Apontamentos para a
história de Viseu

A imprensa periódica visiense

António João Cruz

Importância e situação do seu estudo

A imprensa periódica é um dos tipos de fontes que mal começaram a ser exploradas. Problema não apenas da historiografia viseense, mas problema de toda a historiografia nacional. Porém, hoje esboçam-se movimentos que tendem a descobrir o valor desses testemunhos sociais para além das informações ocasionais que por vezes prestavam à historiografia tradicional. Movimentos esboçados, apenas — há que sublinhá-lo. Ténues.

Depois dos trabalhos isolados de José Tengarrinha, hoje começam a surgir alguns artigos sobre a importância da imprensa periódica como fonte privilegiada da história social e sobre a necessidade de se proceder ao seu inventário. Neste momento, essa parece-me ser uma das preocupações dos investigadores ligados à Análise Social - pelo menos, a frequência com que nos últimos números têm surgido essas abordagens parece legitimar essa conclusão.

Qual a importância destas fontes? De onde lhes vem?

Se outro valor não tivesse a imprensa periódica, o de testemunho de outros tempos tê-lo-ia certamente. Como todas as outras manifestações materiais dos homens. Testemunho de um tempo e de um lugar. E daí já tiraríamos nós muitas vantagens: entre outras, a facilidade da interpretação destes testemunhos (comparada, por exemplo, com a dificuldade de interpretação de uma catedral gótica ou de uma sinfonia do romantismo), a massa enorme de informação que nos transmite por causa da sua relativa abundância a partir de determinado momento e a cronologia rigorosa que nos fornece.

Porém, uma das feições desta importância mais geral de testemunho de outros tempos manifesta-se no facto de a imprensa periódica ter uma estratigrafia social bem definida: cada grupo profissional, cada grupo cultural, cada grupo político tem um pequeno jornal ou um pequeno boletim com o qual pretende reforçar uma união. Realidade de hoje, realidade de ontem. Acresce a isto que, muitas vezes, esses jornais são os únicos testemunhos de maneiras de ser e de pensar que a informação oficial não conseguiu dominar. Então, esses documentos permitem-nos ver dos dois lados. Enriquecem-nos a visão.

Daqui a importância excepcional da imprensa periódica como fonte de história social.

No caso concreto da imprensa periódica de Viseu há mais um facto que lhe reforça a importância: frequentemente alguns estudiosos do passado viseense aí tem publicado numerosos artigos. José Coelho é o paradigma: durante o segundo quartel do séc. XX publicou nos jornais de Viseu algumas centenas de artigos, muitos dos quais nunca foram até hoje reunidos em volume. No século passado. Oliveira Berardo publica em O Liberal as suas "Notícias Históricas de Viseu", artigos muito citados mas que poucos leram porque é difícil o acesso a esse jornal. Maximiano de Aragão e Amorim Girão são outros exemplos que se poderiam multiplicar.

Porém, é difícil a consulta de muitos jornais viseenses; em alguns casos será mesmo impossível.

Em primeiro lugar, porque não há ainda nenhum inventário completo da imprensa periódica de Viseu. Por isso não sabemos onde procurar esses periódicos. Hoje dispomos do inventário de Maximiano de Aragão publicado em 2.ª edição em 1900 (A Imprensa no Districto de Vizeu. Fragmentos históricos), da actualização que, para o concelho, lhe foi feita por A. Campos, de que só foi publicado um resumo no Noticias de Viseu, de 23/4/1922, e no Jornal da Beira, de 16/3/1923 (o inventário mais pormenorizado constitui a l.ª parte do seu Registo Bibliográfico e Jornalístico Viseense, manuscrito que se guarda inédito na Biblioteca Municipal de Viseu), e pouco mais. Como se não fosse suficiente, os inventários (melhor seria dizer os subsídios de inventários) foram realizados de maneira desigual e com orientações diferentes; por outro lado, na sua maioria, são constituídos só por alguns elementos àcerca de cada jornal como o período de publicação, os interesses preferencialmente manifestados, a periodicidade, a direcção e o conselho de redacção. Hoje, estes elementos, são, certamente, insuficientes. Hoje, a procedermos a esses levantamentos, muitas outras informações nos interessariam. Por isso, pior é a nossa situação.

Um segundo factor a dificultar o acesso à imprensa periódica viseense é o da dispersão dos núcleos existentes. Os dois mais importantes são o da Biblioteca Municipal de Viseu (pode-se ver um inventário dos periódicos aí existentes no meu "Viseu. Roteiro bibliográfico" na Beira Alta, 1981 n.° 4) e o da Biblioteca Nacional, de Lisboa. No entanto, num e noutro há muitas faltas que não sabemos onde completar. Por outro lado, não sabemos sequer que outros núcleos há — porque os há certamente.

Não admira, assim, que na historiografia viseense estas fontes não tenham nunca sido exploradas sistematicamente. No entanto, Viseu ocupa um lugar importante na história da imprensa periódica nacional, pelo menos em determinado momento. Por exemplo, segundo José Tengarrinha ("Imprensa" no Dic. de Hist. de Portugal), entre 1894 e 1900 Viseu é o 5.° distrito com mais periódicos, logo depois de Lisboa, Porto, Braga e Coimbra. Porém, quem estuda esta fonte inesgotável?

