A Feira Franca de Viseu no séc.
XIX. Estratégias, fontes e perspectivas para uma
investigação
António João Cruz
Se fosse possível inventariar toda a bibliografia dedicada à Feira Franca de Viseu seria agradável folhear as numerosas páginas desse inventário. Certamente! Pois como poderia ser de outro modo ao se ver essa multidão de títulos? Ainda por cima, poder-se-ia facilmente verificar, esse interesse não foi moda de uma época: desde que a historiografia visiense ultrapassou as fronteiras da «história eclesiástica» e da «história genealógica», o mesmo é dizer desde inícios do século passado, essa bibliografia não deixou de crescer e hoje ainda, por ocasião da Feira, todos os anos como se de voto se tratasse, os jornais da cidade, quase sempre pela mesma mão, fazem «um breve historial» da Feira que uma vez mais se realiza.
Porém, as aparências iludem. E um rápido passar de olhos por essas páginas seria suficiente para mostrar quão desolador é esse estendal: páginas e páginas repetem as mesmas fórmulas, a problemática (se é que há) não ultrapassa o termo da cidade, a narrativa pouco passa de uma enumeração de actos legislativos, algumas noções operatórias (como a de decadência) não fazem sentido. Resumindo: toda a história da Feira Franca está por fazer.
No entanto, quase que desnecessário seria dizer por que é importante esse estudo — grande número de fontes de anteriores séculos dizem a Feira de Viseu uma das principais do país. Por isso, Viseu é um dos «mercados-chave para a compreensão da economia nacional e discriminação das diferenças regionais» (Vitorino Magalhães Godinho, «Preços e conjuntura do século XV ao XIX no Dic. de Hist. de Portugal).
Para a Feira Franca, o séc. XIX é uma época de profundas mudanças. Entre 1795 e 1802 os rendimentos pela Feira proporcionados à Câmara Municipal de Viseu representam sempre mais de 70 por cento do total das receitas camarárias (BMV, receita da Câmara, 1793). Em 1925, um geógrafo, autor da melhor visão de conjunto sobre a cidade de Viseu, escrevia, desolado, que «Infelizmente, do seu antigo esplendor, a antiquíssima Feira Franca de Viseu pouco mais conserva hoje do que o nome...» (Amorim Girão, Viseu, p. 58). Que se passa entretanto? Os testemunhos são escassos e pouco precisos e não permitem, por Isso, estabelecer uma cronologia rigorosa para esse movimento. No entanto, os homens que nos séc. XIX se aperceberam desse facto atribuíram-no, quase exclusivamente, ao desenvolvimento dos transportes em Portugal. Assim «da facilidade de tais comunicações resulta em toda a parte, onde aparece alguma luz de civilização, o desenvolvimento, do comércio e portanto a desnecessidade dos grandes mercados» Jornal de Vizeu, n.º 122, 1866).
Mas, na realidade, ter-se-á passado tudo de um modo tão simples?
É certo que de 1849 a 1871 constroem-se no distrito de Viseu 300 km de estradas (Alphonse de Figueiredo, Le Portugal, p. V), o que dá uma média de mais de 13 km por ano. Em Portugal maior rede só o distrito de Lisboa a tem — quase 350 km. Em 1906 são 750 km (António Lopes Vieira, Rev. de Hist. Econ. e Social, 5, p. 64) — o que dá um aumento anual para este segundo período ligeiramente inferior aos 13 km. Mantém ainda o 2.º lugar, mas se tomarmos a densidade da rede viária por quilómetro quadrado o distrito de Viseu está só em 7.º, e se for a densidade por habitante em 12.º. Isto, mesmo a nível nacional, significa uma fraca densidade de estradas. E o caminho de ferro só chega mais tarde: a inauguração da linha da Beira Alta é em 1882 e só em 1885 é aprovado o contrato para a construção do ramal entre Santa Comba Dão e Viseu.
