Apontamentos para a
história de Viseu

Alguns aspectos da natalidade na 1.ª metade do séc. XIX

António João Cruz

Na impossibilidade de se levarem a cabo pesquisas profundas com a intenção de se atacar exaustivamente qualquer problema, é preferível efectuarem-se sondagens breves com vista a apenas se levantar algumas questões e algumas hipóteses que podem mais tarde vir a ser retomadas, do que nada fazer. É neste sentido que se deve compreender esta brevíssima sondagem sobre alguns aspectos da natalidade viseense durante a 1.ª metade do séc. XIX, e em especial, durante os inícios do século. Com efeito, o facto de assentar sobretudo nos dados colhidos para um ano torna frágil, do ponto de vista estatístico, a abordagem efectuada.

Por isso, ela apenas pretende vislumbrar grosseiramente uma situação e deste modo apresentar algumas pistas para futuros trabalhos de maior fôlego.

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No início do séc. XIX as freguesias em que se integra a cidade de Viseu não são exclusivamente urbanas. Elas formam um círculo de uns 50 km2 ou mais com centro na cidade e que hoje é constituído pelas três freguesias urbanas de Viseu e pelas de Abraveses, Orgens, Ranhados, Rio de Loba, S. Salvador. Segundo um recenseamento efectuado em 1801 esse espaço é ocupado por uns 9.160 habitantes (INE, Subsídios para a História da Estatística em Portugal, vol. II, Lisboa, 1948). Nesse mesmo ano os registos de baptizados encontram-se divididos por quatro livros diferentes, hoje todos eles no Arquivo Distrital de Viseu: o n.º 42 (utilizado de 7-10-1787 a 2-12-1802), o n.º 43 (de 7-9-1788 a 26-9-1802) o n.º 44 (de 18-2-1791 a 17-10-1830) e o n.º 45 (de 18-5-1799 a 29-11-1812). No total, nesse ano, aí se registam 336 baptizados, 70 dos quais foram de crianças expostas e 16 de filhos ilegítimos.

Estes números permitem-nos calcular a taxa de natalidade. Porém, devido aos expostos, temos, primeiro, que efectuar uma correcção ao número de baptizados. Conforme alguns anos mais tarde, nos mostra o mapa da população do concelho e seu movimento em 1834 (José de Oliveira Berardo, Notícias de Viseu, 1838, mapa n.º 6, ms. da BMV), os expostos do concelho aparecem todos registados na freguesia de Viseu Oriental. Por isso, os 70 expostos que aparecem registados em 1801 numa das freguesias de Viseu – na realidade, só em um dos quatro livros estão registados os expostos – dizem respeito à totalidade do concelho (incluindo nesta designação não apenas o concelho de Viseu mas também os que, como por exemplo o de Ranhados e o do Barreiro, estavam encravados naquele). Ou seja: os 70 expostos dizem respeito a uma população de 33.374 habitantes e não apenas de 9.160. Admitindo que o número de enjeitados 6 directamente proporcional ao de habitantes temos que apenas 19 expostos são naturais das freguesias de cidade. Deste modo, o número total de baptizados, depois de corrigido, é de 285 crianças. Estabelecendo a igualdade entre o número de nascimentos e o de baptizados vem que a taxa de natalidade é de 31,1 por mil habitantes.

Esses números, os corrigidos, permitem-nos abordar dois outros problemas: o da ilegitimidade e o do peso dos expostos. Segundo estes dados os filhos ilegítimos representam 5,6 por cento do total de baptizados e os expostos 6,7 por cento.

Porém, sem comparação, estas estimativas têm reduzido valor.

Em primeiro lugar, a taxa de natalidade: em 1820, na diocese de Viseu, é de 32,2 por mil (taxa calculada a partir de Adrien Balbi, Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et d'Algarve, t. I, Paris, 1822, p. 204), em 1834 é de 17,3 por mil na cidade e de 26,3 por mil nas freguesias rurais do concelho o que, no total, dá uma taxa de 25,2 por mil (António João de Carvalho da Cruz, "A demografia viseense (sécs. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo", a publicar na Beira Alta). São coerentes estes números? Como se observa em 1834, a natalidade urbana é mais fraca que a rural. Por isso, se essa distância entre uma e outra é já a mesma em 1801, a taxa de natalidade do concelho deve rondar os 40 por mil, o que está de acordo com o que se sabe das características biológicas do Antigo Regime (Fernand Braudel, Civilización Material y Capitalismo, Barcelona. 1974, p. 57) mas que não parece consistente com os outros valores. Com efeito, durante a primeira metade do séc. XIX, na Europa, a taxa de natalidade não desce mais do que 5 pontos (cf. Carlo Cipolla, História Econômica da População Mundial, Rio de Janeiro, 1977, p. 83). Mesmo a nível regional, como acontece em Portugal, a diminuição que ocorre não é mais elevada que essa (cf. Robert Rowland, "Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal; questões para uma investigação comparada", in Ler História, 3, Lisboa, 1984, p. 30). Por isso, esses números levantam-nos uma questão: não obstante o que se passa em outros lugares, eles traduzem na realidade um movimento próprio que se dá no concelho de Viseu ou esse movimento não passa de urna ilusão criada pela fragilidade dos números? Eis uma pergunta a que, no estado em que se encontra o estudo da demografia viseense, tão rapidamente não se poderá responder.

