Apontamentos para a
história de Viseu

A duração da vida: uma sondagem na longa duração

António João Cruz

Entre os numerosos problemas que se colocam à demografia histórica um é o da duração da vida humana.

Consequência de factores de diversa ordem, como sejam as condições alimentares e higiénicas, as condições económicas e políticas, as condições sociais e outras que não são tão visíveis ou que seria fastidioso enumerar aqui, cada indivíduo é um caso. Por isso, apenas nos interessam valores médios. Porém, não apenas valores médios que digam respeito a um conjunto populacional na sua totalidade, mas valores médios por grupos sociais, por grupos económicos e até mesmo por grupos profissionais, pois a história social só alcança os seus objectivos quando procede a essa abordagem diferencial (Albert Soboul, "Descrição e medida em história social", in A História Social. Problemas, fontes e métodos, Lisboa, 1973, p. 33.

Para os nossos dias, com maior ou menor dificuldade o cálculo desses valores 8 um trabalho que se consegue levar a cabo, sendo possível obterem-se valores relativamente seguros. No entanto, à medida que nos afastamos do nosso século os elementos estatísticos disponíveis escasseiam cada vez mais e esses cálculos tornam--se, ao mesmo tempo, progressivamente mais difíceis e menos rigorosos.

Um dos métodos utilizados para se ultrapassarem esses obstáculos recorre à contagem efectuada nos livros de registos paroquiais: dia após dia, mês após mês, ano após ano, os livros de registos de óbitos, desde que tragam a referência à idade (o que, infelizmente, em geral não acontece nos livros mais antigos), permitem-nos proceder a essa abordagem diferencial. Embora seja um método extremamente seguro, não obstante o facto de essa contagem não se efectuar sobre uma população fechada (Pierre Goubert, Cent Mille Provinciaux au XVIIe Siècle. Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, Paris, 1977, p. 51), para ser utilizado na longa duração h um método extremamente lento.

Na ausência desses preciosos registos ou quando os objectivos não pretendem ultrapassar os movimentos globais e as primeiras aproximações, torna-se necessário recorrer a outras fontes e utilizar outros métodos.

Um dos possíveis métodos para se efectuar esse estudo é o das micro-biografias, um método tão rico e seguro como ignorado (André Mansuy e Diniz Silva, "Une voie connaissance pour l'histoire de la société portuguaise au XVIIIe siècle; les micro-biographies (Sources-Méthode-Étude de cas)", in Clio, 1, Lisboa, 1979, pp. 21-65). No entanto, ainda não foi utilizado em estudos demográficos.

A sondagem ora empreendida é simultaneamente um teste ao valor desse método aplicado à história de Viseu e uma primeira aproximação num domínio tão importante e tão desprezado pela historiografia viseense.

Na impossibilidade de se conduzir esta sondagem em direcção a diversos grupos sociais foi escolhido apenas um. Necessariamente, se queremos encontrar as micro-biografias já elaboradas, apenas pode ser um grupo socialmente privilegiado. Neste caso, que outro poderia ser se não o do alto clero, o dos bispos de Viseu?

Durante anos, durante séculos, a historiografia viseense privilegiou esses homens em relação aos outros, escreveu-lhes, vezes sem fim, as biografias, transformou-os em personagens de primeira. Por isso, podemos esperar que o ano do nascimento e o ano da morte sejam duas datas fáceis de encontrar. Pura ilusão. No texto de Botelho Ribeiro Pereira (Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955), no de Pedro Augusto Ferreira (Portugal Antigo e Moderno, vol. XII, Lisboa, 1890), no de Fortunato de Almeida, (História da Igreja em Portugal, edição de Damião Peres, 4 volumes, Barcelos, 1967-1971) e no de Maximiano de Aragão (Viseu. Instituições Religiosas, Porto, 1928) se procurou. Porém, só no séc. XVI encontrámos essas datas. Antes, com dificuldade, mais não se consegue saber do que o tempo durante os quais esses homens foram bispos de Viseu. Depois, do Cardeal Infante D. Afonso até D. José da Cruz Moreira Pinto, só em 18 dos 33 casos sabemos simultaneamente o ano do nascimento e o ano da morte.

