Apontamentos para a
história de Viseu

Viseu e a arqueologia.
Esboço de levantamento de uma situação

António João Cruz

A historiografia viseense anterior a este século, salvo alguns casos pontuais (Oliveira Berardo, por exemplo), utilizou como fonte única os testemunhos escritos guardados em bibliotecas e arquivos, testemunhos nobres, redigidos por uma classe superior para uma minoria de privilegiados. Ainda que para os últimos séculos eles sejam bastante abundantes, para além do séc. XVI eles diminuem rapidamente: da Idade Média são já bastante escassos e de trás nenhum nos chegou. Por isso, a historiografia anterior ao séc. XIX mais não pode do que apresentar-nos uma construção mítica para o problema das origens de Viseu. Pelo menos, até Noé se conseguia traçar a genealogia da cidade (Manuel Botelho Ribeiro Pereira, no séc. XVII, é o melhor exemplo).

A classificação dos outros vestígios materiais dos homens como fontes históricas foi um resultado imediato dessa impossibilidade de estudar as origens Viseu de uma forma científica. Vestígios materiais dos homens: os que resistiram ao tempo e aos próprios homens. Vestígios materiais apenas: porque os pensamentos e as emoções perderam-se. Completamente.

A interpretação de alguns desses testemunhos materiais permitiu que ainda que de um modo nada sistemático, as origens de Viseu começassem então a ser estudadas. E embora elas pouco mais sejam do que um conjunto de dúvidas podemos já levantar algumas questões fundamentadas e colocar algumas hipóteses assentes em algumas bases bem mais sólidas do que as que serviram aos sécs. XVII e XVIII.

Se mais nenhum contributo nos pudesse dar a arqueologia para o traçado da história de Viseu já nos tinha dado um bastante importante: permitiu-nos renunciar às origens míticas que nos foram propostas pelos sécs. XVII e XVIII.

Porém, quando a arqueologia pretende interpretar os vestígios materiais dos homens com vista à recuperação do sai passado, fórmulaa que cronologicamente nada tem de restritivo, fa-zê-la apenas para as origens é subestimá-la. Se para os séculos de antes da escrita o seu contributo é único, surgida ela, a arqueologia pode dar-nos uma outra visão dos homens ou completar a visão elaborada com os documentos escritos. A arqueologia industrial, de que recentemente se começou a falar em Portugal, é uma tentativa disso. Mas entre a arqueologia romana e a arqueologia industrial há um espaço de milénio e meio possível de ser arqueologicamente interpretado.

Daqui tira-se uma lei que deveria estar presente em nós: todos os vestígios materiais do homem, desde que inseridos no contexto de que são parte, pode-os a arqueologia interpretar independente da idade que tiverem como do material de que são feitos. As pedras, a cerâmica, os ossos e os metais são dados arqueológicos. Como também o são a madeira, os tecidos, os alimentos, o vidro, os textos, as palavras... E tanto faz que sejam testemunhos pré-históricos, proto-históricos, romanos, medievais, do séc. XVI ou do séc. XVIII, de 1900 ou de 1984. Todos os vestígios materiais do homem são testemunhos arqueológicos.

Por isso, a existência de umas muralhas a cercar a cidade antes das muralhas ditas afonsinas será um desses temas que só a arqueologia poderá resolver uma vez que as tradicionais fontes escritas pouco nos adiantam. A Sé de Viseu é outro exemplo que se poderia facilmente multiplicar: pouco ou nada se sabe sobre o templo que existiu na colina onde hoje se encontra a catedral que conhecemos, pouco ou nada se sabe sobre os outros edifícios que aí se edificaram.

No entanto, a arqueologia em Viseu não fez nunca parte de um plano global previamente organizado e com objectivos precisos que nunca existiu. Escavações quase que ainda não foram empreendidas. Na cidade não o foram nunca e, por isso, os testemunhos arqueológicos de que hoje dispomos foram todos recuperados soltos de um contexto que melhor os definisse e que mais os valorizasse. Em Viseu, cidade, o acto de metodicamente e segundo regras científicas se procurar os vestígios materiais de outros tempos foi substituído pelo acaso das obras de saneamento, da abertura de ruas e da construção de edifícios (assim se descobriram, por exemplo, em 1818 e 1975 a necrópole do Cerrado e em 1951 a necrópole da Av. Emídio Navarro).

Por outro lado, os que, fora dos organismos oficiais, fizeram da arqueologia um programa de trabalho não tiveram da parte dessas entidades os apoios que mereciam. Não os teve José Coelho que, por vezes, teve que lutar contra as ordens camarárias. Postumamente se lhe prestou homenagem; uma exposição da sua colecção arqueológica na Feira Franca em 1980 e um número da Beira Alta lhe foi dedicado. Porém, no seu tempo nunca o seu trabalho foi apoiado. Amorim Girão, ainda que não tão especificamente interessado na arqueologia da cidade, passou despercebido. O casal Leisner mais ainda. Assim foi durante a 1." metade do século. Assim é nos nossos dias: o Centro Juvenil de Arqueologia e Etnografia de Viseu depois de uma década de vida rica de várias campanhas de escavação e de inúmeras exposições desapareceu porque não teve uma sede onde os seus materiais se guardassem e seus membros se reunissem.

Hoje, além de alguns investigadores com outras ocupações profissionais e que para a arqueologia deixam apenas os tempos livres, Viseu não tem nenhum grupo de arqueologia organizado que, pelo menos, numa situação em que surjam objectos de interesse arqueológico os possa recolher e estudar convenientemente para que maior se torne o nosso conhecimento do nosso passado. Para que maior seja o conhecimento de nós.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Viseu e a arqueologia. Esboço de levantamento de uma situação», A Voz das Beiras, 490, 29-3-1984, pp. 4, 8.

Artigo em formato pdf