Apontamentos para a
história de Viseu

O castro de Viseu. Algumas dúvidas e alguns problemas

António João Cruz

Diz-se, normalmente, que na colina da Sé existiu um castro. Por vezes só isto. Por vezes acrescentam-se algumas precisões: "a cinta exterior das muralhas deste castro pré-histórico deveria abranger não só a colina da Sé mas a vizinha colina do Soar"; "a colina da Sé, protegida por uma cinta de muralhas, deveria ser o último reduto fortificado deste castro" (José Coelho, "Monumentos de Arqueologia e História Militar do Concelho de Viseu", Distrito de Viseu, n.º 439, 10/3/1938); "castro pré-histórico a remontar pelo menos aos tempos neolíticos" (A. de Lucena e Vale, "Viseu Antigo", Beira Alta, 1974, n.º 3); "a colina da Sé, o cimo e a encosta do Nascente hão-de ter sido refúgio e morada breve de pastores e cultivadores de um núcleo castrejo provável" (Alberto Correia, Roteiro Turístico do Distrito de Viseu, 1981). Porém, as obras que sempre se têm feito nessa colina ou nos esconderam todos os vestígios ou os destruíram.

Por isso, na realidade, o castro de Viseu não passa de uma hipótese. Os testemunhos tardios apresentados por Amorim Girão e por José Coelho não parecem ser mais do que um equívoco (Orlando Ribeiro, "Em torno das origens de Viseu", Revista Portuguesa de História, 1971): por um lado, a referência ao "castro vesense" na História Silense publicada por Florez não passa de uma referência a uma fortificação medieval; por outro, a referência à "crasta" que José Coelho encontrou num alvará de D. João III é, sem dúvida, uma referência ao claustro da Sé e não uma referência ao castro de Viseu.

Na ausência de testemunhos materiais tem-se utilizado o paralelismo geográfico que se vê entre a colina da Sé e os montes de Santa Luzia e da Senhora do Crasto, para se admitir a existência de um castro em Viseu. No entanto, também estes argumentos geográficos nunca foram muito bem definidos.

Que consequências advêm daqui?

Ao se admitir apenas por simples paralelismo geográfico a existência de um castro na colina da Sé está-se simultaneamente a admitir que o processo histórico é regido por leis deterministas: as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Porém, enquanto nos castros de Santa Luzia e da Senhora do Crasto houve uma ruptura no povoamento, no pretenso castro de Viseu não a houve ou, pelo menos, o povoamento foi mais tarde reatado, sem que dessa descontinuidade nos tenha chegado algum testemunho, A admitimos essas leis deterministas também hoje deveríamos encontrar no cimo desses dois montes duas outras povoações que continuassem o povoamento iniciado ou continuado pelos castros. Ou então, entre a formação dos castros e o seu abandono, causas internas ou externas, tanto faz, modificaram as iguais condições geográficas antes existentes, e por isso, o destino desses três povoados se tornou diferente. Neste caso importaria então procurar e explicar essas causas.

A ocupação romana poderia ser uma dessas causas. A escolha pelos ocupantes romanos do local onde hoje se encontra Visai para ai construírem a Cava e outras edificações poderia ser um factor de desenvolvimento importante. Tornou-se mais densa a população. A atracção sobre os povoados mais próximos tornou-se bastante mais forte, tanto que foram então abandonados. A explicação é simples e sugestiva. Porém tem dois fortes obstáculos pela frente. Em primeiro lugar, nem no castro de Santa Luzia nem no castro da Senhora do Crasto surgiram até hoje testemunhos seguros de uma ocupação romana. No castro de Santa Luzia, onde recentemente foram efectuadas escavações arqueológicas, não se encontrou sequer nenhuma ocupação em que o ferro fosse conhecido. Por isso, o seu abandono deu-se muito antes da chegada dos romanos. Por outro lado, seria então necessário, também aqui, procurar e tentar explicar a preferência romana pelo povoado existente no local onde hoje está Viseu. Apenas o acaso? Ou houve causas geográficas ou estratégicas que levaram a essa escolha? Então iríamos contra a hipótese inicial de ser comum aos castros de Santa Luzia, Senhora do Crasto e Viseu um mesmo ambiente geográfico. Então não poderíamos falar do castro viseense apenas por paralelismos geográficos que não existiram.

Podemos então avançar com outra hipótese; as causas que mais directamente concorreram para que o destino do castro de Viseu não fosse o mesmo que os dos castros de Santa Luzia e do Crasto surgiram bastante antes da ocupação romana Infelizmente, por causa das obras que todos os séculos fizeram na colina da Sé, dificilmente se encontrará nesse terreno qualquer indicio do que procuramos: que causas e como actuaram Daí o interesse redobrado das escavações realizadas nos outros dois castros pois é razoável supor que as causas que favoreceram o castro de Viseu se opuseram ao desenvolvimento de Santa Luzia e da Senhora do Crasto. Assim, poder-se-iam buscar nesses dois castros os testemunhos que em Viseu já não existem ou, se existem, já não estão acessíveis. Porém só enquanto for possível Porque dentro em breve também em Santa Luzia deixarão de existir esses testemunhos por causa da exploração de quartzo que destrói o monte. Em suma: enquanto os castros de Santa Luzia e do Crasto não forem devidamente explorados dificilmente se conseguirá saber o que aconteceu com o castro viseense.

Neste caso uma das coisas que nos espanta é o facto de na ausência de quaisquer testemunhos que nos permitam ter a certeza de que em Viseu existiu um castro, se adiantar já a reconstituição de alguns dos seus elementos (a cronologia e a topografia). Que significado tem falar-se das muralhas de um castro que não se sabe se existiu?

Isto tudo não é negar a existência de um castro em Viseu. É apenas negar a validade dos argumentos até hoje apresentados. Não significa isto que no futuro outros elementos venham a esclarecer esta questão e possamos então afirmar com segurança que os elementos castrejos foram de importância para o desenvolvimento de Viseu. Este é o único caminho que podemos seguir. Dar como possível a existência de um castro na colina da Sé pelo facto simples de ainda se não ter provado o contrário é utilizar argumentos que servem para admitir, em qualquer Tempo e em qualquer lugar, o que se quiser. Que história é esta que assim se faz?

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «O castro de Viseu. Algumas dúvidas e alguns problemas», A Voz das Beiras, 511, 13-9-1984, p. 5.

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