Uma fortificação romana na colina da
Sé? Revisão de um problema
António João Cruz
A fortificação romana na colina da Sé é, para alguns, "realidade histórica incontestável" (A. de Lucena e Vale). Porém, parece-me, o processo está bem longe de concluído: dúvidas há que estão ainda sem resposta, algumas conclusões supostas seguras têm atrás de si dados insuficientemente esclarecidos e, com mil diabos, não podemos ter a pretensão de tudo dizer e tudo saber! Por isso, abrir de novo as páginas deste processo, ainda que seja mais para colocar questões do que para lhes responder, pode ser uma necessidade. Tanto mais forte quanto este problema está ligado ao problema mais geral das origens de Viseu, incompreensivelmente hoje ainda tão ignoradas.
Comecemos pelo princípio.
Na primeira metade de seiscentos, Manuel Botelho Ribeiro Pereira lê uma inscrição romana que então se encontra "na torre de menagem" e que diz assim:
FRONTONIO PELLI
FLACCVI FRATER
C.
Botelho Pereira interpreta-a como uma referência a dois irmãos a quem foi encomendada a construção da fortificação (Diálogos, pp. 110-1). Depois a inscrição reproduziu-se muitas vezes mas esses textos que depois a referem, sempre a partir dessa fonte, não nos dão mais nenhuma interpretação — só a de Botelho Pereira parece ser a autorizada.
Em 1876 Francisco Manuel Correia dá a forma à fortificação: "a antiga fortificação de Viseu estava formada no cimo de um monte em que foi edificada a Cidade ou povo que depois veio a ser Cidade. Esta fortificação de que ainda existem restos ou vestígios bem conhecidos parece ter sido em formato de um quadrado equilátero, com quatro torres nos ângulos e duas outras torres de menor capacidade do que aquelas, no centro, em pequena distância uma da outra. O quadrado da fortificação era fechado com muros ou ameias pelos quatro lados (...). Foi sem dúvida a fortificação de Viseu obra dos Romanos (...)" (Beira Alta, 1975, pp. 18-21).
Em 1948 Manuel Alvelos descobre um documento quinhentista com elementos importantes. Diz-se aí que "ante a porta da Se' desta cidade estava um muro largo como se pode ver pelo que dele ficou que servia de fortaleza e amparo da mesma Sé e cidade, de muito boa pedraria lavrada de ambas as partes" e que o bispo D. Jorge de Ataíde parcialmente destruíra (Beira Alta, 1948,p. 332).
Resumidamente, eis o evoluir deste processo. Resumidamente, eis os elementos a partir dos quais, no fundamental, se construíram depois hipóteses e se tiraram algumas conclusões. Porém, estes dados nunca foram, na realidade, sujeitos a um processo crítico.
A inscrição que Manuel Botelho Pereira refere não é mais do que uma inscrição funerária que segue um modelo múltiplas vezes repetido: Frontonio Pelli é o defunto a quem Flaccvi, seu irmão, mandou fazer o monumento — basta apenas admitir que desapareceu um F. da última linha (ler-se-ia então F.C., abreviatura de "mandou fazer").
Quanto ao documento revelado por Manuel Alvelos, onde rapidamente se encontrou uma prova para as suposições de Francisco Manuel Correia, ele levanta-nos um problema, pois essa fonte não permite nenhuma identificação cronológica. É certo que há testemunhos arqueológicos que falam da ocupação romana da colina da Sé. José Coelho por diversas vezes os refere (por exemplo, no Distrito de Viseu, n.º 259, de 30-6-1934): entre os mais significativos uma inscrição romana e várias pedras com o característico almofadado. No entanto, que relação podemos estabelecer entre estes achados avulsos e pouco numerosos e a pretensa fortificação romana? Infelizmente, este problema tem sido ultrapassado ignorando-o. Porém, a leitura atenta de Botelho Pereira seria suficiente, pelo menos, para algumas dúvidas surgirem sobre essa atribuição cronológica. Diz ele, fundado num documento que transcreve, que "El Rei D. Dinis deu licença ao Bispo D. Egas para fazer o muro que está defronte da Sé" (Diálogos, p. 347). Romano ou medieval? Eis o problema que nos levanta esse "muro" e que, hoje ainda, não dispõe de dados materiais concludentes que só uma investigação arqueológica poderia fornecer.
