As invasões francesas: Novos problemas, novas perspectivas
António João Cruz
A passagem
dos franceses por Viseu em 1810 durante a 3.ª invasão,
embora nunca tenha sido profundamente estudada nas suas
consequências, foi e ainda é um momento triste da
história da cidade. Pilhagens sem conto,
destruições em número ainda maior, barbaridades
e actos desumanos, são imagens que muitos textos nos
transmitem. São acontecimentos necessários ao clima de
narrativas com objectivos apenas literários, como é o
caso do conto "O milagre de S. Pedro", de José de Almeida e
Silva (in Pergaminhos (Contos e fantasias
históricas), Lisboa, 1931, pp. 225-238). Mas
são também factos apresentados em estudos com
preocupações históricas bem marcadas (por
exemplo, Maximiano de Aragão, Viseu.
Instituições Políticas, Porto, 1928, M. da
Cunha e Alvelos, Viseu sob o Signo da águia
Napoleónica 1808-1810, Viseu, 1964 e A. de Lucena e Vale,
"Viseu e as invasões francesas" in Beira Alta, XIV, 3,
1955, pp. 169-181).
A credibilidade e as intenções destes autores, os
últimos, não permite levantar dúvidas sobre a
veracidade destes factos. Porém, foi esse o momento
único em que acontecimentos dessa natureza ocorreram na
história de Viseu? Por outro lado, o número
relativamente abundante de páginas que lhes foram dedicadas
comparado, por exemplo, com o das que foram escritas sabia as
invasões castelhanas durante a Idade Média que
raramente ultrapassaram a simples menção
não põe em evidência a enorme importância
das invasões francesas? No entanto, na realidade, elas foram
um marco na história de Viseu ou, pelo menos, deixaram marcas
profundas? Esta interrogação que, ao mesmo tempo,
manifesta desconfiança das imagens que têm sido
fabricadas, tem uma justificação: por exemplo, da peste
negra, seguramente causa de profundas perturbações,
embora as fontes por inexistentes ou desconhecidas o não
testemunhem, nenhum texto da historiografia viseense nos fala.
Esta situação, mais do que pela ausência de
fontes, é pelo desinteresse por determinados aspectos da
história de Viseu que se deve explicar. Pois, como podemos
tentar reduzir às suas reais dimensões as
consequências das invasões francesas se não
procuramos as suas marcas na sociedade e na economia viseense e nos
prendemos exclusivamente na narração dos acontecimentos
políticos e militares?
Antes de qualquer outra preocupação dever-nos-ia
surgir a dos homens e seu número. Eles estão por
detrás de tudo, apenas eles justificam o procurar as marcas
das invasões. Infelizmente, não dispomos de estimativas
rigorosas antes e depois de 1810. O recenseamento de 1801 não
tem outro com que possa ser comparado. Por isso, não podemos
utilizar esse caminho.
Talvez por isso, Manuel Alvelos recorreu aos livros de registos
paroquiais e contou os óbitos entre 18 e 26 de Setembro de
1810: 3 em Povolide, 24 nas freguesias de Viseu e aro, 7 em
Farminhão, 2 em Silgueiros 2 em Torredeita, 3 em Vila
Chã de Sá, 4 no Campo, 2 em Mundão, 4 em S.
Pedro de France e 1 em Fail. No total destas freguesias, 52
mortes. Porém, há que distinguir desse
número as mortes que mesmo sem a invasão teriam
acontecido. Ora, de uma lista de 11 pessoas, 3 tiveram morte natural
ou por acidente, 1/4 portanto. No entanto, mesmo sem fazermos esse ou
outro desconto, em termos demográficos, que significado
têm, por exemplo, 24 mortos numa população que
deve rondar os 10 mil habitantes?
Estes números mostram-nos que a 3.ª invasão
francesa não semeou de mortos os campos viseenses. Contudo,
estes números são enganadores; eles dão--nos
apenas, as baixas civis. O número de homens que foram mortos
durante o combate com o inimigo, não apenas durante a 3.ª
invasão, esse escapa-nos totalmente. Provavelmente, nele
estará a solução para o problema das
consequências demográficas.
