica por explicar porque é que é nesse
período que se iniciam com força as obras de
renovação artística.
Porque quando morre o bispo e passa o Cabido a tomar conta da
diocese uma nova mentalidade toma o poder11?
Porque existe um excedente de receitas que é
necessário investir? De facto, antes de a
renovação barroca se intensificar as rendas do bispado,
que muito contribuíram para esse movimento, parecem sofrer um
grande aumento. «No meado do século XVI rendia a mitra de
Viseu oito mil cruzados, ou talvez um pouco mais. Pelos anos de 1674,
segundo o Padre Leonardo de Sousa, o rendimento do bispado
não passava de dezoito mil cruzados. O mesmo autor
calcula em vinte mil cruzados o rendimento da diocese pelos anos de
1685 a 1690; e diz que no tempo do bispo D. Jerónimo Soares,
ao findar o século XVII, os rendimentos do prelado
orçavam por quarenta e cinco mil cruzados, cálculo que
na verdade representa um salto brusco em relação ao
anterior» mas que outros testemunhos, como o do Padre Carvalho
da Costa, que fala em quarenta mil cruzados, parecem
confirmar12.
Surgem-nos assim outros problemas.
O empreendimento a que o Cabido mete mãos teve
várias consequências económicas. Por um lado,
essas obras deram emprego a muitos braços que de outro modo o
teriam de ir procurar a outro lado. Por outro, a
movimentação de capitais permite manter estáveis
os preços (pelo menos os do azeite) contra uma tendência
que era de descida. Finalmente, como quanto mais elevados os
preços mais elevadas são as rendas do Cabido, o
movimento dos preços permite um maior investimento do que
aquele que seria possível se eles seguissem a tendência
geral de descida. Tudo isto tende a contrariar a crise em que a
cidade se encontra a crise europeia de 1650-1570 que,
demograficamente, se caracteriza pela diminuição do
ritmo de crescimento13. Por isso, dado
que quem menos lucra não é, por certo, o Cabido, cabe
perguntar em que medida essas obras públicas que se realizaram
na cidade constituíram um factor de desenvolvimento
previamente pensado nas suas consequências.
A hipótese, à partida, pode parecer um pouco
afastada da realidade setecentista. Mas, depois de conhecida a
feição preponderante de instituição
económica de algumas instituições que se
supunham apenas com funções religiosas, como foi
mostrado, por exemplo, para uma confraria de Barcelos14,
e a violência com que são obtidos os dízimos
(«manda a todas as pessoas de qualquer grau e
condição que sejam, que forem obrigadas a pagar
dízimos os paguem inteiramente às Igrejas, Mosteiros ou
pessoas a quem se devem, e os que por qualquer razão ou
pretexto não quiserem pagar ou impedirem que se paguem, ou
dilatarem a paga deles, sejam por nós ou por seus Prelados
superiores excomungados e não sejam absolvidos da
excomunhão até satisfazerem inteiramente com
efeito», diz-se nas Constituições
promulgadas em 168115) ainda assim
se julgará? Um estudo social do clero setecentista e em
particular do Cabido seria da máxima importância para
resolver este problema. Mas, onde está ele?
Por ora, afirmar que a renovação barroca empreendida
pelo Cabido visiense nas primeiras décadas do séc. XVII
foi uma solução encontrada para combater a crise
económica da cidade pode ser uma hipótese sedutora mas,
na realidade, não passa de uma construção
bastante frágil. Será necessário dizê-la?
Os elementos hoje disponíveis são ainda muito escassos
e, por isso, mais não se pode do que levantar algumas pistas
para uma futura investigação.
1 Alberto Correia, Roteiro
Turístico do Distrito de Viseu, Viseu, 1981, p. 12,
ou, do mesmo, Viseu (Guia turístico), Viseu, 1981, p.
5.
2 Alexandre Alves, «Elementos para
um inventário artístico da cidade de Viseu. As grandes
obras da Sé nos sécs. XVII e XVIII», Beira
Alta, Viseu, XX, 1, 1961, p. 62.
3 António João de Carvalho
da Cruz, «A demografia visiense (sécs. XVI-XIX).
Introdução ao seu estudo», a publicar na revista Beira Alta.
4 Segundo os números indicados em
Maria de Lourdes Akola Meira do Carmo Neto, «Demografia
Nas épocas moderna e contemporânea», Dicionário de História de Portugal,
reimpressão, vol. II, Porto, 1979, p. 285.
5 Extraído do meu trabalho «A
demografia visiense», citado.
6 O gráfico 2 é
extraído do mesmo sítio que o gráfico 1. Neste
gráfico estão representadas, ao mesmo tempo, duas
séries de preços: uma, marcada descontinuamente,
é constituída pelos preços tabelados pelas
vereações; a outra é formada pelas estivas
camarárias. Os primeiros foram obtidos em Alexandre de Lucena
e Vale, Um Século de Administração Municipal.
Viseu. 1605-1692, Viseu, 1955, e, do mesmo, Viseu do
Século XVIII nos Livros de Actas da Câmara,Viseu, 1963; os segundos foram extraídos do Livro para
as Tarifas da Câmara desta Cidade (1754 a 1877),manuscrito da Biblioteca Municipal de Viseu (costa: Est.
Ms.).
7 Alexandre Alves, «Esculturas de
Laprade na diocese de Viseu», Beira Alta, Viseu, XXXV, 4,
1976, p. 462.
8 Cf., por exemplo, as páginas
dedicadas à depressão europeia de 1650-1750 em B. H.
Slicher van Bath, Historia Agraria de Europa Occidental
(500-1850), Barcelona, 2.ª ed., 1978, pp. 304-326.
9 Virgínia Coelho,
«Preços do azeite em Lisboa: 1626-1733. Tentativa de
compreensão analítico-sintética», Revista de História Económica e Social, Lisboa,
4, Julho-Dezembro de 1979, p. 36.
10 Frédéric Mauro, Le
Portugal, le Bresil et lAtlantique au XVIIIe
Siècle (1570-1670). Étude économique, Paris,
1983, p. 499 e segs., Vitorino Magalhães Godinho,
«Histoire économique et économie politique», Revista de Economia, Lisboa, IV, 3, 1951, p. 123 e segs., e,
do mesmo, Prix et Monnaies au Portugal. 1750-1850,
Paris, 1955, p. 310 e segs.
11 Sobre esta questão veja-se
Frédéric Mauro, Europa en el Siglo XVI. Aspectos
económicos, Barcelona, 2.ª ed., 1976, pp. 196197.
12 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova
edição preparada e dirigida por Damião Peres,
vol. II, Porto-Lisboa, 1968, p. 98.
13 B. H. Slicher van Bath, op. cit.,
p. 305.
14 Cf. Leontina Ventura, «O culto
de Nossa Senhora das Neves Uma perspectiva
socio-económica», Actas das I Jornadas do Grupo de
Arqueologia e Arte do Centro, Coimbra, 1979, pp. 57-67, ou
Leontina Domingos Ventura e Paulino da Mota Tavares, «O
fenómeno artístico e religioso no seiscentismo
coimbrão. João Soares e Manuel da Rocha escultores
desconhecidos», História e Sociedade, Lisboa, 4-5,
Junho de 1979, pp. 20-25.
15 Constituições
Synodaes do Bispado de Viseu, Coimbra, 1684, pp. 164-165
(actualizou-se a ortografia).
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Viseu.
A cidade do Barroco», História,
77, 1985, pp. 56-61.
Artigo em formato pdf
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