Por outro lado, a «decadência» da Feira, que há quem a refira já em meados do século, não é assim tão evidente: as vendas realizadas na Feira passam de 651.586.600 réis em 1866 para 736.849.000 réis em 1886 (Jornal de Vizeu, n.º 121, 1866, e Port. Ant. e Moderno, 12.º vol., pp. 1555-6). No entanto, este movimento não é uniforme: as vendas de gado são, respectivamente, 125.000.000 réis e 80.000.000 réis (diminuição de 36 por cento) enquanto os restantes produtos vão 526.586.600 réis em 1866 para 656.849.000 réis 20 anos depois (aumento de 24,7 por cento). Ora, em princípio, onde mais se poderiam notar os efeitos dos transportes seria nos outros produtos que não o gado, já que este se pode deslocar facilmente pelos seus próprios meios. Por tudo isto, parece-me serem insuficientes as explicações tradicionais.
Os transportes tiveram, certamente, os seus efeitos. Porém, não foram os únicos e outros factores poderá haver com bastante mais peso. Desconhecemos qual a influência que a agitação político-militar da 1.ª metade do séc. XIX teve na Feira. Para lembrar alguns dos mais importantes acontecimentos basta apontar as invasões francesas (sobretudo a terceira), a guerra civil que opôs liberais a absolutistas, a "Maria da Fonte", a Patuleia... Por certo que estes acontecimentos também deixaram marcas na Feira. Mas não se esgotam aqui as possíveis causas para o movimento seguido pela Feira Franca.
Para as identificar e para se tentar descobrir o mecanismo pelo qual actuam é necessário integrar a Feira no seu ambiente socio-económico.
Antes de mais, porque a Feira é uma manifestação económica em que o espaço é uma das variáveis. É indispensável saber qual a sua área de influência. Isto passa por se saber de onde vem quem vende e para onde vai quem compra. Difícil é sabê-lo, pois a Feira poucos testemunhos nos deixou. Ou melhor: poucos testemunhos materiais chegaram até nós. Porém o comércio interno, relativamente ao externo sobre o qual bastante se sabe, é mais fácil, não tem um controle tão apertado, utiliza meios de transporte que, não raro, também não deixam testemunhos. No entanto, pelo menos uma fonte dá-nos a conhecer, em 1846, os vendedores — quem são e de onde vêm (BMV, Arruamento da Feira Franca em 1846): de 231, 108 são de origem local, 50 do Porto, 20 de Braga, 13 de Guimarães, 12 da Covilhã, 7 de Coimbra e de Penafiel, 5 de Lamego, 4 de Seia e 1 de Estarreja, de Ovar, de Penalva do Castelo, de S. Pedro do Sul e de Vila Pouca de Aguiar. Ou seja: são quase exclusivamente da Beira e do Minho (dando a estas províncias os limites que tinham então). É claro que num estudo aprofundado se deverá utilizar não estes números globais mas os que dizem respeito a cada tipo de negócio.
Interessa-nos, por isso, saber o que acontece no Minho e na Beira com a produção de têxteis e lanifícios, de peles, de ferragens e de chapéus (fora o gado, os principais produtos que se vendem na Feira). Pois é razoável supôr que a oferta condicionou a evolução da Feira. Assim, somos levados a uma geografia industrial do norte do país feita, como não poderia deixar de ser, de um modo dinâmico — aqui não é apenas o espaço que interessa; e também o tempo. Tarefa aparentemente fácil. E sê-lo-la se não estivéssemos numa época em que se estabelece gradualmente a passagem do período pré-estatístico para o período estatístico (por isso somos obrigados a intercalar estatísticas, ainda que algumas bastante frágeis, com textos extraídos de algumas visões globais do Portugal da 2.ª metade do séc. XIX, como as de Charles Vogel, Rodrigues de Freitas, Alphonse de Figueiredo, Gerardo Pery, entre outras). E sê-lo-ia se não nos surgisse o problema da indústria caseira que se não deixa medir (mas que, certamente, teve papel importante na Feira).
