Apontamentos para a
história de Viseu

As monografias locais e regionais (Alguns problemas de definição, de espaço e de tempo)

António João Cruz

É algo numeroso o conjunto de monografias locais a regionais publicadas sobre Viseu e seu distrito (pode-se ver um inventário de algumas no meu "Viseu. Roteiro bibliográfico", no fascículo n.º 2 de 1981 da Beira Alta). A esse grupo há que juntar aquelas que se mantêm inéditas e que, provavelmente, serão mais do que em princípio se poderia supôr (como o deixa antever o segundo volume da Bibliografia Geográfica de Portugal. 1947-1974, editado em 1982, em Lisboa, pelo Centro de Estudos Geográficos).

Por regra, das que estão publicadas, se exceptuarmos aquelas que foram reeditadas — por exemplo a monografia de Nelas, de J. Pinto Loureiro, a de Mangualde, de Valentim da Silva ou a de Tondela, de Amadeu Ferraz de Carvalho —, todas elas são de difícil acesso. E mais, muito mais, o são aquelas que não passaram do exemplar dactilografado. Porém, importaria que todas elas fossem suficientemente conhecidas no local a que dizem respeito não apenas para que melhor informados acerca da nossa terra nós possamos andar mas, sobretudo, para que suscitem dúvidas e problemas e outras novas monografias, com uma nova visão, possam surgir.

O facto de aqui juntar monografias locais e monografias regionais não significa que elas sejam uma mesma coisa. Faço-o apenas por haver coincidências no espaço geográfico a que dizem respeito e, por isso, umas e outras poderem directamente interessará história de Viseu.

Porém, há algumas diferenças que deverão estar presentes.

Em primeiro lugar, a monografia regional diz respeito a uma maior extensão geográfica que a monografia local. Isso dá-lhe a possibilidade de, dentro do espaço estudado, poder registar matizes ou mesmo algumas diferenças, ao contrário do que sucede a monografia local onde, por regra, é a unidade que impera. Além disso, devido ao facto de maior ser o universo geográfico que a monografia regional pretende estudar, ela, por regra, é mais limitada no universo temático: normalmente é dedicada apenas a um único tema — como o ilustra, por exemplo, a recente História do Bispado e Cidade de Lamego, de M. Gonçalves da Costa, de que foram publicados os três primeiros volumes (Lamego, 1977-1982).

No entanto, o método que está por detrás de uma e de outra — o método monográfico, isto é: a utilização exaustiva de fontes e o pormenor a que são abordadas as questões — faz com que semelhantes sejam os problemas e os métodos de cada uma.

Quase todas essas monografias que a Viseu directamente podem interessar, falam-nos de um espaço que ou é isolado de todo o resto, um compartimento estanque de onde nada sai e aonde nada entra, ou é paralelo a um outro espaço (normalmente o nacional), segue-lhe o percurso mas, também, sem haver entre eles uma ligação. Ou seja: o espaço dessas monografias não é reconhecido como uma parte de um todo, entre esses dois termos se estabelecendo relações nos dois sentidos. Isto, aliado a uma forma de escrita que é regra estar associada a esses textos, dá ás monografias locais, frequentemente, o seu característico tom laudatório. Talvez por aí se explique parte do desprezo a que elas têm sido votadas pela síntese historiográfica portuguesa.

Porém, é pelo quadro espacial a que dizem respeito que as monografias locais são indispensáveis à síntese histórica pois grande número dos problemas que hoje se lhe colocam só aí podem ter resolução.

A economia e a sociedade não são as mesmas em todo o país. Elas adaptam-se à geografia, adaptam-se és tradições históricas anteriores, estão dependentes de outros factores como as comunicações, o número de homens, a sua riqueza. Assim, há que ter em conta as diferenças regionais. E, para isso, só uma investigação local, sólida a bem conduzida, permitirá esboçar algumas respostas a problemas como o da população a hierarquia social, a dimensão dos vários estratos e a sua importância económica, o tamanho da família, a problemas como a agricultora, as suas técnicas a sua estrutura, os seus rendimentos, a problemas como o das relações entre a cidade e o mundo rural, entre muitos outros aspectos. Mas, para tal, é necessário haver um apetrechamento teórico mínimo e o conhecimento de outras realidades exteriores à estudada. É necessário, também, definir bem o universo em estudo, traçar mapas e gráficos (que não apareceram ainda nas monografias locais publicadas sobre Viseu e sua região), abandonar pré-estabelecidos intuitos panegíricos. O bairrismo, se for útil, sê-lo-á apenas enquanto não se afastar da realidade, enquanto a não deformar como normalmente sucede.

Um outro problema de que elas normalmente enfermam é o do tempo. Do mesmo modo que acontece com o espaço, também sobre o tempo não há uma reflexão mínima que permita uma suficiente conceptualização.

Por isso, o micro-tempo frequentemente surge ao lado de um tempo imóvel. Por um lado, é atribuída uma importância desmesurada ao episódico-anedótico, ao curioso, ao não habitual. Por outro, o universo estudado é estático, não tem percurso: os homens de hoje surgem como os de ontem, vivem sempre do mesmo modo, os gestos se repetindo sempre os mesmos, organizando-se no espaço e no tempo segundo uma fórmula sempre repetida, relacionando-se com a natureza e os outros homens sempre da mesma maneira. Por vezes, nas monografias rurais, fala-se de uma desculturação recente — quase sempre acompanhada de lamento. Mais raramente, vicissitudes da vida política portuguesa pretendem marcar movimentos mas, normalmente, sem bases documentais — por isso, esses esboços surgem excessivamente vagos e incaracterísticos. E estes são, salvo algumas excepções, raras, os movimentos que nos traçam.

No entanto, o tempo na monografia local ou regional não pode surgir assim.

Se, por um lado, o método utilizado — assinalado na própria designação deste género literário — leva, por necessidades de exaustão, a privilegiar o tempo curto, por outro lado, esses acontecimentos de superfície devem ser colocados no seu lugar próprio, isto é, como manifestações de fenómenos subterrâneos mais profundos e que é necessário investigar para se compreender o que à superfície se mostra. Assim, surge indispensável a utilização, também, da longa duração.

Mas, não é demais repeti-lo, para que o problema do tempo seja resolvido (e o espaço também!), é necessário haver uma reflexão teórica mínima. Não um pensar que assente em velhas maneiras de fazer história; antes, bem enraizado nas problemáticas e nas perspectivas da história dos nossos dias, na história que hoje se faz.

Problema, temos que o reconhecer, que não é simples de resolver — se não o panorama outro seria. Porém, nada mais fácil: é apenas uma questão de não nos deixarmos ultrapassar, o mesmo é dizer estarmos atentos aos dias do presente.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «As monografias locais e regionais (Alguns problemas de definição, de espaço e de tempo)», A Voz das Beiras, 470, 27-10-1983, pp. 2, 8.

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