Algumas das marcas deixadas na economia viseense
entrevêem-se na evolução dos preços,
balanço entre a oferta e a procura, tão sensível
a qualquer acontecimento porque Viseu se encontra fora das grandes
rotas comerciais. Eis, como exemplo, o movimento anual do
preço do milho, segundo os preços que correm no S.
Miguel: em 1800, 480 réis por alqueire em 1801, 500; em
1802, 450; em 1803, 600; em 1804 e 1805, 360; em 1806, 500; em 1807,
400; em 1808, 480; em 1809, 700; em 1810, 800; em 1811 e 1812, 900;
em 1813, 480. Depois, toma a subir, chega aos 800 réis e em
1818 volta de novo aos 400 réis por alqueire, como em 1807 (Livro para as Tarifas da Câmara desta Cidade (1754 a
1877), ms. da BMV). Uma colheita escassa em 1812 que se
segue a uma outra, a de 1811, também ela insuficiente devido
à pequena quantidade de semente que sobreviveu à
invasão, é uma das soluções
possíveis para esta curva. Porém, ela não
explica que a curva do azeite que antes das invasões anda
entre os 2.000 e 2.500 réis por alqueire, tenha um
máximo de 3.600 réis em 1810, um outro de 4.800
réis em 1812 e em 1813 desça para os 2.800, para de
novo tornar a subir como a curva do milho. O elevado preço do
azeite em 1812 mais do que consequência das invasões
francesas deve ser consequência de más
condições climatéricas. Por isso, o preço
do milho em 1812, além das invasões francesas, deve
reflectir também o clima. Só assim se
compreenderá a descida brusca que ocorre no ano seguinte. O
aumento que depois se dá, quer no caso do milho quer no do
azeite atingindo-se um máximo em 1817, ilustra bem esta
dependência de clima: com efeito, esses anos pertencem a um
período seco e frio em que, pelo menos até 1820, ocorre
um surto glaciar; por isso em 1816 se regista o Verão mais
fresco da primeira metade do séc. XIX (Aurélio de
Araújo Oliveira, A Abadia de Tibães. 1630/80-1813.
Propriedade, exploração e produção
agrícolas no vale do Cávado durante o Antigo Regime,
vol. I, Porto, 1979, p. 20).
A conclusão que daqui podemos tirar é que, do ponto
de vista agrícola, as marcas das invasões francesas
apenas se observam com intensidade até à primeira
colheita. Embora se trate de uma sociedade eminentemente
agrícola, não podemos no entanto generalizar. Por
exemplo, sobre os artesãos nada se sabe. E outros exemplos se
poderiam apontar: os pobres, os homens ligados aos transportes, os
funcionários administrativos, mesmo a própria nobreza.
Contudo, porque quase todos de um modo ou de outro estão
dependentes do sector agrícola, podemos por aí ter uma
ideia das consequências económicas das invasões
francesas. Sem dúvida, graves mas, à primeira vista,
pouco mais importantes que as devidas a um mau ano agrícola.
Para que esta conclusão possa ser suficientemente segura
há, no entanto, que multiplicar as abordagens.
As curvas de rendimentos são outros bons
indicadores a que podemos recorrer. Da mesma maneira que as
preços agrícolas, as rendas ajudam-nos a reconstituir o
peso que os homens mais desfavorecidos de Sol a Sol carregam aos
ombros, vidas satisfeita com o pão todos os dias posto sobre a
mesa. É sobre eles que caem esses rendimentos, impostos
devidos à Câmara ou à Igreja ou foros de terras
alugadas. Porém, os rendimentos particulares permitem-nos
atacar o problema por outro lado: eles levam-nos ao interior das
classes privilegiadas, mostram-nos um modo de vida posto em causa ou
abalado, pelo menos, ou mostram-nos reforçado o poder dos mais
poderosos.
