Apontamentos para a
história de Viseu

Viseu, o herói e a história (A propósito da historiografia visiense e das suas perspectivas)

António João Cruz

Saiu, há pouco, mais um número da Beira Alta, revista que se orienta, como se define a si própria, «para a publicação de documentos e estudos relativos às terras da Beira Alta».

Desta vez saiu o fascículo 4 do volume XLI, correspondente ao ano de 1982.

«Muito embora este número de Beira Alta não seja, em rigor, um 'número especial' — escreve o director em nota explicativa — é facto que nele se dá primazia a um conjunto de efemérides ocorridas no ano em curso, relacionadas com personagens notáveis da nossa História, beiroas pelo nascimento ou à Beira ligadas por quaisquer circunstâncias das suas vidas». É assim que aí encontramos dois artigos sobre o bispo de Viseu D. António Alves Martins, um texto setecentista inédito sobre a transferência das relíquias de S. Teotónio, acompanhado de uma «biografia sucinta do santo prior» em introdução, o «Catálogo da exposição bibliográfica e iconográfica comemorativa do IX centenário do nascimento de São Teotónio realizada em Viseu no pavilhão de exposições da Feira de S. Mateus», um artigo sobre Tomás Ribeiro e um outro sobre o Marquês de Pombal e as suas relações com Sernancelhe. Além destes, mais dois trabalhos: um sobre a «estrada do bispo Alves Martins» e o outro sobre «Alminhas». Ou seja: de 8 artigos 6 são dedicados indivíduos (D. António Alves Martins, S. Teotónio, Tomás Ribeiro e Marquês de Pombal).

Em virtude de este número da Beira Alta não ter sido preparado como um número especial, algumas questões se poderão pôr.

Uma delas será a de saber como explicar este súbito interesse pelo indivíduo.

O indivíduo foi sempre um dos interesses que esteve presente na historiografia visiense. Surge na primeira metade do séc. XVII com o primeiro texto dessa historiografia (mais de metade do grosso volume dos Diálogos, de Botelho Pereira, é sobre os bispos de Viseu), passa pelos homens de oitocentos (o problema do Grão-Vasco colocado por Berardo e Aragão, por exemplo) e continua na Beira Alta desde o seu primeiro número em 1942.

O indivíduo em toda essa história é o herói. Qualidades ele tem em abundância. Qualidades apenas. E enaltecê-las e recordá-las para todo o sempre, para exemplo dos vindouros, eis os propósitos que, salvo as excepções, sempre estiveram por detrás dessas páginas. Para as grandes, grandes figuras históricas o tratamento é de primeira. Às qualidades junta-se a condução da história. Identifica-se o indivíduo com um povo. O seu querer e o seu pensar com o desse povo e a sua vontade colectiva. O indivíduo, não! Perdão! O grande homem, o herói. Um D. Henrique como paradigma.

E tudo o resto passa despercebido. As condições de um tempo e de um lugar. O possível e o impossível. Os outros homens — que são números sem interesse porque não fizeram história. Os outros homens, a sua maneira de sentir e de pensar, o seu quotidiano viver, a sua economia e as relações entre si. Imolados aos personagens de primeira, aos grandes homens, Sacrificados.

Por isso, a nova história desconfia da biografia. Meteu-a no saco da historiografia tradicional ao lado, por exemplo, de uma história dos acontecimentos. E para si guardou os tempos longos, fora da voragem dos movimentos rápidos de superfície.

Porém, hoje, Beira Alta deu-lhe uma importância que, possivelmente, nem nos seus começos, nunca lhe dera. Que quererá isso significar? Que continuamos presos a velhas maneiras de pensar e de ver o mundo? Que o indivíduo está a ser recuperado e novos olhares, de outros ângulos e com outras lentes, lhe abrirão novas perspectivas? Se esta fosse a hipótese verdadeira, bem estaríamos. O indivíduo subordinado ao seu tempo, a agir condicionado pelas estruturas mentais e económico-sociais, um homem com defeitos e virtudes como todos os outros homens, destacado apenas porque mais testemunhos temos sobre ele que sobre os outros... Bem andaria a historiografia visiense. No entanto, como será isso possível se, logo numa das primeiras páginas sobre o bispo Alves Martins («D. António Alves Martins», de Luís de Gonzaga Leite Barreiros), a biografia nos é identificada como o «juízo imparcial da História» acerca do indivíduo? Mas que história é essa que nos fala de juízo imparcial em vez de compreensão e de explicação? História-juíz, que quererá isso significar?

Insiste-se no herói. Porém, Viseu continua ainda por explicar nas suas permanências como nas suas transformações, nos seus tempos mais antigos como nos mais recentes. Pois que se sabe sobre a sua vida económica, sobre a sua sociedade, que se sabe sobre o quotidiano de seus habitantes? A sua história da arte está ainda na fase da recolha documental, as suas origens começaram timidamente a ser recuperadas pela arqueologia e pela geografia, a pesquisa etnográfica, no estádio da recolha também, começou a ser empreendida. Mas os aspectos que estão por detrás de todos os outros, a sua economia e a sociedade (já não vale a pena falar nas estruturas mentais), continuam como continentes desconhecidos ainda não explorados senão por algumas pequenas sondagens.

O peso da historiografia tradicional, de ponto miúdo — de que as biografias, melhor seria dizer os textos panegíricos, a história militar e a genealogia, para não multiplicar os exemplos, servem de ilustração — é ainda sufocante.

Enquanto esse problema, problema mental sobretudo (para não dizer exclusivamente), não for resolvido, a história de Viseu, a história de seus homens e mulheres, não poderá ser erguida.

Apenas uma história de Viseu será pedir muito?

P.S. — Será extremamente interessante comparar as ideias que a historiografia visiense tem acerca dos grandes homens com aquelas que em determinados círculos se tem acerca de Viseu — «antiqua et nobilíssima cidade», como é costume enunciar-se. Por exemplo, para não ir mais longe, no número de 15/9/1983 de A Voz das Beiras («Viseu e o rio Pavia», de Reinaldo Correia): «O rio Pavia está a deixar de ser o ponto negro na beleza citadina (...), voltando a constituir de novo, um atractivo centro de recreio e até mesmo de desporto».

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Viseu, o herói e a história (a propósito da historiografia visiense e das suas perspectivas)», A Voz das Beiras, 467, 6-10-1983, pp. 2, 8.

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