Apontamentos para a
história de Viseu

Os mestres artesãos de 1800:
Um primeiro reconhecimento

António João Cruz

Devido ao facto de o censo de 1890 ser o primeiro recenseamento geral da população portuguesa em que esta aparece classificada por grupos económicos, para épocas anteriores toma-se necessário recorrer a todos os tipos de fontes que nos possam dar quaisquer elementos que nos ajudem a construir uma visão global ou, pelo menos, parcelar da estrutura sócio-económica da população. Pela natureza dessas fontes, dificilmente essas reconstituições se poderão efectuar fora do quadro local. Daqui advém a necessidade e a importância da pesquisa nos arquivos locais, sejam eles públicos ou particulares.

Um exemplo dessas fontes é o Livro de Registo as Cartas dos Oficiais Mecânicos, manuscrito da Biblioteca Municipal de Viseu (cota: Est. Ms.), hoje com 104 folhas, outrora com mais. Embora numerado e rubricado em 1798 só em 1801 foi utilizado para o fim a que fora destinado: o registo das cartas de licença passadas aos artífices para que, na terminologia da época, pudessem livremente usar os ofícios como mestres.

Este é um documento que nos interessa do ponto de vista quantitativo. Por isso, o nosso trabalho consiste em contar.

Antes de qualquer outra contagem, a primeira que podemos efectuar é a do número de artífices a quem foi concedida a carta: 59 em 1801, 35 em 1802 e apenas 9 em 1803 porque o livro está incompleto. No total, portanto, 103 artífices, Ou, se tomarmos a média dos dois primeiros anos, 47 por ano.

Poderemos, a partir daqui, fazer uma estimativa do número ou da importância desses mestres artesãos? Apenas uma estimativa muito grosseira se pode fazer do seguinte modo. Admitindo que o número de mestres artesãos se mantém constante durante um ano, temos que o número de artífices que são admitidos a mestres é igual ao número de mestres que deixam de o ser, o mesmo é dizer que morrem. Ora, a taxa de mortalidade no concelho de Viseu é, em 1834, de 19,4 por mil habitantes (taxa calculada a partir do mapa n.º 6 das Notícias de Viseu, de José Oliveira Berardo). Admitindo que ao abrir do séc. XIX essa taxa é a mesma e que o valor que diz respeito ao grupo social dos artificies pode ser igualado a esse valor médio que é o que diz respeito ao concelho, podemos escrever que

47-19,4/1000xT=0,

em que T é o número total de mestres artesãos. Resolvendo esta equação, vem que T=2423 Como a população do concelho deve ser de uns 30 mil habitantes, temos que os mestres artesãos constituem uns 8 por cento da população total. Esta estimativa pode-se comparar com os 8,4 por cento da população que são as pessoas exercendo uma profissão "industrial" em 1890 no concelho de Viseu.

Podemos, no entanto, proceder à exploração desta fonte de um outro modo: podemos, agrupando por ofícios os artífices a quem foi passada a licença, averiguar qual a importância de cada um. Assim, de 103 artesãos temos 40 tecedeiras, 13 carpinteiros, 11 alfaiates, 9 sapateiros, 7 pedreiros, 5 cardadores, 4 ferreiros, 3 canastreiros, tantos quantos os moleiros e os tamanqueiros, 2 lagareiros, 1 curtidor, 1 marceneiro e 1 tosador.

Por aqui facilmente se vê a importância desfrutada pelos têxteis. Este peso está em perfeito acordo com o que poderíamos esperar: no Antigo Regime os têxteis representam, de longe, o sector principal da indústria (Pierre Goubert, L’Ancien Régime. 1: La societé, 6.ª ed., Paris, 1979, p. 51). Por outro lado é também evidente o peso de carpinteiros, alfaiates e sapateiros pois no total constituem mais de metade dos artesãos masculinos. A importância de sapateiros e alfaiates um século depois ainda se manifesta: eles constituem 2/5 do conjunto de artesãos que de 1904 a 1930 entraram como sócios para o Instituto Liberal de Instrução e Recreio, de Viseu (António João de Carvalho da Cruz e Alberto Manuel Metelo Coimbra, "Subsídios para um inventário dos artesãos que trabalharam em Viseu (1904-1930)", in Dólmen, boletim do Centro Juvenil de Arqueologia e Etnografia de Viseu, V, 2, Março-Abril de 1980, p. 15).

Finalmente, podemos abordar esta fonte segundo a perspectiva da distribuição geográfica. Deste modo, agrupando por freguesias (as actuais freguesias) os artesãos nela referidos chegamos à seguinte distribuição: 12 são de Abraveses, 10 de Rio de Loba e 10 também de Silgueiros, 8 de Bodiosa, 7 de Vila Chã de Sá, 5 do Campo, de Cavernães, de Lordosa, de Vil de Souto e da cidade, 4 de S. João de Lourosa, de Ribafeita e de Orgens, 2 de Cepões, de Torredeita, de Cota, de S. Pedro de France e de Ranhados e 1 de S. Cipriano, de S. Salvador, da Lageosa, de Santos Evos e de Mundão.

Antes de mais, há que notar que, por um lado, há 4 povoações que não foram identificadas e que, por outro o concelho de Viseu em 1800 não tem os mesmos lingotes que hoje. Por este último facto aparece-nos a freguesia de Lageosa que hoje pertence ao concelho de Tondela e, por esse facto, também, o número de artífices das freguesias de Ranhados e de S. Salvador encontra-se subestimado dado que a maior parte destas freguesias pertencia então respectivamente, ao concelho de Ranhados e ao concelho do Barreiro.

Se agruparmos essas freguesias recorrendo à distância que as separa de Viseu (utilizando as distâncias indicadas no mapa n.º 2 das Noticias de Viseu, de Oliveira Berardo, de 1838) podemos ter uma ideia da distribuição espacial dos artesãos: 5 na cidade, 29 a 0,5 léguas, 24 a 1 légua, 18 a 1,5 léguas, 20 a 2 léguas e 3 nas freguesias mais afastadas. Que nos mostram estes números? Em primeiro lugar, nota-se um contraste entre a zona "urbana" e as zonas rurais pois na cidade a importância dos artesãos é mínima. Essa assimetria é ainda mais nítida se atendermos ao facto de na cidade haver uma muito maior concentração de habitantes. Em segundo lugar, verifica-se que é à volta da cidade que os artesãos se concentram, como, a partir de outras fontes, Amorim Girão já havia observado (Viseu. Estudo de uma Aglomeração Urbana, Coimbra, 1925, p. 56). Eles cercam a cidade do mesmo modo que os outros homens que a abastecem como, por exemplo, os lavradores e os padeiros e moleiros. Essa importância dos artesãos nas zonas rurais não é, no entanto privilégio de Viseu (cf. Carlo Cipolla, História Económica da Europa Pré-Industrial, Lisboa, 1984, pp. 105-106).

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Os mestres artesãos de 1800: um primeiro reconhecimento», A Voz das Beiras, 524, 13-12-1984, pp. 2, 8.

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