Apontamentos para a
história de Viseu

Os lavradores em 1800

António João Cruz

No início do séc. XIX, segundo a legislação, os lavradores e seus fios são "nobres e hábeis para todos os cargos da república, assim políticos como militares"; não são "presos por dívidas civis, nem tomados para pagamento delas os seus bens, gados e instrumentos necessários da lavoura, nem a semente que lhes for precisa e que tiverem destinado para a cultura do ano seguinte"; para serem ajudados "em todo o caso se lhes deixará sempre um filho" que, deste modo, não presta serviço militar. Em contrapartida, "segundo a extensão e necessidade das terras do lavrador, assim próprias como arrendadas" é-lhes fixado a "qualidade, quantidade e número de cabeças" de gado que deve possuir; "e o que o exceder ou não encher, sem justa causa, pagará por cada cabeça que tiver de mais ou de menos a taxa de 20 réis" (Pascoal de Mello Freire, Antologia de Textos Sobre Finanças e Economia, Lisboa, 1966, pp. 304-307).

Daqui podemos concluir que os lavradores, em 1800 são produtores agrícolas de grandes dimensões. Trabalham a terra (que pode não ser sua) com um objectivo: produzir mais do que consomem. Por isso, deles estão dependentes todos aqueles que se não dedicam à agricultura ou, dedicando-se, com essa actividade não conseguem suprir integralmente as suas necessidades alimentares. Assim, na ausência em 1800, de uma estrutura de transportes terrestres que permita transportar grandes quantidades de alimento a grandes distâncias, os lavradores devem estar associados às regiões onde o autoconsumo tem um papel menos importante. Isto significa que eles devem cercar as aglomerações onde a feição urbana é mais forte, onde a proporção de homens que não dedicam à agricultura é, pelas características sociais e demográficas que o povoamento aí assume, relativamente diminuto.

Esta é a imagem que os textos legais nos permitem construir, estas são algumas das conclusões que deles podemos tirar. Porém, isto mesmo significa que pode haver outras imagens transmitidas por outras fontes. Legislação e fraude são dois termos que sempre andam associados.

Por isso, interessa saber de um modo mais real o que é um lavrador em 1800.

Na sua tese de história agrária, Albert Silbert define-o do seguinte modo: "no Alentejo, explorador duma herdade; na Beira Baixa, agricultor possuidor de, pelo menos, um par de bois" (Le Portugal Méditerranéen à la fin de l’Ancien Régime, 2.ª ed., Lisboa, 1978, vol. III, p. 1166), Em Viseu, embora não existam dados seguros e precisos, alguns documentos (entre os quais aquele que adiante se apresentará) permitem concluir que lavrador terá um significado bastante próximo daquele que A. Silbert encontrou na Beira Baixa. Em qualquer dos casos podemos notar que a dimensão que lhe é dada pela herdade ou pelo par de bois o coloca fora da produção destinada ao autoconsumo. Na ausência de outros testemunhos mais não podemos do que ficar com esta ideia, no entanto vaga como os limites que nos são propostos pelo complicado sistema de estratificação social vigente no Portugal rural do Antigo Regime: o lavrador é um produtor agrícola que tem como objectivo a obtenção de excedentes destinados à comercialização.

Dada esta importância económica, para um correcto conhecimento da vida económica e social de Viseu devemo-nos informar do seu número, quer dizer, do seu peso nesse quotidiano.

Um manuscrito até hoje inédito e que se guarda na Biblioteca Municipal de Viseu, o Livro para nele se escrever o arrolamento de todos os lavradores da cidade e seu termo, datado de 1807, permite-nos fazer uma estimativa desse número. Conforme, mais tarde, o artigo 82 da Colecção de Posturas Municipais de 10 de Dezembro de 1852 consagra, os lavradores do concelho devem, em cada ano, dar "dois dias de serviço – um em 1807 – de bois ou vacas" "para o conserto dos caminhos e limpeza das fontes de uso comum". Por isso se procedia ao arrolamento dos lavradores do concelho. O manuscrito ora divulgado é um desses inventários, um precioso testemunho sobre a dimensão de um grupo social ainda que tenha as desvantagens de ser um documento oficial.

Na impossibilidade de aqui se fazer um tratamento pormenorizado dos dados que nos são transmitidos por ele, apenas se apresentarão algumas estimativas globais.

Antes de mais, podemos contar o número dos lavradores do concelho: se todos eles estão recenseados são, em 1807, 1931. O seu peso na sociedade viseense pode ser bastante elevado; porém, este número apenas, nada nos diz. Para ter algum significado é necessário compará-lo com outros números: com o número de lavradores em outras épocas, antes e depois de 1807, com o número total de habitantes e até com o número de lavradores noutras regiões.

Neste momento, limitemo-nos apenas à comparação com a população do concelho.

Aqui surge-nos um problema: o de conhecer a população do concelho de Viseu. Como nenhum recenseamento foi realizado em 1807 temos que utilizar os que foram abalizados em anos mais próximos. Existem referências a um recenseamento realizado em 1805; porém, como dele apenas se conhece o número total de fogos existentes em Portugal é, para nós, de todo inaproveitável. Em 1801 realizou um recenseamento que é tido por bastante rigoroso. Infelizmente, pouco pais de nos dá que os quantitativos demográficos para o concelho: 7.982 fogos e 33.374 habitantes (INE, Subsídios para a História da Estatística em Portugal, vol. II, Lisboa, 1948).

