Apontamentos para a
história de Viseu

Viseu e o turismo (Para além de um roteiro turístico)

António João Cruz

0. O roteiro é o de Alberto Correia, que mo ofereceu há algumas semanas. Roteiro Turístico do Distrito de Viseu ele se chama — 182 pp. editadas em 1981 pela Comissão Municipal de Turismo de Viseu. Não o li ainda. Folheei-o apenas. Não o li nem o vou ler em casa. Levá-lo-ei na mão quando for percorrer as rotas dos quatro ventos do meu distrito.

1. O roteiro será ponto de partida, será «desafio e convite» nas palavras de J. Saramago. Para a viagem. Para as viagens.

2. Uma, por algumas das páginas do roteiro, fi-la já há um ano, pelas páginas a Viseu - cidade dedicadas e que antes haviam merecido edição elas só («Um guia turístico de Viseu», A Voz das Beiras, 14-1-1982). Hoje a viagem será outra. Pelo turismo que (não) há em Viseu e pelos apoios com que (não) contava antes da publicação do roteiro.

3. A primeira pergunta que me ocorre é a de saber se há turismo em Viseu.

Dizem-me que sim: publica-se um roteiro turístico de Viseu, faz-se propaganda turística de Viseu nos jornais locais, existe uma Comissão Municipal de Turismo de Viseu, escrevem-se artigos sobre o turismo em Viseu na imprensa periódica de Viseu... Bom: que outra coisa pode isso significar se não a existência de turismo em Viseu?

Dizem-me que sim, mas eu nunca o vi.

E, no entanto, no Verão, já subi muitas vezes ao adro da Sé e vi lá autocarros que trazem pessoas para entrarem na Sé, para atravessarem as salas do museu de Grão Vasco segundo a recta que, em cada sala, une a porta de entrada com a de saída — a mais curta trajectória entre dois pontos, como postula a mecânica clássica —, para irem almoçar ao Cortiço e para de novo as levarem de volta. E vi também, ao lado, alguns carros particulares onde se arquitectava um projecto para visitar esta «antiqua et nobilíssima cidade» (quantas vezes já li isto?). Só que, geralmente, esse projecto pouco mais longe vai do que vão os outros colectivos, comprimidos entre a chegada do Autocarro e a sua partida Porque nisto de excursões é bonito cumprirem-se certos rituais... Cumprirem-se por se cumprirem... Mas, deste modo, o ritual morre e esteriliza na sua normalidade.

Mesmo assim (ou talvez por isso), eu insisto: turismo em Viseu nunca o vi.

4. É claro que isto é tudo uma questão de terminologia: o que é o turismo? Mas eu não gosto de definições do tipo turismo é... Não vou, por isso, dar a minha e não me interessam as dos outros. Cada um que (re)invente o turismo como lhe apetecer. Cada um que se desenrasque por si.

5. Assim como o fez o Turismo ao publicar este roteiro.

Pois, antes dele e da separata que das páginas sobre a cidade dele foi feita, que poderia o Turismo fornecer a quem se lhe dirigisse em busca de algumas pistas para descobrir a cidade ou o seu distrito ? Depois de 1974, apenas um pequeno desdobrável e um mapa de Viseu. Antes de 1974 se alguma coisa fornecia ou podia fornecer não sei.

6. O desdobrável, que suponho que continua ainda a distribuir graciosamente, é identificado por um título: Viseu. Antiqua et nobilíssima cidade de Portugal. Tem onze fotografias coloridas: a porta do Soar, a Sé e o museu, a cidade vista de Nordeste, três elementos de um grupo folclórico (que se não fosse a presença do elemento masculino diria que era o Grupo de Cantares de Manhouce), uma escultura que se guarda no museu de Grão Vasco, uma custódia do Tesouro da Sé, o brunir da louça negra de Molelos, alguns cavaleiros das Cavalhadas de Vil de Moinhos, o claustro da Sé, a praça D. Duarte, e, a terminar, um recanto do Fontelo.