Estabelecida deste modo a série, vejamos alguns dos resultados.

Agrupando os bispos pelo ano da morte, temos que os que faleceram no séc. XVI tinham as idades de 31, 69, 77 e 57 anos, no séc. XVII, 76 75 e 61, no séc. XVIII, 85, 72, 86 e 56 anos, no séc. XIX, 81, 82, 79 e 74 e no séc. XX, 81, 60 e 77. Tomando os valores médios, vem que no séc. XVI a vida média dos bispos de Viseu é de 58 anos, no séc. XVII, 71, na séc. XVIII, 75, no séc. XIX, 79 e no séc. XX, 73.

Qual a importância destes valores?

Antes de mais, ele depende do significado que pudermos atribuir a esses números. Em primeiro lugar é preciso notar que eles apenas dizem respeito aos bispos de Viseu. Isto significa que eles não se podem generalizar à totalidade da população viseense; quando muito, apenas se poderão estender, com uma aproximação aceitável, a outros grupos pertencentes às classes privilegiadas, tais como os membros do Cabido ou alguns elementos da nobreza. Em segundo lugar, convém observar que, ao contrário do que aparenta, não se pode dizer que esta seja uma série homogénea. Sê-lo-ia se todos os prelados fossem naturais da região, se não tivessem vivido fora de Viseu. Porém, nada disso sucede: bispos houve que nunca estiveram na diocese, outros eram estrangeiros que só tarde entraram em Portugal. Ora, tomando o exemplo da alimentação, temos que os hábitos alimentares, por um lado tão diferentes de região para região e, por outro, com tanta importância na qualidade de vida, não poderiam deixar de registar as suas marcas. Finalmente, em terceiro lugar, devemos notar que temos um número reduzido de casos. Para que do ponto de vista estatístico pudéssemos estar seguros dos resultados era necessário que os exemplos tomados se multiplicassem: em vez de termos três ou quatro elementos em cada século deveríamos ter uns trinta ou quarenta.

Deste modo, é evidente que estes resultados apenas podem ser tidos como estimativas grosseiras. Porém, na ausência de outros dados poderemos utilizá-los tendo, no entanto, sempre presentes as reservas que eles nos suscitam.

Por eles vê-se que, como esperávamos, o balanço global dá um aumento da vida média, do séc. XVI ao séc. XX. Século após século, esse mesmo movimento, à excepção do último período (provavelmente devido às deficiências atrás apontadas) manifesta-se do mesmo modo. Até aqui nada há que não se pudesse prever. Pelo contrário, os dados novos que estaria fora do alcance das nossas previsões colocam-nos uma dúvida: com os valores apurados verifica-se que o mais importante aumento da vida média se dá do séc. XVI pau o XVII: ora, ele deu-se na realidade ou surge aqui apenas pelo facto de o valor estimado para o séc. XVI, devido à fragilidade da série, ser demasiado baixo? Por outro lado, caso esse movimento traduza aquilo que na realidade sucedeu, aconteceu o mesmo com a totalidade da população viseense?

Em conclusão, temos que os problemas que esses números nos levantam são sobretudo dois: o primeiro é o de sabermos qual é o crédito que lhes poderemos atribuir; o segundo é de sabermos até que ponto o movimento por eles traçada está de acordo com o que se passa com os outros grupos sociais e até mesmo com a globalidade da população.

Em qualquer dos casos, apenas a repetição das sondagens, no mesmo e em diferentes grupos sociais, com o mesmo e com outros métodos, permitirá esclarecer estas questões.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A duração da vida: uma sondagem na longa duração», A Voz das Beiras, 522, 29-11-1984, pp. 2, 8.

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