No entanto os "mapas oficiais" utilizados por Gerardo Pery (Geographia e Estatistica Geral de Portugal e Colonias, Lisboa, 1875, p. 82) mostram-nos, entre 1871 e 1872 uma acentuada quebra:
Isto só pode ter uma interpretação: em 1872 surgem fenómenos importantes a perturbar o equilíbrio precário existente entre a demografia, a economia e a sociedade. Quais são eles? Como actuaram? Qual a sua cronologia? Tais são algumas das questões que pode-mos colocar e para as quais mal se vê uma resposta. No meio destas dúvidas, uma coisa é certa: imediatamente por detrás deste decréscimo demográfico que se detecta em 1872 está a emigração. O número dos emigrantes do distrito para o Rio de Janeiro (apurados por G. Pery) mostra perfeitamente a correlação existente entre esses dois movimentos:
Os quantitativos globais da emigração do distrito, calculados por Bento Carqueja (cit. em Miriam Halpern Pereira, Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico. Portugal na segunda metade do século XIX, 2.ª ed. Lisboa, 1983, p. 365), mostram que, longe de diminuir, a emigração durante 2.ª metade do séc. XIX aumenta cada vez mais:
Por isso o inspector agrícola Manuel Rodrigues Gondim escreve, em 1889 (Boletim da Direcção Geral de Agricultura, I, 2, Lisboa, Fevereiro de 1889, p. 58): "na Beira Alta, onde ainda há poucos anos era insignificante a emigração, começa ela agora a realizar-se em grandes proporções". Que traduzem estes testemunhos? Que a crise manifestada em 1872 continua, pelo menos, até ao final do século a imprimir as suas marcas? Que se trata de uma manifestação de uma série cíclica de crises de pequena duração? Numa região eminentemente agrícola é sobretudo na agricultura que devemos procurar as causas que mais contribuíram para essa situação. Quais foram elas? A filoxera aparenta ser a mais importante. Em 1872 é identificada no Douro: "o número de vinhedos destruídos é especialmente elevado no concelho de S. João da Pesqueira". Na década seguinte atinge a região do Dão: em 1881 os concelhos de Carregai do Sal, de Mangualde e de Viseu; entre 1883 e 1886 os de Nelas, Tondela e Santa Comba Dão (M. H. Pereira, op. cit.). Das suas consequências nos diz Pedro Augusto Ferreira em 1890 (Portugal Antigo e Moderno, vol. XII, Lisboa, 1890 pp. 1755-1756): "nos concelhos filoxeras, nomeadamente nas da Pesqueira, Tabuaço e Armamar", que "não produzem hoje talvez a décima parte do vinho que produziam outrora", "muitas pessoas e muitas famílias tem emigrado nos últimos anos por falta de meios". A comparação da propagação de filoxera do Douro para o Dão e Mondego com a propagação da crise demográfica, também do Douro para o Mondego, mais reforça essa identificação. Mas, embora sugestiva, não nos podemos esquecer da fragilidade desta explicação que assenta, apenas, num paralelismo cronológico. É a filoxera a única responsável por esta crise demográfica? Certamente que não. Se outras causas podem existir e neste momento nos escapam há, pelo menos, uma outra a contribuir para essa situação e que alguns testemunhos nos permitem identificar: o desaparecimento da criação do bicho da seda sob o duplo efeito da orientação dos mercados consumidores de seda para regiões extra-europeias e da doença, como observa M. H. Pereira (op. cit., p. 126). Com efeito, um abade do norte do distrito, nascido e 1878. diz a criação do bicho da seda que "foi uma boa fonte de riqueza que findou" (António Francisco dAndrade, Deseripção e Historia do Concelho de Moimenta da Beira, Viseu, 1926, p. ".1). *** A importância do estudo da crise que no 3.º quartel do séc. XIX( se manifesta no distrito de Viseu, mais do que no conhecimento dessa crise, reside no facto de ela melhor pôr era evidência determinados factos estruturais que de outro modo, dificilmente seriam observáveis. Assim, descobrimos que a sociedade que algumas corografias e algumas monografias locais com interesses pouco científicos pretendem mostrar sem problemas, nomeadamente de crescimento, afinal é uma sociedade que vive num limiar que, mal é ultrapassado, logo faz alterar o equilíbrio existente entre a demografia e a economia, instalando-se então uma crise demográfica. Por outro lado, ficamos assim com uma ideia do grau de dependência da sociedade rural que outros indícios como as pinturas de milagres permitiam vislumbrar (cf. o meu artigo "Uma investigação per fazer. As pinturas de milagres", in História, 44, Lisboa, Junho de 1982, pp. 82-89). Além disto, esta crise permite tirar uma outra conclusão: embora o Antigo Regime seja formalmente extinto com a Revolução de 1820, do ponto de vista demográfico existem ainda fortes sobrevivências em meados da 2.ª metade do séc. XIX pois que os retrocessos demográficos provocados por causas agrícolas são uma das suas manifestações mais características.
Referência bibliográfica: António João Cruz, «Demografia, economia e sociedade: a crise do 3.º quartel do séc. XIX», A Voz das Beiras, 523, 6-12-1984, pp. 5, 8. |
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