Tem onze fotografias e tem também três textos: um que pretende traçar uma história de Viseu, outro sobre o Tesouro de Arte Sacra e, por último, um sobre o museu de Grão Vasco.

Tem onze fotografias, tem três textos, mas tem sobretudo muita asneira e muita parolice.

7. Começando pelo primeiro parágrafo do texto sobre a história de Viseu: «Nascida de um núcleo castrejo, Viseu era já na civilização romana fortificação importante, em cruzamento de vias romanas, como o atesta a sua «Cava de Viriato», campo entrincheirado de defesa».

Primeiro: há aqui uma identificação de Viseu romano com a Cava de Viriato. Assim, afirma-se existir uma continuidade entre o núcleo castrejo, a Cava e a cidade de hoje. Mas a Cava, a «fortificação importante», e o povoado romano, o ponto de passagem entre o castro e a cidade do séc. XX, estão apenas ligados pela proximidade geográfica.

Segundo: fala-se sempre do importante cruzamento de vias romanas. Mas, no entanto, apenas duas se podem testemunhar: a que vinha de Mérida e a que seguia até entroncar na de Olisipo a Bracara.

8. Segundo parágrafo: «Cidade episcopal desde 569, vítima da invasão sarracena, reconquistada pelos cristãos, surge-nos, por 1123, residência temporária do Conde D. Henrique, datando de então o seu primeiro foral».

Primeiro ponto: em 569 encontra-se a primeira referência conhecida à diocese de Viseu. Mas isso não significa que ela só exista desde 569. Significa que existe pelo menos desde 569.

Segundo: D. Henrique faleceu em 1112. Como é possível que 21 anos depois, é o texto que o diz, tenha em Viseu residência temporária?!

9. Depois, a começar no quarto parágrafo, é um não parar de fazer de Viseu uma grande cidade.

Mas onde está a cidade «das largas avenidas, das construções mais modernas, dos hotéis confortáveis e duma vitalidade comercial tão progressiva que a lança, sem receio, nas promessas duma grande cidade de futuro»? Mas onde estão as infra-estruturas que dela fazem «uma unidade turística de primeiro plano»?

Texto parolo, talvez com algum humor, e não inocente. Tiremos um hotel à cidade; depois como poderemos continuar a falar das «unidades hoteleiras»? Se são «das mais modernas e confortáveis» não o sei. Mas sei que Viseu tem dois hotéis — é, por exemplo, o Roteiro de A. Correia que o diz. Ora, a dois tirando um fica-se com uma unidade hoteleira.

10. Olhemos agora para o mapa de Viseu na edição de 1974.

Podemos aí fazer algumas sensacionais descobertas. Duas apenas servirão de exemplo.

Primeira: quem vem da Av. Emídio Navarro encontra a igreja de Nossa Senhora da Conceição antes de chegar ao Pavia!!!

Segunda: a Cava de Viriato que era suposto ser um octógono regular com uns 300 metros de lado, surge ai apenas com uns 130!!! E mais: aparentemente o Pavia vai direito ao monumento a Viriato!!!

11. Era isto que na Comissão Municipal de Turismo de Viseu se fornecia aos interessados.

Mas, quem tal escreveu ou a isto deu autorização para ser publicado não viu tamanhos erros? É assim que se pretende fomentar o turismo em Viseu? Que responsáveis são estes?

12. Agora a proposta poderá ser outra porque já há o Roteiro de A. Correia.

Proposta de um outro ver e de um outro sentir (mais, muito mais, para as zonas rurais do que para as «urbanas»). Finalmente, além de um convite, um desafio também.

Mas quem aceitará o convite para o desafio?

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Viseu e o turismo (Para além de um roteiro turístico)», A Voz das Beiras, 437, 24-2-1983, pp. 2, 10

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