Apontamentos para a
história de Viseu

Demografia, economia e sociedade:
A crise do 3.º quartel do séc. XIX

António João Cruz

Se exceptuarmos a segunda década do séc. XIX, em que por causa das invasões francesas há um importante retrocesso demográfico (Albert Silbert, Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, Lisboa, 1977, pp. 71-72), o século de oitocentos caracteriza-se em Portugal por um aumento demográfico: 3 milhões em 1800, 5 milhões em 1900 (Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, 4.ª ed., Lisboa, 1980, p. 19).

A nível local e regional os poucos números disponíveis deixam-nos entrever um mesmo movimento: a população da cidade de Viseu passa de uns 4 mil habitantes estimados para 1800 para uns 8.100 segundo o censo de 1900, sendo uns 6.600 em 1864, segundo outro censo; o concelho passa de uns hipotéticos 30 mil em 1800 para uns 54 mil, seguros, em 1900, com uns 47 mil, também certos, em 1864; finalmente, o distrito, de que dificilmente neste momento se conseguirá apresentar uma estimativa para o início do século, tem uns 366 mil habitantes em 1864 e uns 410 mil em 1900.

Porém, se olharmos mais ao pormenor, por detrás desse aumento secular podemos detectar diferentes ritmos de crescimento: por exemplo, a população rural do concelho não cresce entre 1878 e 1890. Por vezes deparamos mesmo com um retrocesso demográfico: acontece no concelho de Moimenta da Beira de 1864 a 1878, no de S. João da Pesqueira entre 1864 e 1900, nos de Armamar, Sernancelhe, Sátão, Castro Daire e Oliveira de Frades entre 1878 e 1890, no de Tabuaço e no de Mortágua de 1878 a 1900 e nos de Mangualde e Carregal do Sal entre 1890 e 1900. No entanto, a distância entre estas referências cronológicas (no mínimo, 10 anos) e o grande espaço escolhido, impedem que o balanço global do movimento demográfico que é o número de habitantes do distrito apresente qualquer retrocesso pois as perdas ocorridas nuns lados são compensadas pelos aumentos que se dão nos outros. Assim, segundo os recenseamentos gerais da população esse movimento é sempre crescente:

Ano Habitantes
1864 365.781
1878 388.766
1890 398.966
1900 410.231

No entanto os "mapas oficiais" utilizados por Gerardo Pery (Geographia e Estatistica Geral de Portugal e Colonias, Lisboa, 1875, p. 82) mostram-nos, entre 1871 e 1872 uma acentuada quebra:

Ano Habitantes
1870 369.878
1871 370.171
1872 367.971

Isto só pode ter uma interpretação: em 1872 surgem fenómenos importantes a perturbar o equilíbrio precário existente entre a demografia, a economia e a sociedade. Quais são eles? Como actuaram? Qual a sua cronologia? Tais são algumas das questões que pode-mos colocar e para as quais mal se vê uma resposta.

No meio destas dúvidas, uma coisa é certa: imediatamente por detrás deste decréscimo demográfico que se detecta em 1872 está a emigração. O número dos emigrantes do distrito para o Rio de Janeiro (apurados por G. Pery) mostra perfeitamente a correlação existente entre esses dois movimentos:

Ano Emigrantes
1870 259
1871 471
1872 1.014
1873 676
1874 760

Os quantitativos globais da emigração do distrito, calculados por Bento Carqueja (cit. em Miriam Halpern Pereira, Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico. Portugal na segunda metade do século XIX, 2.ª ed. Lisboa, 1983, p. 365), mostram que, longe de diminuir, a emigração durante 2.ª metade do séc. XIX aumenta cada vez mais:

Período Emigrantes
(média anual)
1866-1871 390
1880-1882 1.474
1896-1898 2.699

Por isso o inspector agrícola Manuel Rodrigues Gondim escreve, em 1889 (Boletim da Direcção Geral de Agricultura, I, 2, Lisboa, Fevereiro de 1889, p. 58): "na Beira Alta, onde ainda há poucos anos era insignificante a emigração, começa ela agora a realizar-se em grandes proporções".

