Apontamentos para a
história de Viseu

O espaço de uma história:
Itinerário de uma procura

António João Cruz

Duas preocupações bem distintas podemos encontrar na generalidade das monografias locais.

O bairrismo durante muito tempo foi a principal. Viseu, cidade princesa onde antigo e moderno harmoniosamente se combinam, berço de virtudes e de sabedoria - eis a imagem que se quis construir. Por isso, esquecer aspectos sumariamente julgados como indignos ou tão-só como não nobres foi um caminho múltiplas vezes trilhado, como o testemunha a sua historiografia. Para essa encenação, tão idílica como irreal, o espaço eleito é, naturalmente, o espaço da cidade mas convenientemente cercado com uma vedação por onde nada sai e por onde nada entra.

Porém, quando as preocupações científicas suplantam essas preocupações bairristas, esse espaço hermético surge como completamente inadequado. Para não ir mais longe, terá a história de Viseu significado fora da história de Portugal?

Em tempo, algumas das monografias locais tinham como objectivo, assim o manifestavam em subtítulo, constituírem um "subsídio para a história de Portugal". Além dos distanciamentos que implica, esta formulação pressupõe uma relação unívoca entre as duas histórias. Enquanto que a história de Portugal é alimentada pela história local, como um edifício se constrói com as pedras talhadas por vários artífices, aquela não tem consequências nesta. Contudo, aquilo que essas monografias nos mostram é precisamente o oposto: não só a periodização utilizada surge da sucessão de dinastias e de reis, como a própria história local é muitas vezes construída como resultado de uma série de mil e um actos legislativos.

Ultrapassado este equívoco, o problema que nos surge é o da escolha do espaço para escrever essa história, será o espaço português suficiente para a compreensão da cidade? Ou, pelo contrário, espaços mais pequenos não serão suficientes e até, quem sabe, mais adequados?

Por detrás destas questões, por detrás desta formulação plural, está o reconhecimento implícito de uma multiplicidade de espaços, do mesmo modo que existe uma multiplicidade de tempos.

Não se trata, contudo, de uma formulação teórica pois desses diferentes espaços são as próprias monografias que nos dão conta. Algumas é a uma só povoação que se dedicam, seja ela uma aldeia próxima de Viseu, seja a própria cidade. Outras respeitam a um concelho ou a espaços ainda mais vastos como são os bispados ou a mesopotâmia limitada pelo Douro e pelo Tejo. O próprio viver quotidiano nos dá mostra dessa multiplicidade de espaços.

Por exemplo, os ritos associados ao casamento exolocal em algumas aldeias das serras da Nave e do Montemuro, antes de mais, testemunham--nos a consciência que a comunidade tem de si própria e do seu espaço, tão pequeno que não abrange as comunidades vizinhas, afastadas apenas por uns escassos quilómetros (cf. Mário Lages, "O casamento exolocal numa aldeia da Beira Alta", in Análise Social, 77-79, Lisboa, 1983, p.p. 645-665). Em contrapartida a área de atracção da romaria da Senhora dos Remédios, em Lamego, estende-se a mais de 50 km (cf. Maria João Queiroz Roseira, Lamego. Um passado presente, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1981, p. 136). Do mesmo modo, à Feira Franca de 1846 inúmeros são os comerciantes que vêm do Porto, de Braga, de Guimarães, da Covilhã e de Coimbra.

Podemos nós sistematizar estas observações recolhidas ao acaso?

Pierre Chaunu formulou uma teoria do espaço para a época moderna que caminha nesse sentido. São quatro espaços, quatro círculos, cada um mais largo que o anterior: o primeiro tem um raio de uns 5 km, um espaço onde cada homem comunica com os outros homens 80 vezes em cada 100, um espaço que, fora das cidades, produz 90 por cento do que consome; o segundo traça-se à volta do mercado, 40 km para cada lado, um círculo de onde não sai 90 por cento dos 10 por cento da produção que escapam ao primeiro círculo; o terceiro e o quarto são os espaços da verdadeira economia comercial, da economia de grande raio de acção mas sobretudo da economia de trocas interoceânicas e transcontinentais, onde circula o restante 1 por cento do que se produz (Pierre Chaunu, A História como Ciência Social. A duração Espaço e o homem na época moderna, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976, pp. 245-250).

