Cultura e sociedade: a historiografia visiense
António João Cruz
«História, filha do tempo»
Lucien Febre
As relações entre as estruturas mentais e as
condições sociais, como as descrever? Mais: onde e como
encontrá-las? Questões prévias, de
método, mas simultaneamente reveladoras de um certo receio:
num século que postulou o indeterminismo como lei e o acaso
como uma das regras do processo histórico, como abordar a
dialéctica estabelecida entre o espiritual e o material?
Não se trata de pôr esse diálogo em causa porque
de um modo ou de outro estamos todos de acordo sobre a sua
existência. Antes: qual o principal sentido em que tal
diálogo se verifica e com que intensidade? Isto é:
são as condições sociais que modificam as
estruturas mentais ou é o inverso que predominantemente
ocorre? Resultam essas interferências em forças
orientadoras apenas ou em leis que inexoravelmente se têm de
cumprir?
Questões que levantam alguns problemas complexos, algumas
apenas, mas para as quais necessário é ensaiar algumas
respostas.
A história da História é um exemplo como a
historiografia visiense o também é. Exemplos de uma
abordagem a esta problemática. Exemplos apenas.
A primeira realização da historiografia visiense de
que há conhecimento data da primeira metade do séc.
XVII: os Diálogos Morais e Políticos de Manuel
Botelho Ribeiro Pereira. Humanista serôdio, pretendia o seu
autor narrar o que digno de elogio em Viseu encontrara: a
história de seus bispos, sobretudo. Ora, como explicar que tal
emergência seja tão tardia?
Em 1527, em números redondos, a cidade contará uns
2000 habitantes em Portugal 37 cidades e vilas possuem maiores
dimensões demográficas que Viseu. De 1527 a 1636 a sua
população terá duplicado mas um viajante que por
lá passa nos inícios do séc. XVII diz ainda da
cidade que lhe falta «povoação» e «que
não é grande». Os acontecimentos insólitos
e não habituais são raros. Por isso a ausência de
uma memória colectiva escrita não é notada: uma
historiografia oral é suficiente para as necessidades de
então. Ela permite memorar ocorrências de outros tempos,
melhor ou pior. O que a memória não permite
alcançar com precisão mas de que seria conveniente
haver um exacto registo, títulos de emprazamento e outras
escrituras disso se encarregam.
Contudo, o número de membros do clero vai em grande
aumento. Os prelados vivem como grandes senhores e as suas rendas
aumentam extraordinariamente. Em meados do séc. XVI
rondarão os 8000 cruzados anuais. Em 1615, 15 000. Ao fechar o
século, 45 000. Ou seja: cm século e meio um acrescento
de mais de 460 %. O seu estatuto exige uma
glorificação, um elogio. Exige uma crónica a
assinalar feitos ilustres e virtudes. A historiografia oral se, por
um lado, não é já suficiente para tal registar,
por outro, surge como imprópria. À semelhança de
reis e outros nobres senhores que dispõem de uma
crónica também a mitra a quer ter.
Surge
em 1636 e até inícios do séc. XIX a
historiografia visiense é quase toda ela eclesiástica.
1722: o Catálogo dos Prelados da Igreja de Viseu, de
João Col. 1767: as Memórias Históricas e
Cronológicas dos Bispos de Viseu, de Leonardo de. Sousa.
1837: a Notícia Histórica dos Bispos de
Viseu, de Oliveira Bernardo. 1848: a Resumida
Notícia dos Bispos de Viseu nos Séculos XVI, XVII,
XVIII, de D. Francisco Alexandre Lobo. 1855: o Epitome
Ecclesiae Visonensis, também de Bernardo. E outras
obras de menor tomo e importância...
Os inícios do percurso dessa historiografia dão-se,
assim, pela crónica: texto panegírico, misto de real e
de imaginário termos que se não distinguem tais
são as mentes que o fazem.
Ela é sobretudo religiosa embora historiografia religiosa
de crónica não seja sinónimo. Hoje. Porque antes
do séc. XIX é: o que importa é sublinhar a
virtude de bispos e santos da terra, exaltar a vida monástica,
registar os mais importantes dias de uma vida que quotidianamente a
Deus é dedicada...
