O percurso de uma
historiografia: O problema das origens de Viseu
António João Cruz
Desde o primeiro texto da historiografia visiense, pelo menos daqueles que até nós chegaram, as origens de Viseu são um problema não resolvido. Não que como tal ele tenha surgido perante esses homens. Nesses primeiros tempos da historiografia viseense a dúvida não aparece ainda como um caminho, o interrogar não é ainda um método. Porém, trata-se de um problema não resolvido: quanto mais não seja porque hoje não damos crédito a muitos dos testemunhos que então foram utilizados nem aceitamos as conclusões que então foram tiradas.
Normalmente, esse problema aparece quando se pretende saber a origem do nome de Viseu.
Nesse primeiro texto, o de Botelho Ribeiro Pereira (1636), encontramos já referências às opiniões que dão a Viseu os nomes de Visoncio e de Vesurium, tirados de diferentes edições de Ptolomeu, e à do autor, que opta por Viso. Com o passar do tempo a lista vai aumentando e, dois séculos e meio depois, no 1.º volume do Viseu de Maximiano de Aragão (1894), surgem os nomes de Lancia, Vacca, Vico-Aquario, Visoncio, Verruvium, Viso, Visonium, e Visoi.
Esse avolumar de hipóteses, todas ou quase sem fundamento algum que ainda hoje nos pareça válido, é significativo de um profundo desconhecimento. Ainda no nosso século ele se manifesta na polémica que nas primeiras décadas se estabelece sobre a qual a grafia a escolher entre Viseu e Vizeu.
Ao problema etimológico costumava seguir-se o cronológico.
Botelho Pereira diz ser a cidade "obra dos Romanos", fundada "mais de cem anos antes da vinda de Jesus Cristo" num meio em que viviam "bárbaros", "verdadeiros lusitanos" que eram "das gentes que vieram com Tubal" neto de Noé, e que haviam resistido a "uma grande e geral seca" ocorrida uns 1300 anos depois do dilúvio.
Aragão não ultrapassa a afirmação de que "a primeira notícia certa, constante de documentos autênticos, que se refere a Viseu e lhe dá este nome, é do século VI da nossa era "mas" em vista dos monumentos arqueológicos e históricos, não pode duvidar-se que a existência desta cidade remonta a uma grande antiguidade".
80 anos depois, em 1974, Alexandre de Lucena e Vale, numa tentativa de visão das origens de Viseu, fica-se por um "segundo a lição actual e unânime dos mais conceituados arqueólogos, Viseu como aglomerado humano terá sido inicialmente um castro pré-histórico a remontar pelo menos aos tempos neolíticos. Tanto confirmam plenamente os inúmeros testemunhos arqueológicos colhidos na área da cidade e suas imediações". O vocabulário aqui utilizado, todo ele vago nas atribuições traduz por um lado falta de segurança, por outro uma escassez de informação. E o confirmam plenamente quando quase não há testemunhos...
Cronologicamente, entre Aragão e Lucena e Vale fica o esforço de José Coelho, arqueólogo incansável, Porém o seu trabalho raramente ultrapassou o descritivo. Porque sentiu que lhe faltavam as pedras que lhe permitiriam. construir o edifício da visão global? Porque não se sentia preparado para esse trabalho? Porque, sempre solicitado por muitas direcções não teve oportunidade de meter ombros a essa tarefa? Dificilmente poderemos fazer mais do que constatar esse facto; dificilmente, por isso, poderemos optar por uma dessas explicações (1). Deste modo, o nome de José Coelho terá de ficar à margem deste percurso da historiografia viseense.
Os geógrafos foram aqueles que conseguiram ultrapassar a construção proposta por esses homens (que bem caberiam na designação de antiquários) e, pela primeira vez, resolveram alguns problemas e colocaram outros com fundamentos bem mais sólidos.
Eles não se preocuparam tanto com a origem etimológica, quanto à antiguidade foram mais críticos ao utilizarem apenas os testemunhos arqueológicos e foram além destes problemas quando tentaram procurar as principais causas que concorreram para a formação de Viseu.
Para Amorim Girão, nas palavras que escreveu para o Guia de Portugal (1944), para a zona mais baixa "a causa desse povoamento, nos tempos do Império, parece ter sido as importantes vias romanas que perto dali passavam" enquanto que para a colina da Sé teria sido o seu valor de defesa".
Para Orlando Ribeiro (1971) o desenvolvimento de Viseu deve-se ao facto de a colina da Sé possuir "a dupla vantagem do escarpado (...) e da proximidade do rio — modesto acidente que podia facilitar a defesa" e simultaneamente se encontrar junto à Cava — acampamento militar destinada a "garantir aos exércitos o abrigo de muros regulares mas de construção expedita" — que a tinha como "uma sorte de anexo social".
Estes são alguns dos passos dados em direcção ao conhecimento das origens de Viseu.
O caminho que hoje importa seguir é, antes de qualquer outro, o de reunir todos os testemunhos que digam respeito às origens de Viseu, sejam os arqueológicos, sejam os paleográficos, sejam os documentos escritos e tentar interpretá-los de novo. Utilizando novos métodos, abordando novos aspectos, levantando novas hipóteses, tirando novas conclusões.
Só então, só depois de se ter feito este "ponto da situação", devemos partir à busca de novos testemunhos, Só então eles poderão ser integralmente aproveitados e melhor compreendidos.
(1) Este texto, destinado a primeiro de uma série de artigos sobre as origens de Viseu que nunca cheguei a concluir, já há algum tempo se encontrava terminado. Hoje, quando o revi, continuo a achar que dificilmente se poderá explicar a ausência de interpretação na obra de José Coelho. No entanto, as reflexões que sobre as origens de Viseu encontrei no seu Caderno de Notas Arqueológicas n.o 31, fs. 51 e ss., a propósito da leitura do Santuário Mariano, de Fr. Agostinho de Santa Maria, sugerem-me que das três hipóteses formuladas a última não deve ser a menos importante.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «O percurso de uma
historiografia: o problema das origens de Viseu», A Voz
das Beiras, 521, 22-11-1984, pp. 6, 8.
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