Temos, assim, que os lavradores representam 5,8 % da população total do concelho e as casas de lavradores 24,2 % do número de fogos, valor este com bastante mais significado que o primeiro. Se pretender-mos fazer correcção ao número de fogos e de habitantes, utilizando fazer uma correcção ao número de fogos e de habitantes, utilizando uma taxa de crescimento anual de 0,6 % (sobre a escolha deste valor veja-se o meu trabalho «A demografia viseense (Séc. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo», a publicar na Beira Alta), temos, respectivamente, 8.274 e 34.594. Vem, deste modo, que no concelho 23,3 % dos fogos pertencem a lavradores.

Este é um valor médio, diz respeito à totalidade do concelho de Viseu. No entanto, podemos ter a certeza que o peso dos lavradores não é igual em todo o concelho: provavelmente será mínimo na cidade, começará a aumentar à medida que caminharmos para os arrabaldes e terá um valor máximo nas zonas eminentemente rurais. Porém, mesmo nestas a sua distribuição não será uniforme: provavelmente os lavradores preferirão aquelas onde mais facilmente poderão comercializar os seus produtos.

Para conduzirmos a análise nessa direcção é necessário comparar o número de lavradores freguesia por freguesia. No entanto, para isso não podemos utilizar os números do recenseamento de 1801 que apenas nos dá quantitativos globais. Temos então que recorrer ao censo de fogos realizado em 1798 (Joaquim Veríssimo Serrão, A População em Portugal em 1798, O censo de Pina Mangue, Paris, 1970). Porém, a qualidade deste recenseamento parece ser bastante inferior à qualidade do recenseamento de 1801. Podemos, no entanto, utilizando o número total de fogos do concelho, calcular a percentagem de fogos de lavradores e compará-la com os 23,3 % obtidos através da estimativa do número de fogos em 1807. Deste modo, obtém-se um factor de correcção que servirá para corrigir os valores obtidos ao nível das freguesias. Como em 1798 são recenseados 7344 fogos no concelho de Viseu, vem que o peso das casas de lavradores é de 26,3 % ou seja mais três pontos que o atrás calculado.

Assim, podemos fazer esses cálculos para cada freguesia e, ao resultado obtido diminuir os três pontos de correcção. Deste modo, obtém-se os seguintes resultados: para a cidade e arrabaldes 10,5 %, para as freguesias a 1 légua de Viseu, 26,7 % a 1.5 léguas 36,3 %, a 2 léguas 27,1 %, a 2,5 léguas 24,8 %, para as freguesias mais afastadas 23,7 %.

No concelho de Viseu o grande centro consumidor é a cidade. Por isso, os números que acabámos de obter estão de acordo com o que se poderia esperar: a distribuição dos lavradores no espaço é função da distância aos consumidores. Junto a Viseu a propriedade deve estar mais repartida e o seu preço será provavelmente, mais elevado, o que aumenta os custos de produção. Por outro lado, com a distância aumentam os custos dos transportes. A utilização agrária do solo depende, por isso, desses factores que variam de forma diferente com a distância: os factores favoráveis aumentam dentro do círculo de légua e meia de raio e, assim, aumenta também o peso dos lavradores; por outro lado, a partir dai os obstáculos predominam e, por isso, o peso dos lavradores diminui.

Este modelo não está ainda completo. Os lavradores formam, sem dúvida, um grupo social; porém, nem todos têm a mesma importância, seja económica, seja social. Por certo há alguns, os grandes lavradores, que se erguem acima dos outros. Mas, quantos são? Qual o seu peso?

Os lavradores que não quisessem dar um dia de trabalhe podiam., em substituição, pagar 960 réis para que outros em seu lugar o fizessem. Este é precisamente o preço do trabalho jornaleiro com um par de bois na cidade do Porto nesse ano de 1807 (Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monaies au Portugal, Paris, 1955, p. 83). Ora, assim fizeram 47 lavradores ou seja 2,4 % do total. Muito provavelmente estes serão os grandes lavradores. A ser assim, a sua importância está perfeitamente de acordo com o que se passa no Alentejo onde, em 1774, o número de grandes lavradores foi estimado em 2 %. (A. Silbert, op. cit., vol. II, p. 793).

É evidente que as estimativas atrás feitas não nos dão números exactos. Pedir-lhes isso seria pedir que todos os lavradores do concelho, em 1807, estivessem inventariados, que os recenseamentos de fogos e de habitantes nenhuma habitação e nenhum habitante deixassem de fora, que as taxas de correcção utilizadas traduzissem rigorosamente a realidade. Como, de certeza, nada disso acontece, estas estimativas, são apenas estimativas, dão-nos apenas ordens de grandeza e valores aproximados.

É também evidente que os problemas aflorados nesta sondagem não esgotam os problemas que podemos abordar sobre os lavradores em 1807. Para enumerar só alguns, o tamanho da propriedade, a sua posse, as formas de cultivo, o peso dos lavradores na vida do concelho, o seu quotidiano viver, as suas ideologias e modos de sentir e de pensar, podem servir de exemplos que, mesmo assim, facilmente se poderiam multiplicar.

Todas as contribuições são bem vindas. Esperemos que brevemente mais alguma coisa se saiba sobre esses homens.

 

Nota: A distância de cada freguesia à cidade de Viseu foi tirada do mapa elaborado em 1838 por José de Oliveira Berardo (Notícias de Viseu, ms. da BMV). Segundo Adrien Balbi (Essai Statistique sur le Royaune de Portugal et d'Algarve, t. I, Paris, 1822, p. 473) cada légua tinha 6,18056 km.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Os lavradores de 1800 (1)», A Voz das Beiras, 519, 8-11-1984, pp. 5, 8; 520, 15-11-1984, pp. 5, 8.

Artigo em formato pdf