Ricos e pobres no
Antigo Regime: as diferenças da demografia
António João Cruz
Ao contrário do que se poderia supor, no Antigo Regime as casas dos pobres são aquelas onde existe o menor número de crianças. Filhos e riqueza são dois termos que seguem um a par do outro (cf. Peter Laslett, O Mundo que Nós Perdemos, Lisboa, Cosmos, 1975, p. 109).
Isto é o que se verifica no Ocidente Europeu segundo o seu modelo demográfico. Porém, como as médias e as visões globais tendem sempre a apagar as diferenças, estamos perante uma imagem traçada a preto e branco.
Por isso, enfrentar a realidade, colorida com mil cores e imbricada como uma teia onde todos os fios se cruzam, seguir alguns deles, tentando em cada nó estabelecer uma hierarquia para escolher um dos fios que daí partem para outros nós, é o único caminho para a reconstituição do viver de uma cidade. Caminho árduo caminho de verdade.
As notas seguintes, frágeis como os fios que perseguem, testemunham uma incursão por alguns desses caminhos. As cores, é claro, são pálidas: trata-se apenas de um reconhecimento do terreno feito através do confronto de fontes com características diferentes. Uma sondagem prévia, podemos dizer.
Viseu, 1766: um inventário minucioso — embora não tanto como o desejaríamos — da autoria do P.e Manuel Lopes de Almeida, o mesmo que mais tarde responderá ao questionário do P.e Luís Cardoso para o Dicionário Geográfico, dá-nos a conhecer os pobres de uma das freguesias da cidade (Arquivo Distrital de Viseu, Rol dos Pobres mais Necessitados, m, 3, col. 32). São 67 casas, cerca de 7 por cento da população desse espaço, então ocupado por milhar e meio de habitantes. Para cada uma revela-nos as maiores necessidades de vestuário de cada um dos moradores.
Infelizmente, só 11 vezes se pode ter a certeza que todos os elementos da família foram mencionados: em 6 casas há 2 filhos, em 3 há 4 e em 2 há apenas 1 filho. No total, 25 crianças para 11 casas.
Podemos assim estimar que nas habitações mais pobres existem, em média, 4,4 pessoas. Isto equivale a admitir que as famílias pobres são famílias nucleares, famílias constituídas apenas por pais e por filhos É no entanto, uma hipótese razoável: por exemplo, hoje no Alto Minho rural esse tipo de fogos tem a sua maior importância nos escalões económicos mais baixos (João de Pina Cabral, "Comentários críticos sobre a casa e a família no Alto Minho rural", in Análise Social, 81-82, Lisboa, 1984, p. 273). Podemos tentar reunir mais dados exteriores ao Rol de 1766 que justifiquem essa hipótese (alguns se poderiam retirar de Manuela Silva, "Uma estimativa da pobreza em Portugal, em Abril de 1974", in Cadernos de Ciências Sociais, 1, Porto, 1984, pp. 117-128). Porém, é ele próprio que nos dá a melhor confirmação: das 11 famílias reconstituídas apenas uma não é nuclear: além do casal e das quatro filhas são mencionadas uma sogra e uma cunhada. Convém sublinhar: é apenas uma em onze.
Este valor médio de 4,4 habitantes por fogo levanta-nos um problema.
Em concordância com o facto de as famílias pobres serem sobretudo famílias nucleares e com o facto de o número de filhos a viverem com os pais ser pequeno, poder-se-ia prever que a dimensão média dos fogos dos pobres fosse inferior à dimensão média total. Contudo, esse número de 4,4 é superior quer aos valores médios nacionais quer aos valores médios locais (cf. o meu trabalho "A demografia viseense (Sécs. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo", cap. 3, a publicar na Beira Alta). Que pode isso significar? Falta de representatividade da amostra utilizada? Inaplicabilidade do modelo demográfico ocidental à sociedade viseense do séc. XVIII? Ou, tão-só, fragilidade e incoerência das fontes da época?
A procura no outro extremo da sociedade, na nobreza, pode ajudar a decidir.
Em primeiro lugar, os edifícios: pelo seu tamanho, eles próprios testemunham famílias maiores. Que são os prédios da Rua Escura, por exemplo, ao lado das casas do Cimo da Vila, dos Viscondes de Treixedo ou do Arco? Mesmo que algum desse espaço extra corresponda a necessidades sociais, dificilmente se consegue imaginar no séc. XVIII um mesmo número de pessoas a viverem nessas habitações tão diferentes como são as da Rua Nova e a casa de S. Miguel.
O número de filhos parece estar de acordo com esses espaços. As árvores genealógicas mostram uma profusão enorme de ramos que se multiplicam sem fim. Por exemplo, no séc. XVII, o primeiro historiador viseense, Manuel Botelho Ribeiro Pereira, um representante da nobreza local, só pelo lado da mãe tem 6 tios. Na sua família, segundo diz, uma das mulheres "se chamou mosca varejeira pelo muito que multiplicou em geração". (Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955, p. 272).
Mas além dos filhos, quase sempre numerosos, e de outras pessoas da família, outros elementos estão sempre presentes.
Os criados são indispensáveis. Por isso, Camilo por várias vezes os refere: é um dos criados de Domingos Botelho que dá origem a que Simão quebre as vasilhas que na fonte se encontram à espera de vez e as. cabeças dos que as levaram, entre as quais as de dois criados de Tadeu de Albuquerque (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, ed. de Augusto Pires de Lima, Porto, s.d. caps. I e II, p. 31 e 37); são eles que acompanham Teresa ao Porto depois da morte de Baltasar Coutinho (cap. X, p. 142); são eles que outras vezes fazem parte do cenário onde as personagens principais se movimentam.
A comparação com os pobres que estes elementos nos proporcionam parece confirmar o modelo demográfico ocidental. Por isso, o problema que a estimativa do número de pobres por habitação nos coloca deve ser consequência de uma das outras hipóteses levantadas ou até das duas ao mesmo tempo. Neste momento, sem aprofundar a pesquisa, quem poderá saber?
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Ricos e pobres no
Antigo Regime: as diferenças da demografia», A
Voz das Beiras, 539, 11-4-1985, pp. 4, 6.
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