Uma questão a colocar é a de saber se há alguma relação entre a penetração capitalista na indústria, a perda de importância da indústria caseira e o movimento da Feira. Dito de outro modo: se a Feira Franca é um modo de distribuição da produção tradicional que é substituído por outra forma de distribuição de acordo com o novo modo de produção: "a estrutura da distribuição é inteiramente determinada pela estrutura de produção" (Karl Marx, Contribuição para a Critica da Economia Política, Estampa, p. 223)? Outro problema é o de saber qual a influência na Feira do "estado desastroso" da indústria nacional, sobretudo da indústria do norte, que algumas fontes do final do século referem. Deveu-se o retrocesso da Feira Franca à diminuição da oferta?.
No que diz respeito ao gado, para estudarmos a oferta podemos, numa primeira aproximação que julgo suficiente, limitarmo-nos ao distrito. E aqui, felizmente, dispomos do Recenseamento Geral dos Gados de 1870 e do relatório que, a propósito, redigiu o Intendente de Pecuária do distrito, Manuel Tavares de Oliveira Coutinho.
Também da procura nos devemos ocupar.
Se, no global, a população quer da cidade, quer do concelho, quer do distrito de Viseu, aumenta durante o séc. XIX, o seu crescimento não é uniforme. Mais: podem-se detectar alguns retrocessos. O primeiro, bastante importante, deve-te às invasões francesas. No entanto, por um lado, não está ainda rigorosamente apurado a nível local; por outro, ocorre antes da mudança que se opera na Feira. Por isso, não nos interessa para o fim em vista. Mas, atenção: não poderá a crise da Feira ser consequência deste retrocesso demográfico? Questão que, se calhar, importa averiguar. Uma segunda diminuição ocorre em algumas freguesias do concelho entre 1878 e 1890. Os aumentos contrabalançam as diminuições e com os números globais ao concelho dados pelos recenseamentos da população o máximo que detectamos é uma quebra na velocidade de crescimento: entre 1864 e 1875 um aumento anual médio de 0,56 por cento, entre 1878 e 1890 0,18 por cento. Porém, esta crise demográfica pode ter começado antes de 78 e acabado depois de 90. Mais: se o crescimento do concelho foi solidário do distrito, esta recessão iniciou-se e teve a sua época mais crítica antes de 78. Os censos demográficos não nos mostram nenhuma diminuição no global do distrito durante a segunda metade do séc. XIX; porém, os números recolhidos por G. Pery dos "mapas oficiais" para os anos de 70 a 72 dão-nos o seguinte movimento: 1870: 369.878 habitantes, 1871: 370.171, 1872: 367.971 (Geog. e Estatística de Port. e Colónias, p. 82). Quais as consequências desta recessão demográfica (e, naturalmente, da crise económica que põe em evidência) na Feira Franca? Não nos esqueçamos que o número de homens é o mesmo que o de consumidores.
Um outro aspecto da procura que importa abordar diz respeito às crises agrícolas. De certo modo, já foram postas em jogo ao se abordar a população. Porém, só indirectamente na medida em que terão tido as suas responsabilidades na diminuição demográfica. No entanto, deve-se averiguar quais as consequências na Feira de um mau ano agrícola, o mesmo é dizer de uma crise económica. Não apenas na época em que a Feira entrou em crise mas também na de "prosperidade". Alguns indícios do mecanismo que opera entre essas duas manifestações são-nos dados por um cálculo extremamente simples: o da correlação entre as receitas da Feira proporcionadas à Câmara e o preço do milho (recolhido no Livro para as tarifas da Câmara - BMV) Entre 1793 e 1802 esse coeficiente (que em valor absoluto pode variar entre 0 a 1) é de 0,46 - embora não seja muito elevado aponta-nos algumas relações entre esses dois movimentos. Por outro lado, um cálculo semelhante utilizando os preços do vinho, um produto de grande consumo na Feira, logo depois de esta acabada, põe-nos o problema ao contrário: o da influência da Feira na vida económica viseense. No mesmo período o coeficiente de correlação para o vinho mole é de 0,96 e para o vinho cozido de 0,93 — um e outro valores extremamente elevados que nos assinalam fortes marcas da Feira na economia local. Isto coloca-nos uma outra questão: a quebra no ritmo de. crescimento demográfico, causa de crise na Feira, não será, ao mesmo tempo, consequência desta?