Mas que outra coisa poderiam esses historiógrafos fazer? De
que outras fontes se poderiam eles socorrer senão das
crónicas medievais e algumas mais recentes, sirvam a Medieval de Espanha e as de Alcobaça como
exemplos, e dos textos jurídicos? Em meados de oitocentos
já assim não sucede. Então, além de
existirem já algumas produções da historiografia
visiense, há sobretudo o germinar de um novo campo
disciplinar: a Pré-História. A emergência dessa
nova ciência leva a uma mudança de perspectiva sobre o
valor dos documentos arqueológicos e epigráficos,
até ai pouco mais do que simples curiosidades. Em 1857, nas
palavras de Oliveira Berardo, esses testemunhos se bem interpretados
«podem dar uma luz inesperada aos pontos obscuros da
história; e até mesmo da literatura em geral e ao
estudo das línguas». Qual o seu valor relativamente a
outras fontes, ele o afirmara já em 1844: «o que
há de mais certo são os documentos [escritos]
porque provam; depois vêm os monumentos porque confirmam»;
finalmente a tradição, mas esta é menos segura
«porque é susceptível de sofrer a influência
da malícia ou da ignorância».
A mudança duma atitude e duma perspectiva mental é,
no entanto, lenta, muito lenta: a inércia de duas
centúrias de crónicas religiosas quase que tem a
dimensão de um século. 1838 e 1894 são os dois
extremos dessa transição que não foi nunca
completa, até hoje pelo menos. Para trás, logo
atrás, fica 1820, o mesmo é dizer uma época em
que a Igreja foi fortemente abalada. Coincidência apenas, vazia
de qualquer significado?
1838?
Oliveira Berardo: as suas Notícias de Viseu. 1894?
Maximiano de Aragão: o 1.º volume de Viseu. Nos
dois, em Berardo e Aragão, um mesmo empenhamento no presente,
por exemplo traduzido no facto de quer um, quer outro, ter sido
administrador de um dos concelhos do distrito. Além disso:
embora um, um dia tenha vindo a pertencer ao clero, é
então apenas um liberal que por suas ideias foi perseguido e
preso; o outro era bacharel em Teologia mas era-o também em
Direito.
A erudição foi uma das portas que abriu os
horizontes que daqui vemos, que abriu para uma nova forma
historiográfica: a história-crónica de Berardo e
de Aragão e de outros que depois vieram. Caminho metade feito
para uma história-ciência mas, ainda que apenas metade
de um mais longo caminho, nem por isso menos árduo. Eis-nos
então perante um texto preso a uma cronologia de
acontecimentos os factos históricos ,
realizado com rigor, empenhadamente não empenhado,
apaixonadamente desapaixonado. Porque, dizem os cânones a que
há que se atender, o historiador não tem o direito de
deixar algo de seu na escolha e interpretação dos factos. Como se tal fosse possível! Como se a escolha
dos factos não fosse algo de pessoal! Como se...
Um
novo século vem e vem também uma nova
problemática: depois de uma pesquisa tão laboriosa como
paciente empreendida na inventariação dos factos
a um ponto se chega em que todos eles estão
apurados os principais, os grandes factos, entenda-se. Que
caminho seguir? O por Berardo traçado na
direcção da Pré-História é o
escolhido: a Pré-História é então a mais
desconhecida época da história visiense como
também é o campo que no Portugal de finais de
oitocentos - princípios de novecentos mais
atenções suscita. A esse surto de descobertas e ao
fervilhar de ideias novas que gerou por certo muito deverá o
rumo na historiografia visiense traçado. Paradigma de
investigadores nesse sentido orientados, e a culminar um percurso,
José Coelho, arqueólogo incansável que a
região percorreu em busca de umas origens então apenas
míticas, ou quase a aparelhagem teórica a tal
necessário adquirira-a ele no curso da Faculdade de Letras de
Lisboa junto a um José Leite de Vasconcelos.
Mas de que serviria isso se a uma nova concepção de
história não conduzisse? De que serviria isso se em um
passado-lição-para-o-presente se ficasse e não
se caminhasse para um passado-presente-futuro teia de
relações múltiplas?
Mas tal clivagem operou-se realmente? O momento único em
que ocorre é no Viseu. Estudo de Uma
Aglomeração Urbana, dissertação de
Amorim Girão apresentada a um concurso para assistente da
Faculdade de Letras de Coimbra em 1925. Aí o cenário
não é o mesmo do séc. XIX, como os actores
não são os mesmos, como o modo de
representação não é o mesmo, como
não o é também o argumento. Uma nova
peça, um novo texto: os homens e o seu meio geográfico:
diálogo de vida e de morte, nos dois sentidos simultaneamente
empreendido. Mas: e as outras relações todas?
Além de projectos de estudo não foram. Por isso, a
visão global, essa não foi ainda empreendida, tentada
sequer.