Entretanto, podemos tentar ver o que se passa com a ilegitimidade e com os expostos.

Na França rural os índices de ilegitimidade situam-se entre os 0,5 e 1 por cento. Quanto mais perto está o mar mais esses valores aumentam e, assim, atingem-se taxas de 2,5 por cento. Porém, não é só aí que esses índices são mais elevados; nas cidades também o são. Esta é a demografia francesa. No entanto, em Inglaterra, em média, esses valores são dobrados e na Escandinávia são também mais altos que em França (Pierre Chaunu, A História como Ciência Social. A duração, o espaço e o homem na época moderna, Rio de Janeiro, 1976, pp. 423-424) Do mesmo modo, em Portugal esses índices são também mais elevados: conforme o tempo e o lugar variam entre os valores da França marítima e os 10 por cento de baptizados (cf. Maria Celeste dos Santos Duarte de Oliveira Duarte, A Freguesia de S. Martinho de Arrifana de Sousa de 1760-1784 (Ensaio de demografia histórica), Lisboa, 1974, p. 59). Por isso, embora os 5,6 por cento sejam elevados se tomarmos como escala de referência os valores franceses, quando comparados com os índices portugueses são aceitáveis.

Finalmente, os expostos: em 1801 na cidade representam 6,7 por cento dos baptizados ou talvez um pouco mais; em 1834, no concelho, uns 14 por cento (calculado a partir de Oliveira Berardo, op. cit., mapa n.º 6). São, talvez, valores demasiados baixos, o primeiro sobretudo: em Penafiel, entre 1760 e 1784, constituem um grupo de 12,2 por cento dos baptizados (M. Celeste Oliveira Duarte, op. cit., pp. 61-62); na paróquia da Sé da cidade de São Paulo, entre 1741 e 1822 oscilam entre 10,4 e 25,6 por cento – no entanto, tudo leva a crer que o número de enjeitados seja maior em Portugal do que no Brasil (Maria Beatriz Nizza da Silva, "O problema dos expostos na capitania de São Paulo", in Revista de História Económica e Social, 5, Lisboa, 1980, p. 95). Porém, talvez se trate de um problema metodológico: na realidade, os expostos representam 53,8 por cento do número de crianças registadas no livro de baptismos n.º 43 (o único em que aparecem expostos) ou 20,8 por cento do número total de baptizados na Sé de Viseu. Estes valores estão já de acordo com esses outros índices que foram apontados, assim como os 32,9 por cento que são o número de expostos baptizados na Sé em 1834. No entanto, eles estão a contabilizar numa freguesia crianças que nasceram noutras mas que, devido ao facto de a casa da roda se situar numa das freguesias da cidade, só nela aparecem registados.

Um outro problema que os dados recolhidos permitem abordar é o da distribuição dos nascimentos ao longo do ano. Mês a mês, durante o ano todo de 1801, de Janeiro a Dezembro, no total aparecem registados 32, 26, 32, 29, 26, 24, 34, 28, 23, 33 e 16 nascimentos. Doze meses de nascimentos, doze meses de concepções nove meses antes, de Abril de 1800 a Março de 1801 A curva é rápida, com movimentos bruscos mas, mesmo assim, Março, o mês das penitências e da Quaresma, é o mês em que o número de concepções é mínimo. No outro extremo, os meses de Outubro, Janeiro e Fevereiro, Abril e Junho.

Embora só algumas questões tenham sido afloradas, por aqui se pode vislumbrar quanto esta temática é, por um lado, um campo extremamente rico por aquilo que nos diz sobre os homens e seu quotidiano viver, e, por outro, quanto estes problemas têm estado ausentes da historiografia viseense. Devido a este facto, hoje dificilmente poderemos ultrapassar os níveis da recolha documental e da colocação das dúvida que nos são suscitadas pelo confronto dos números.

Ainda estamos no início. Aqui, tudo está ainda por fazer.

 

Referência bibliográfica:

AAntónio João Cruz, «Alguns aspectos da natalidade na 1.ª metade do séc. XIX», A Voz das Beiras, 525, 20-12-1984, pp. 4, 12; 526, 27-12-1984, pp. 2, 10.

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