Um terceiro e último aspecto que podemos abordar sobre a procura é o do gado. Será que o desenvolvimento dos caminhos de ferro fizeram diminuir de modo acentuado a procura do gado até então utilizados nos transportes a longa distância? Será deste modo que o desenvolvimento dos transportes interfere na Feira?
Mas como se manifesta o jogo entre a oferta e a procura? Qual destes dois termos é o que tem mais peso? A seguir ao estudo da oferta e ao estudo da procura este é o ponto a abordar.
Em primeiro lugar: como fazê-lo? Nada melhor que utilizar os preços. Poder-se-ão utilizar preços agrícolas que, viu-se já, acompanham de perto o evoluir da Feira (pelo menos na ça do séc. XVIII) para o século XIX).
Porém, porque a Feira é predominantemente de feição industrial os preços industriais deverão ser preferidos.
O preço do burel (BMV Livro para as Tarifas, cit.) aumenta de 1846 a 1866, diminui entre 1866 e 1872, aumenta de 1872 a 1876 e a partir de 1876 começa de novo a diminuir. Infelizmente, este é o único produto industrial de que conhecemos a evolução do preço. No entanto, permite-nos já levantar uma hipótese: após, pelo menos 20 de subida, a descida que se inicia em 1866 e que, após 4 anos de interrupção, continua em 1876, estará relacionada com a crise da Feira? Ou este movimento é antes resultado de uma conjuntura nacional, quem sabe se internacional? A comparação com outros mercados é difícil porque não dispomos de séries de preços industriais. No entanto, numa rápida visão observa-se que os preços agrícolas apresentam, regra geral, uma descida em princípios da década de setenta e, em alguns sítios e para alguns géneros, uma outra descida na segunda metade da década mas que não é tão geral como a primeira (Miriam Halpern Pereira, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico, gráficos). Só o conhecimento do que em Viseu se passa após 1877 poderá ajudar a resolver este problema.
Tais são algumas pistas que, neste momento, julgo poderem ser seguidas Porém, ao longo do trabalho, certamente que outras aparecerão.
A Feira Franca de Viseu parece-me ser um caso paradigmático do que na historiografia viseense se tem feito Em primeiro lugar, aceitar opiniões sem previamente serem analisadas criticamente. Em segundo, não ser praticamente ultrapassada a fase da recolha documental. Em terceiro lugar não se enquadrar o fenómeno em análise no seu ambiente sócio-económico (talvez por preconceitos contra esta temática). Espera-se que este trabalho em preparação sobre a Feira possa, pelo menos, chamar a atenção para a importância de uma análise à história de Viseu conduzida nos moldes que se acabaram de esboçar. Ou outros que igualmente se mostrem fecundos. Pois os que tradicionalmente se têm utilizado parecem-me bastante insuficientes: depois de estar tudo definitivamente esclarecido (doutro modo como se compreender as contínuas repetições?) muitas dúvidas podemos nós colocar sem que esses métodos nos dêem respostas, sequer algumas hipóteses. Podemos por isso, continuar a neles confiar?
Nota: Este texto é uma reflexão preliminar sobre a Feira e que se insere num trabalho em preparação sobre a Feira Franca na 2.ª metade do séc. XIX. Tudo o que aqui é exposto de um modo resumido é aí abordado detalhadamente.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A Feira Franca de Viseu no séc.
XIX. Estratégias, fontes e perspectivas para uma
investigação», A Voz das Beiras,
479, 12-1-1984, pp. 4, 8; 480, 19-1-1984, pp. 5, 8; 481, 26-1-1984, pp. 6, 8.
Artigo em formato pdf
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