Depois: 1926: ano do 28 de Maio. Uma nova ordem e uma nova
ideologia. 1937: José Coelho então exercendo o
magistério liceal é obrigado a dele se afastar... Na
mesma década: criação da Academia Portuguesa da
História. Um projecto: uma história oficial. 1942: sai
o primeiro número da Beira Alta, «revista
trimestral para a publicação de documentos e estudos
relativos às terras da Beira Alta». Como seu director um
académico, Alexandre de Lucena e Vale. Incluir o aparecimento
da revista num movimento oficial de propaganda difícil
não será. O problema reside antes em averiguar as
consequências de tal aparecimento.
A Beira Alta foi um modo de publicar muitos trabalhos que doutro
modo dificilmente o seriam. Mas que publica ela? O peso dos artigos
biográficos, sobre instituições, de
história militar e religiosa, de heráldica e de
genealogia é sufocante, quase de 1/3 até
começarem os anos 60. Assim:
1942-45: 31%, 1946-50: 30%, 1951-55: 31%, 1956-60: 30%, 1961-65:
24%, 1966-70: 25%, 1971-75: 21%, 1976-80: 13%. Em meados do
séc. XX o que significa isso numa pequena cidade do interior
senão uma historiografia tradicional, académica,
oficial?
Anos 70/80: para onde caminha a historiografia visiense? Que
tendências e que perspectivas?
Se bem vejo, parece-me poderem-se distinguir duas principais
linhas de força.
A
1.ª consiste numa mudança de perspectiva de abordagem
cujos pioneiros foram J. Coelho e A. Girão: assiste-se ao
desenvolvimento de temas específicos (a arte: Alexandre Alves)
ou das ditas ciências auxiliares da história, que mais
não são do que novos métodos de
investigação histórica (a arqueologia: Celso
Tavares da Silva, a etnografia: Alberto Correia, e a geografia:
Orlando Ribeiro, estas três sobretudo). Paralelamente em temas
ainda recentemente abordados com uma perspectiva ultrapassada, a
genealogia, por exemplo, em vez de se verificar uma
actualização de métodos e de visão,
assiste-se a um seu gradual abandono. Melhor: não conseguem
despertar novas atenções por incapacidade de
evolução dos que a esses domínios se
dedicam.
A 2.ª linha, intimamente associada à 1.ª,
caracteriza-se pelo recurso exclusivo à monografia ou
então, complementarmente, pela publicação de
documentos sejam eles paleográficos, arqueológicos ou
outros. A monografia local ou regional, onde simultaneamente se
tratam aspectos económicos, sociais, culturais e outros, tem
sido ignorada.
As perspectivas para o futuro não parecem boas. Pois onde
estão os apoios? Onde está o centro congregador de
esforços despendidos por uma mesma causa, hoje tão
necessário, indispensável a uma
investigação colectiva, a uma
investigação pluridisciplinar? Onde estão os
verdadeiros museus, os museus vivos, a sugerir linhas de pesquisa e a
sensibilizar populações? Onde está a
política cultural decidida e orientada, empreendida pelas
autarquias, seja no apoio a grupos autónomos, seja na
dinamização de actividades próprias? Onde
está a defesa do património se nem sequer dele existe
um inventário? Tais são alguns aspectos de um mesmo
problema cultural que numa cidade dum Portugal em permanente evoluir
urge resolver antes que para tal seja demasiado tarde.
1. Para não sobrecarregar este texto a
identificação da produção
historiográfica visiense não foi feita de modo
rigoroso: não se indicou, por exemplo, locais e datas de
publicação as datas existentes sempre que
possível respeitam ao ano em que os trabalhos foram
concluídos , nem de títulos se deu a
transcrição completa. Para tal: António
João de Carvalho da Cruz, «Viseu. Roteiro
Bibliográfico», Beira Alta, XL, Viseu, 1981,
n.º 2, pp. 395-426, n.º 4, pp. 621-652 e XLI-1 (no
prelo).
2. Para uma determinação da importância dos
principais historiógrafos: António João de
Carvalho da Cruz, «Três
Séculos e Meio de Historiografia Visiense», A Voz
das Beiras, Viseu, 1981, n.º 357-359 (Julho) e 372-378
(Outubro-Dezembro) série de 10 artigos publicados num
semanário e que serviu de base ao presente texto mais
orientado para as relações cultura-sociedade.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Cultura
e sociedade: a historiografia visiense»,
História, 63, 1984, pp. 84-88.
Artigo em formato pdf
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