Estamos perante um modelo. Por isso convém notar que o espaço não se organiza segundo figuras geométricas regulares nem as dimensões destes círculos são reais. Os espaços que podemos identificar com estes espaços, diz-nos Chaunu, são umas vezes maiores, outras vezes mais pequenos; entre os extremos, por vezes bem afastados, uma multidão de tamanhos matiza esse quadro rígido.

Mais convém notar que este modelo foi construído para uma sociedade tradicional, portanto eminentemente rural, com uma demografia forte, além de que presta particular atenção aos aspectos económicos.

Poderá ele ser-nos útil? Isto é: os elementos de que dispomos confirmam-no de talmodo que, onde eles nos faltam, pode o modelo preencher com segurança os espaços em branco?

Voltemos aos exemplos apresentados.

No caso do casamento tradicional, dentro da mesma comunidade, é, sem dúvida, no primeiro círculo que nos encontramos. Por outro lado, nos restantes estamos no segundo círculo. Porém, que segundo círculo é este? Aquele onde se movimenta o oleiro de Ribolhos quando vende a sua arte em Castro Daire, no Ladário ou na feira de Barreias (cf. Alberto Correia, "Mestre de Ribolhos. Olarias de barros negros", in Beira Alta, XXXV, 2, 1976, p. 195)? Poderá o espaço deste artista, que se desloca de terra em terra com o burrico por silencioso companheiro, ser o mesmo do negociante do Porto que vem vender à Feira Franca?

Aqui, no segundo círculo, temos que distinguir dois espaços diferentes: o do comércio regional e o do comércio inter-regional. No entanto, onde acaba um e começa o outro é difícil sabê-lo.

A unidade regional sempre foi definida em termos de homogeneidade: "uma região geográfica caracteriza-se por certa identidade de aspectos comuns a toda ela" (Orlando Ribeiro, "Portugal", in Manuel de Teran, Geografia de España y Portugal, t. V. Barcelona, 1955, p. 234). Um estudo regional deveria, por isso, respeitar a um desses espaços. Um estudo agrícola deveria procurar solos com idênticas aptidões e idênticas produções. Um estudo etnográfico deveria se limitar a uma civilização material e a uma civilização mental. Porém, uma reflexão mais profunda mostra que, por vezes, são as posições de contacto entre regiões que explicam o rumo seguido. Tal é o caso de Coimbra (Orlando Ribeiro, Le Portugal Central, Lisboa, 1949, pp. 169-170); tal é, em parte, segundo Amorim Girão, o caso de Viseu, povoação que se desenvolveu como cruzamento de vias romanas (Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana, Coimbra, 1925, p. 20 – no entanto, no caso de Viseu, esta importância das estradas romanas tem sido posta em dúvida).

Essas posições de contacto levam-nos directamente ao problema das relações inter-regionais.

Viseu é um centro regional. Se dúvidas houvesse, a importância da sua Feira Franca poderia rapidamente dissipá-las. No entanto, também o Porto é um centro regional (cf. Fernando Piteira Santos, Geografia e Economia da Revolução de 1820, 3.ª ed., Lisboa, Europa-América, 1980, p. 43). Como a influência da Feira Franca em meados do séc. XIX se estende ao Porto, vemos que há uma sobreposição de influências e, por isso, espaços que não podem ser descritos correctamente dentro de um só círculo ou de um só referencial.

Uma consequência que daqui se tira é a impossibilidade de construir uma história de Portugal apenas pelo encontro das histórias locais ou regionais, como um mosaico se constrói pelo justapor das tesselae. Isso seria possível apenas se o todo mantivesse a sua individualidade nas partes em que o fragmentamos ou, dito de outro modo, se todos esses fragmentos se não distinguissem daquele de onde se originam.

Esta reflexão não pretendia obter respostas para o problema do espaço nos estudos locais e regionais. Seria impossível neste pequeno espaço. Para isso seria necessário multiplicar as abordagens, aprofundá-las e discuti-las com uma maior base de exemplos. O objectivo deste breve texto era apenas formular o problema e colocá-lo no campo de investigação. Esse é, aliás, o primeiro passo para a sua resolução.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «O espaço de uma história: Itinerário de uma procura», A Voz das Beiras, 540, 18-4-1985, pp. 2, 6.

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