As receitas públicas são as da Câmara: durante
a última meia década do séc. XVIII são
inferiores a 2 milhões de réis; de Junho de 1800 a
Junho de 1801, 1,45; daí a Setembro de 1802, 2,7; de Setembro
de 1802 a Junho de 1803, 2,8; em 1811 são apurados 3,31
milhões; em 1812, 3,39; em 1813 3,52; a partir daí
valores cada vez mais baixos até 1822, ano que não vai
além de uns 1,4 milhões de réis (Livro de
Receita e Despesa da Câmara, 1793-1803 e 1812-1829,
ms. de BMV). Embora se desconheça o que se passa entre 1803 e
1811, precisamente os anos mais importantes, nota-se no entanto, que
em 1811 a receita já é superior à dos primeiros
anos do século. Ainda que esse aumento em parte seja
consequência dos preços elevados, dificilmente ele se
daria se, por um lado, o aparelho administrativo tivesse sido
destruído e se, por outro, a actividade económica
não tivesse imediatamente recuperado.
As receitas privadas são as dos membros do Cabido, o
dinheiro que depois de liquidadas as despesas entre eles era
repartido: do Natal de 1800 ao Natal de 1807 essas rendas anuais
oscilam entre 3,37 e 3,58 milhões de réis; no ano
económico de 1808-1809 são de 2,83 milhões; no
de 1809-1810, 3,47; no de 1810-1811, 3,32; no de 1811-1812, 2,4;
depois, até 1821, provavelmente por influência da subida
dos preços, vão sempre em aumento (Livro das Rendas
dos Apréstemos desta Santa Sé de Viseu, ms. da
BMV). Por aqui vemos que, à excepção do ano de
1808-1809, talvez devido à mudança de período de
apuramento da receita, as rendas dos elementos do Cabido atravessam
incólumes as invasões.
Para não fazermos aquilo que se tem feito, ainda que do
outro lado, não podemos reduzir as consequências das
invasões aos campos da sociedade e da economia. Pá
também que procurar no património, domínio
sempre realçado, e no ambiente mental.
Do património diz-se que foi destruído. Fala-se nas
obras de arte levadas pelos franceses e naquelas que arruinaram,
património nosso saqueado e para sempre perdido. Pintam-se
essas cenas com cores vermelhas de sangue e de fogo e negras de
guerra. Como se em séculos de história outras perdas
não houvesse, quem sabe se mais importantes. Esquece-se o
incêndio da Câmara que nos finais do séc. XVIII
destruiu o recheio do arquivo, esquece-se a fachada manuelina da
Sé que caiu em 1635, esquece-se a demolição das
portas da muralha, aprovada em 1814, esquecem-se os outros exemplos
todos que se poderiam apontar. Estes não passam de simples
referências de uma história, da arte e do
património. Quais terão sido as
destruições mais graves não o sabemos. No
entanto, sem sombra de dúvida, as que século
após século os habitantes de Viseu têm efectuado
são muito mais importantes. Enquanto, por exemplo, da
povoação do séc. XII hoje nada existe, grande
parte da cidade dos nossos dias respira um ar anterior às
invasões e mostra uma feição umas vezes barroca,
outras vezes quatrocentista ou quinhentista.
Há, por isso, que não exagerar. Ao referirmos o que
durante as invasões foi destruído não podemos
esquecer as outras destruições do património,
antes e depois de 1810. Só assim as invasões francesas
poderão perder a atmosfera emocional que ainda hoje as
envolve.
Por outro lado, em aparente contradição, há
que tentar reconstituir o ambiente mental dessa sociedade. Há
que tentar reconstituir as informações que lhe foram
transmitidas, as reacções às notícias
sobre os avanços do inimigo, as horas de terror que viveu, o
que sofreu com a fuga para os montes. Estas são, porventura,
as consequências mais difíceis de apurar. Elas
não se materializaram em objecto que hoje possamos manusear e
analisar, os homens não se preocuparam em as registar para o
futuro. Porém, não é por isso que elas
são menos importantes. Consequência das
consequências mentais das invasões francesas é o
drama que ainda hoje construímos em tomo deste tema, eco
pálido de drama há mais de século e meio
vivido.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «As invasões francesas:
novos problemas, novas perspectivas», A Voz das
Beiras, 527, 10-1-1985, pp. 4, 8; 528, 17-1-1985, pp. 6-8.
Artigo em formato pdf
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