Apontamentos para a
história de Viseu

Viseu: o problema da origem dos homens

António João Cruz

Quando chegaram os homens e aqui se estabeleceram? De onde vieram e porquê?

As respostas a estas questões foram dadas com toda a precisão pela historiografia anterior ao século XIX. Pelo menos até Noé se conseguia traçar a genealogia dos habitantes da cidade. Hoje essas origens foram negadas mas não se sabe muito bem quais se hão de lhe contrapor. Pode-se dizer que a região era habitada há uns 5 milénios mas do modo como vivia essa população que construiu os dólmens sabe-se muito pouco. Para trás, então a escuridão é completa. E saber como se processou esse povoamento, se de um modo continuo se através de sucessivas rupturas, é ponto sobre o qual nada se pode dizer por pouco que seja.

Isto não significa que sejam escassos os testemunhos arqueológicos, o que pode sugerir uma fraca ocupação demográfica. Se anteriores ao megalitismo são completamente desconhecidos, para épocas posteriores a nossa ignorância deve-se mais à ausência de investigação arqueológica do que à inexistência de testemunhos.

Os achados mais remotos provenientes da zona onde hoje se situa a cidade não passam de simples machados de 1 pedra a que um topónimo, aparentemente, dá mais valor.

Pedras Alçadas, tal é o sítio onde um dos machados foi encontrado (José Coelho, Cadernos de Notas Arqueológicas, n.º 2, manuscrito inédito doado à Câmara Municipal de Viseu), é um nome sugestivo a querer significar a existência de qualquer monumento de grandes pedras levantadas. Um dólmen? Um menir? Qualquer deles seria possível, mais um dólmen do que um menir (que no distrito de Viseu são raros), mas vestígios dessas construções não foram nunca aí encontrados nem tradição alguma disso fala. Não podemos, por isso, apenas com esse topónimo testemunhar o povoamento dessa zona em tempos megalíticos. Tanto mais que ele poderá ter outra origem, como "umas pedras alçadas com as insígnias da Ordem de Malta" que umas memórias de 1876, as de Francisco Manuel Correia (Beira Alta, 1974, n.º 2), dizem que "havia" junto ao "caminho que passa ao sul do cemitério " e que demarcavam os limites do concelho de Ranhados, da Comenda da Ordem de Malta.

Um outro machado surgiu na zona da Sé. Foi recolhido a 14 de Dezembro de 1954 por José Coelho que registou as condições de achado no seu Caderno de Notas Arqueológicas, n.º 109: "Cerca das 16 h. colhi em desaterro da Capela-Mór da Sé de Viseu, a cerca de 2 m de profundidade, um machado de pedra (diorito?) polida com mossas antigas no gume e no extremo oposto Colhi-o no Adro da Sé pouco depois de ter sido vazado o entulho, vendo a seguir, in loco, o sítio donde foi levado. 0 entulho (era) constituído de terras negras devido a restos de seres orgânicos, pedras, cascalho e cerâmica vária, grossa à mistura com tegula romana e tijolo ".

Um terceiro machado e um polidor foram encontrados na Quinta da Via Sacra (José Coelho, Cad. Notas Arq., n.º 117) e um quarto machado no Largo Mouzinho de Albuquerque (J. Coelho, "Monumentos de Arqueologia e História Militar do Concelho de Viseu ", Distrito de Viseu, n.º 439, 10/3/1938) segundo nos informa José Coelho que, no entanto, não acrescenta pormenores. Não é possível, por isso, tentar identificá-los com os machados da sua colecção arqueológica encontrados no perímetro urbano de Viseu e que estão catalogados com os n.os 83,120 e 122 (Alberto Correia, Celso Tavares da Silva, João Luís Vaz, "Catálogo da Colecção Arqueológica 'Dr. José Coelho' ", Beira Alta, 1979, n.º 3).

Ora, apenas com estes testemunhos arqueológicos não podemos falar do povoamento pré-histórico de Viseu. É um número demasiado reduzido e, por outro lado, quase nada sabemos sobre as condições de achamento desses objectos. Além de que se trata de achados avulsos, em que qualquer deles não tem ligação nenhuma com os restantes. Por isso, aquilo que eles nos podem testemunhar é, apenas, a passagem por este local dos homens que fizeram esses utensílios. Passagem apenas? Demoraram algum tempo? Estabeleceram os fundamentos de uma vida sedentária? Nada se pode concluir destes achados. E, no entanto, como resistir à tentação de com eles pretendermos testemunhar um povoamento que nunca se pôs em causa. Porem, quando se pretende encontrar a genealogia de um povoamento não são estes casos de passagens que nos interessam mas apenas os casos em que existe um povoamento fixo nesse local e que nos pode ser testemunhado apenas por outro tipo de testemunhos arqueológicos como, por exemplo, os monumentos megalíticos. Nesse outro tipo de povoamento, em que há uma ocupação efectiva do espaço que nos interessa, ai sim, podemos tentar procurar as linhagens de um povoamento posterior. Porém, quando se trata de uma cultura que poucos testemunhos materiais nos deixou da vida quotidiana (convém recordar que os monumentos megalíticos são monumentos funerários em que surgem algumas oferendas de objectos utilizados durante a vida), quando se trata de uma cultura de que não conseguimos encontrar os povoados, essa procura só se pode fazer numa área alargada e não apenas num espaço tão limitado como é o local onde se veio a desenvolver uma povoação.

Por isso é necessário procurar à volta de Viseu. Embora, podemos ir certos de antemão, dificilmente encontraremos respostas precisas para as nossas interrogações. Porque o espaço que então estudamos já não é o mesmo e não podemos depois limitar a uma parte bastante pequena o que foi adquirido para o todo. Ou seja: então não poderemos falar das origens do povoamento da cidade de Viseu mas apenas das origens do povoamento da região escolhida.

Próximo da cidade de hoje, os núcleos dolménicos  mais importantes são, segundo relação elaborada por José Coelho ("Viseu Arqueológico", O Século, 16/9/1934), os de Vale de Fachas (Travassos), da Lobagueira (Couto de Cima) e do Senhor do Pedrão (Torredeita). Um pouco mais afastados os de Cota, Queiriga e do Sátão, estes bastante importantes pelas manifestações pictóricas que encerram como também o núcleo da Lobagueira. A esta lista podemos hoje acrescentar o dólmen do Cabecinha da Orca (Silgueiros) (Filipe Jorge do Couto Xavier, O Dólmen Violado do Cabecinho da Orca — Viseu, comunicação inédita ao 3.º Colóquio Nacional Juvenil de Arqueologia, 1973). No total, segundo números apurados por Vera Leisner, 60 dólmens no concelho de Viseu (Celso Tavares da Silva, Monumentos Pré-Históricos e sua Distribuição, comunicação policopiada apresentada ao I Encontro Distrital de Viseu para a Conservação do Património Artístico e Cultural, 1978).

Esta densidade de dólmens sugere-nos, certamente, uma demografia forte nesta região. Porém, que relação podemos estabelecer entre esta população e as origens de Viseu? Será que foi esta população que veio a estabelecer um povoado no local onde hoje existe a cidade? Será que pelo menos, os que primeiro se estabeleceram neste local foram seus descendentes? Ou, pelo contrário, houve uma ruptura no povoamento desta região? Ou, não a havendo, de qualquer modo o povoamento neste local só mais tarde se veio a fazer e com homens de outras origens?

Estas são algumas questões a, que, por enquanto, não podemos dar resposta. Pode ser que algum dia...

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Viseu: o problema da origem dos homens», A Voz das Beiras, 492, 12-4-1984, pp. 3, 8.

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