A demografia
visiense: obstáculos e estratégias
António João Cruz
Depois de 1521, data do primeiro numeramento português e antes de 1864, ano em que se realizou o primeiro recenseamento geral da população portuguesa, neste espaço de mais de três séculos, sobretudo dois tipos de fontes se têm utilizado nas reconstituições demográficas
Os livros de registos paroquiais, em 1614 instituídos como obrigatórios embora os mais antigos remontem aos princípios do séc. XVI, são um filão inesgotável: entre a simples contagem dos nascimentos, dos casamentos e das mortes e a reconstituição das famílias, há uma série inumerável de métodos e de técnicas que podemos utilizar e de problemas que podemos abordar. Porém, à excepção da contagem simples, a aproximação de ordem zero, trata-se de uma fonte de exploração morosa e, por isso, de um domínio por excelência do trabalho colectivo.
Os numeramentos são fontes mais pobres e menos seguras mas, em contrapartida, são de utilização mais rápida. Remotos antepassados dos modernos censos, registam o número de fogos ou o de habitantes e, por vezes, dos dois. Por detrás deles, fins administrativos como a repartição de impostos e fins militares são causa directa de fugas e defraudes, o que, sem dúvida, lhes diminui o valor, Além disso, frequentemente esquecem a população menor de 7 anos e também não incluem o clero nem os militares
O verdadeiro problema que este tipo de fonte nos coloca não está tanto nas fugas, nas fraudes e nas omissões, mas no controlo que sobre eles se não tem. Ou seja: está sobretudo na certeza que nos falta, quando, por exemplo, nos interrogamos se determinado numeramento menciona ou não as crianças com menos de 7 anos.
Este é um obstáculo que nos surge quer se estude a demografia viseense quer se estude qualquer outra demografia. E, por isso, um problema geral. Outros, porém, se deparam nesse caso particular. O do espaço é, de entre todos, o maior.
Dos numeramentos efectuados a nível nacional, apenas um, o de 1527, nos é apresentado à dimensão das povoações. Aldeia a aldeia, vila a vila, cidade a cidade, pacientemente enumera o número de fogos que em cada local existe. Pelo contrário, todos os outros não pormenorizam mais que ao nível de freguesia ou, em alguns casos, ao nível de concelho. Ora, na região de Viseu, as freguesias e os concelhos de hoje não são os de ontem Por isso, como comparar os números entre si, numeramento após numeramento?
Eis um exemplo: um numeramento realizado em 1798, nos concelhos de Viseu, Povolide, Ranhados, Couto de Cima e Barreiro estes quatro pequenos enclaves no espaço do actual concelho de Viseu, apurou um total de 8433 fogos (Joaquim Veríssimo Serrão, A População de Portugal em 1798. 0 censo de Pina Manique Paris, Centro Cultural Português 1970); três anos depois, um outro numeramento, quase um verdadeiro recenseamento pelo cuidado que nele foi posto, apresenta para esses cinco concelhos o número de 7982 fogos (Cadastro do Reino de Portugal. 1801-1812, 2.º vol., Lisboa, INE, 1948). Esta diminuição de mais de 5 por cento que interpretação pode ter? Que, por qualquer motivo, a população viseense de facto descresce de 1798 a 1801? Que o primeiro numeramento sobreestima o número de fogos enquanto o segundo o diminui? Pelo pouco que se sabe sobre a vida económica e social de Viseu, em particular sobre a produção agrícola, as fomes e as epidemias, a primeira hipótese não é justificada por nenhum facto. Quanto à segunda, poder-se-ia facilmente aceitar o contrário: por exemplo, que o censo de 1798 fica muito mais aquém da realidade que o de 1801. Isto significa que também essa hipótese não é razoável. Resta, por isso, uma outra que é a de que esses dois números se referem a dois espaços diferentes.
Esta dificuldade, porventura uma das mais graves para os estudos locais e regionais, pode-se, no entanto, em alguns casos resolver, como seja quando, tal como no numeramento de 1798, temos estimativas feitas ao nível das freguesias.
Para isso, é necessário proceder a um cuidadoso estudo da evolução paroquial Sobretudo, é preciso responder a algumas questões como a da criação da freguesia, a da delimitação do seu espaço e a das transformações a que esses limites foram sujeitos. No fundo, trata-se de atomizar o espaço e, para cada átomo obtido, traçar uma história administrativa.
Com estes dados, através da reunião dos elementos, torna-se possível construir outros espaços maiores, os espaços que a cada estudo forem necessários, os espaços que a cada espaço convenham, sejam eles pequenas áreas sem nome, os concelhos de hoje ou de ontem, os actuais distritos ou outros quaisquer. Estarão todos bem limitados e, assim, com essa operação básica que é o justapor dos fragmentos, ganhar-se-á o controlo do espaço.
Caminho idêntico pode ser seguido para o numeramento de 1521 e para os numeramentos efectuados a nível regional que, como um de 1834 ou 1838, fazem o apuramento não por freguesias mas por povoações. Aqui o espaço atómico é a povoação. Por isso, os limites dos espaços maiores que são construídos estão melhor definidos, mais nítidos, com mais rigor. Em contrapartida, esse trabalho de juntar os fragmentos, um a um, e encontrar as pedras certas para que o mosaico fique perfeito, é, sem dúvida, bastante mais difícil e bastante mais moroso. Trabalho de paciência trabalho de rigor.
Quanto aos livros de registos paroquiais, os obstáculos que se nos deparam não são deste género, não são problemas de método pois esses já estão resolvidos, são problemas de ordem prática como o de como fazer o que se quer fazer. É sobretudo o problema do trabalho colectivo.
Este obstáculo é consequência de dois factores: a morosidade do trabalho de recolha documental e a lentidão a que se processa o tratamento dos dados. Para lhes responder há apenas uma solução: instituir o trabalho colectivo na historiografia viseense e a utilização de meios automáticos no processamento de dados, o mesmo é dizer o computador. Há, no entanto, dificuldade em introduzir essas novas técnicas. Antes de mais, neste momento não há em Viseu uma instituição que suporte a investigação histórica: isto é uma barreira considerável para qualquer tentativa de organização do trabalho historiográfico. Depois, porque na historiografia viseense, sempre tradicional, a resistência à mudança, esse forte obstáculo mental, encontra apoio no arcaísmo da sociedade em que se insere.
Também a exploração dos numeramentos, o trabalho prévio que eles exigem, o da fragmentação e o da reconstrução dos espaços, beneficiaria com. essa solução. Sem dúvida. Num e noutro caso, o trabalho que um individuo, só e com os meios tradicionais, demoraria alguns anos a realizar, um grupo de trabalho, bem orientado e com apoios, provavelmente mais não levaria que alguns meses. Além disso, seria possível conduzi-lo em mais direcções, multiplicar os problemas, aprofundar a análise (1). Ganharia a historiografia viseense, ganharíamos todos nós.
1) Propositadamente não desenvolvi este tópico, o do trabalho colectivo, pois ele foi o tema do anterior artigo desta série, "Caminhos do futuro: história, ofício colectivo".
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A demografia
visiense: obstáculos e estratégias», A
Voz das Beiras, 532, 14-2-1985, pp. 2, 8
Artigo em formato pdf
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