Uma fonte de história social

O ponto de partida deste esboço de abordagem à problemática da imprensa periódica viseense como fonte de história social é o levantamento efectuado por Maximiano de Aragão em 1900 e continuado por A. Campos até 1923 Registo Bibliográfico e Jornalístico Viseense, ms. da BMV). Porque depois não encontramos nenhum inventário que se pretenda exaustivo há um limite cronológico que não se ultrapassou.

Segundo a classificação da imprensa periódica viseense elaborada por A. Campos, entre 1848 e 1922, 21 por cento dos periódicos são de características académicas, 16,8 por cento republicanos, 16 por cento católicos, 10,1 por cento monárquicos, 9,3 por cento literários. A importância que assim se entrevê é, no entanto modificada se atentarmos na duração de cada jornal Os jornais académicos raramente ultrapassam os 40 números publicados, os republicanos são também de pouca duração como todos os outros referidos, à excepção do Districto de Vizeu, do Partido Progressista de que na 1.ª série se publicaram 1089 números. Pelo contrário, dos 3 jornais operários, de um, A Voz da Oficina, publicam-se 1219 números entre 1898 e 1921 e de O Viriato, jornal que se diz político, instrutivo e comercial, saem 3798 números entre 1855 e 1892. "Por tal forma se popularizou esta folha — escreve A. Campos em 1923 — que ainda hoje na Beira muita gente emprega o termo "Viriato" para designar qualquer jornal". Ora aqui surge-nos um problema: como explicar essas diferentes durações? Que os jornais académicos tenham uma vida curta compreende-se facilmente Porém, numa região de características tão rurais (segundo o censo de 1890 os agricultores do concelho representam 2/3 da população activa) e onde não existe outra indústria que não seja a artesanal, como explicar que A Voz da Oficina se tenha mantido em publicação durante quase um quarto de século? Por outro lado, que significará o facto de numa região tradicionalmente católica os periódicos com essa feição se aguentarem em publicação durante tão pouco tempo? Uma análise dos anos cobertos pela imprensa católica mais põe em evidência este facto: antes de 1869 não há nenhum jornal católico no concelho de Viseu; depois torna a não haver em 1876 e 1877 e entre 1879 e 1887; só a partir de 1888 há uma cobertura sistemática que se torna mais importante entre 1919 e 1921, quando existem 6 jornais. Falta de leitores? Falta de iniciativa da classe religiosa? Dificuldades económicas? Movimentação anti-católica? Que outras causas?

Uma análise semelhante, atenta à cronologia, feita sobre as outras tendências dos periódicos viseenses permite-nos detectar alguns fenómenos. Verifica-se, por exemplo, que só há uma cobertura sistemática pela imprensa monárquica a partir de 1873 e que esta, como seria de esperar (?), diminuiu acentuadamente com a implantação da República: a uma média de 3 jornais a partir de 1896 e de 4 nos últimos anos da monarquia, sucedem-se 2 em 1911 e 1912 e só 1 jornal a partir de então. Verifica-se, por exemplo, que os periódicos republicanos só a partir de 1919 mantêm publicação regular; antes surgem-nos episodicamente na 1.ª metade da década de 90 (que relações com as movimentações republicanas que se dão no país?) e mais episodicamente ainda nos dois primeiros decénios do séc. XX. Verifica-se, por exemplo, que os jornais sindicalistas, surgem apenas em 1911 (que relação com a revolução do 5 de Outubro?).

Será necessário referir a fragilidade da construção feita apenas sobre os interesses manifestados no cabeçalho de cada jornal? Há fenómenos que nos escapam nessa abordagem como as ideias proibidas que veladamente podem ser transmitidas ou insinuadas apenas, como as outras formas de comunicação não periódicas e que não são tidas em conta Porém, no global, o método parece mostrar-se fecundo pois as questões que uma análise desse tipo nos permite colocar podem facilmente ser multiplicadas. Neste momento, um dos aspectos de que nos poderíamos ocupar seria o das "evoluções semânticas e predominâncias vocabulares”. (Victor de Sá). Depois de feito o levantamento da imprensa periódica de todo o distrito poderia ser o da estratigrafia geográfica das diversas tendências jornalísticas, Detectar-se-á alguma diferença entre as duas cidades do distrito e as zonas mais rurais? Os movimentos encontrados em Viseu, como os que atrás se esboçaram, repetem-se qualitativamente nesse espaço maior?

Estes são alguns problemas que um levantamento simples constituído por título, duração e principais interesses nos permite colocar. Apenas alguns.

Porém, o contributo dado por esse inquérito representa uma fracção mínima do contributo que a imprensa periódica pode dar à história social. É, no entanto, necessário inquirir a totalidade de todo o jornal e não apenas alguns elementos. Trabalho moroso e paciente. Trabalho imenso, só possível se realizado por um grupo de investigação! Simultaneamente, trabalho necessário.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A imprensa periódica visiense (1): Importância e situação do seu estudo», A Voz das Beiras, 487, 8-3-1984, pp. 5, 8; 488, 15-3-1984, pp. 4, 8.

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