A historiografia visiense: alguns problemas e
perspectivas
António João Cruz
For mais variado que seja o nosso ponto de vista, julgo que numa coisa estamos de acordo: em reconhecer a falta de uma história de Viseu.
Aqueles trabalhos que poderiam aspirar a sê-lo não passam, quando muito, de amontoados de factos no estado bruto, organizados, quando o estão segundo uma perspectiva de uma história hoje há muito ultrapassada, ou não constituem uma visão global mas sim estudos especialmente voltados para alguns aspectos da história visiense, ou, ainda, são tão rápidos que não nos podem satisfazer. Estão no primeiro caso os 6 volumes de Maximiano de Aragão sobre Viseu, publicados entre 1894 e 1936, e os numerosos trabalhos de Oliveira Berardo que nunca chegaram a ser reunidos em volume. A estes, outros se poderiam juntar como as Memórias em Respeito à Cidade de Viseu, de Francisco Manuel Correia (1876), que não foram ainda publicadas integralmente mas apenas em extractos (na Beira Alta, em 1973-1974), o longo artigo que Pedro Augusto Ferreira escreveu para o 12.º volume do Portugal Antigo e Moderno (1890) e os antigos, mas ainda não devidamente aproveitados, Diálogos Morais e Políticos de Manuel Botelho Ribeiro Pereira (escritos entre 1630 e 1636 mas só publicados em 1955). Utilizando a mesma metodologia, a da recolha documental, os numerosos trabalhos de Alexandre Alves sobre a história da arte (grande parte deles publicados na Beira Alta) são a contribuição mais recente e mais estruturada dentro deste género. Porém, pelo facto de serem limitados tematicamente, devemos igualmente colocá-los no segundo grupo definido, onde também se encontra o Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana, de Amorim Girão (1925), especialmente interessado nos aspectos geográficos da evolução visiense e que é, sem dúvida, o paradigma deste género. No terceiro e último grupo cabem alguns opúsculos publicados no séc. XX e, sobretudo, os artigos de corografias e dicionários geográficos ou, ainda, rápidos artigos em jornais e revistas, muitos deles limitando-se a repetirem fórmulas já há muito feitas e, por isso, com escasso valor.
Se abordarmos o problema por outro ângulo o panorama não será muito melhor.
Do que sobre Viseu se escreveu aí uns 50 por cento dizem respeito à Idade Média, uns 30 por cento às origens e ai uns 19 por cento aos três séculos e meio compreendidos entre 1500 e 1850.
Do ponto de vista temático, teremos, talvez, uns 40 por cento para a história religiosa, uns 25 por cento para a arte, uns 15 por cento para uma pretensa arqueológica, uns 10 por cento para a história genealógica e uns 10 por cento para todas as outras histórias.
É claro que estes números não são rigorosos; são simples estimativas bem grosseiras que pretendem apenas pôr em evidência algumas assimetrias.
A meu ver, a década de 70 foi caracterizada pela agonia de algumas tradicionais maneiras de ver a história visiense. Marcam-na três mortes: José Coelho (1977), José Henriques Mouta (1978) e Alexandre de Lucena e Vale (1978). Três homens, três perspectivas da historiografia visiense mas que, no fundo, se tocam: no olhar excessivamente local, por vezes deformador, alheio às relações do espaço. Outros nomes surgiram, outras visões apareceram ou se tornaram mais insistentes. Porém, julgo que hoje se sente vazio. Talvez porque ontem a historiografia visiense não estivesse tão afastada da problemática da história de então. Talvez porque hoje sejam menos os que à história visiense se dedicam. Talvez porque hoje estejam mais dispersos.
Por causa desse vazio, que não se limita à historiografia da cidade, hoje são pessoas estranhas à região a darem as melhores contribuições, embora sejam bastante ignorados. Três referências apenas: António de Brum Ferreira, Planaltos e Montanhas do Norte da Beira. Estudo de Geomorfologia, Lisboa, 1978, 374 + XXXI pp. + atlas; Maria João Queiroz Roseira, Lamego. Um passado presente, Lisboa, 1981, 159 + XXII pp. + atlas; e Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XII .e et XIII.e Siècles, Paris 1982, 667 + IV pp.
Como superar esta situação? Ou melhor: quais as estratégias a adoptar contra esta situação?
Para se tentar solucionar o problema do vazio ou da apatia da historiografia visiense é preciso, antes de mais, dar-lhe meios para que ela se possa rejuvenescer. Mas isso só não é suficiente: é necessário também que ela tenha vontade de se rejuvenescer.
Primeiramente, é indispensável que a historiografia visiense alicie novos elementos, que tragam visões novas, problemas novos e métodos novos. Depois, é indispensável que os elementos mais antigos e os mais novos se unam em projectos e em investigações em comum, porque o trabalho colectivo é uma condição sine qua non para se ultrapassar a situação actual.
O Centro Juvenil de Arqueologia e Etnografia de Viseu, hoje extinto, foi, na sua década de existência, um exemplo modesto daquilo que se poderia fazer nesse sentido. Alberto Correia, seu orientador, aí transmitiu algum do seu saber e do seu entusiasmo e sensibilizou e conquistou alguns dos jovens para uma investigação e defesa do património cultural. Foi uma semente lançada para o futuro — de que mal ainda se começaram a colher os frutos. Foi um exemplo de onde se poderia partir, que se poderia aperfeiçoar, que se poderia orientar também para outras direcções a que se poderia juntar a componente da investigação (nesse grupo mais débil por causa da sua estrutura etária).
Mas além das vontades, que não sei se são assim tantas, são necessários os apoios. Hoje quem os daria? Nos seus últimos anos de vida, o Centro Juvenil de Arqueologia e Etnografia não conseguiu uma sede própria. Os seus materiais tiveram de se separar para se guardarem em locais vários: em casa de seus sócios e em cantos de salas de organismos oficiais. Os seus elementos ficaram sem um lugar onde se reunirem, sem um lugar para trabalharem. Repito: hoje, se um outro grupo se formasse, quem daria os indispensáveis apoios?
No entanto, disso estou convencido, para que a historiografia visiense possa recuperar algum do seu atraso, o trabalho de pesquisa empreendido por grupos devidamente organizados é de importância fundamental. Indispensável.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A historiografia visiense: alguns problemas e
perspectivas», A Voz das Beiras, 477, 22-12-1983, pp. 5, 14.
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