Que traduzem estes testemunhos? Que a crise manifestada em 1872 continua, pelo menos, até ao final do século a imprimir as suas marcas? Que se trata de uma manifestação de uma série cíclica de crises de pequena duração?

Numa região eminentemente agrícola é sobretudo na agricultura que devemos procurar as causas que mais contribuíram para essa situação. Quais foram elas?

A filoxera aparenta ser a mais importante. Em 1872 é identificada no Douro: "o número de vinhedos destruídos é especialmente elevado no concelho de S. João da Pesqueira". Na década seguinte atinge a região do Dão: em 1881 os concelhos de Carregai do Sal, de Mangualde e de Viseu; entre 1883 e 1886 os de Nelas, Tondela e Santa Comba Dão (M. H. Pereira, op. cit.). Das suas consequências nos diz Pedro Augusto Ferreira em 1890 (Portugal Antigo e Moderno, vol. XII, Lisboa, 1890 pp. 1755-1756): "nos concelhos filoxeras, nomeadamente nas da Pesqueira, Tabuaço e Armamar", que "não produzem hoje talvez a décima parte do vinho que produziam outrora", "muitas pessoas e muitas famílias tem emigrado nos últimos anos por falta de meios".

A comparação da propagação de filoxera do Douro para o Dão e Mondego com a propagação da crise demográfica, também do Douro para o Mondego, mais reforça essa identificação. Mas, embora sugestiva, não nos podemos esquecer da fragilidade desta explicação que assenta, apenas, num paralelismo cronológico.

É a filoxera a única responsável por esta crise demográfica? Certamente que não. Se outras causas podem existir e neste momento nos escapam há, pelo menos, uma outra a contribuir para essa situação e que alguns testemunhos nos permitem identificar: o desaparecimento da criação do bicho da seda sob o duplo efeito da orientação dos mercados consumidores de seda para regiões extra-europeias e da doença, como observa M. H. Pereira (op. cit., p. 126). Com efeito, um abade do norte do distrito, nascido e 1878. diz a criação do bicho da seda que "foi uma boa fonte de riqueza que findou" (António Francisco d’Andrade, Deseripção e Historia do Concelho de Moimenta da Beira, Viseu, 1926, p. ".1).

***

A importância do estudo da crise que no 3.º quartel do séc. XIX( se manifesta no distrito de Viseu, mais do que no conhecimento dessa crise, reside no facto de ela melhor pôr era evidência determinados factos estruturais que de outro modo, dificilmente seriam observáveis. Assim, descobrimos que a sociedade que algumas corografias e algumas monografias locais com interesses pouco científicos pretendem mostrar sem problemas, nomeadamente de crescimento, afinal é uma sociedade que vive num limiar que, mal é ultrapassado, logo faz alterar o equilíbrio existente entre a demografia e a economia, instalando-se então uma crise demográfica. Por outro lado, ficamos assim com uma ideia do grau de dependência da sociedade rural que outros indícios como as pinturas de milagres permitiam vislumbrar (cf. o meu artigo "Uma investigação per fazer. As ‘pinturas de milagres", in História, 44, Lisboa, Junho de 1982, pp. 82-89).

Além disto, esta crise permite tirar uma outra conclusão: embora o Antigo Regime seja formalmente extinto com a Revolução de 1820, do ponto de vista demográfico existem ainda fortes sobrevivências em meados da 2.ª metade do séc. XIX pois que os retrocessos demográficos provocados por causas agrícolas são uma das suas manifestações mais características.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Demografia, economia e sociedade: a crise do 3.º quartel do séc. XIX», A Voz das Beiras, 523, 6-12-1984, pp. 5, 8.

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