Na ausência destes testemunhos o mais que podemos fazer é interrogarmo-nos sobre o significado e consequências de uma fortificação romana na colina da Sé.
Embora haja uma tradição muito forte que diz que a cidade de Viseu uma importante povoação na época romana, opinião que assenta sobretudo no número elevado de vias originadas ou destinadas a essa povoação e que metodologias cientificamente deficientes permitiram enumerar, alguns factos apontam em sentido contrário. Em primeiro lugar, desconhece-se completamente qual o nome dessa povoação e a sua posição administrativa: nem as fontes escritas trazem qualquer menção que se lhe possa ajustar, nem as fontes epigráficas referem nem o nome da povoação nem, sequer, quaisquer cargos administrativos que ajudem a situar a sua importância. Por outro lado, à excepção da Cava, os testemunhos arqueológicos da ocupação romana, não sendo inexistentes, não são, no entanto, nem tão abundantes nem tão ricos como se esperaria numa importante povoação. Por seu lado, a Cava é um documento singular e de difícil interpretação porque, também aí, outros testemunhos da ocupação romana são inexistentes (é excepção uma moeda do séc. I a. C).
Se ela pode testemunhar sobre a importância estratégica do local infelizmente nada nos pode dizer sobre a vida quotidiana dos homens que habitavam próximo.
Neste quadro, como compreender duas posições fortificadas tão próximas uma da outra (a suposta fortificação da colina da Sé e a Cava)? E se a estas juntássemos uma terceira fortificação, a que Amorim Girão coloca na Regueira (Viseu, p. 26 e ss.)? Faria isso sentido? Orlando Ribeiro (Revista Portuguesa de História, 1971), felizmente, já afastou esta hipótese de Amorim Girão; no entanto, não foi suficientemente claro no que diz respeito à fortificação da colina da Sé. Mas, repito: duas fortificações tão próximas será algo de minimamente aceitável?
Por outro lado, a suposição da fortificação na colina da Sé levanta um problema de coerência.
Por causa das obras que séculos após séculos se fizeram nessa colina são hoje desconhecidos quaisquer testemunhos de uma ocupação pré-romana do local. Porém, analogias com os montes vizinhos de Santa Luzia e do Crasto têm levado a supôr-se que aí existiu um castro. Ora, havendo uma continuidade cultural entre a ocupação pré-romana e a ocupação romana (muito nítida nos numerosos castros romanizados que por todo o distrito se encontram, em que lado a lado surgem manifestações das duas culturas) dificilmente será possível admitir a existência de muros de defesa com uma forma geométrica bem definida como pretende Francisco Manuel Correia. A haver continuidade cultural seria de esperar que os muros romanos se adaptassem à topografia então existente. Por outro lado, o contrário, a existência de uma ruptura entre as duas ocupações pelo que se conhece dos outros castros que foram romanizados, não é também uma hipótese aceitável.
É claro que na ausência de testemunhos suficientemente esclarecedores levantarmos hipóteses de trabalho poderá ser algo de desejável e algo de frutuoso. Porém, é necessário, pelo menos, que as nossas suposições sejam coerentes e que estejam de acordo com os elementos já adquiridos. A fortificação romana na colina da Sé é um exemplo do contrário: não é só uma hipótese que vai contra outras hipóteses já levantadas, como ela própria parece ir contra a verosimilhança da construção em que se insere.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Uma fortificação romana na colina da
Sé? Revisão de um problema», A Voz das
Beiras, 483, 9-2-1984, pp. 2, 10
Artigo em formato pdf
|