A descoberta da viagem e a viagem da
descoberta
António João Cruz
Leve o chocolate a amolecer em banho-maria com duas colheres de sopa de margarina. Retire do calor e adicione o açúcar e as gemas. Bata o creme até estar fofo e perfume com baunilha ou vinho do Porto.
(De um livro de receias culinárias)
Viaje segundo um seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo.
(De um livro de viagem)
0. Há uns meses chegou-me às mãos um livro, grosso volume de muitas páginas e de muitas fotografias, que fala de Portugal — À Descoberta de Portugal, Lisboa, Selecções do Reader's Digest, 1982, 552 pp. E ele levou-me logo a revisitar um outro que também sobre Portugal fala mas que a público veio já há mais de um ano — José Saramago, Viagem a Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981, 239 pp.
Da leitura paralela que empreendi das páginas nos dois volumes a Viseu dedicadas fica o registo.
1. Antes de mais há que. fazer dos dois um sumário, ainda que rápido ele tenha de ser.
Em À Descoberta de Portugal a iniciação é feita pelo reino do verde pinho (pp. 160-161): o texto, da autoria de Alberto Correia, fala-nos das casas de varanda corrida do Almargem, dos cantares de trabalho de Calde, da cestaria do Campo e do castro de Santa Luzia, em Cavernães da arte de Grão-Vasco e da do linho e da cestaria também, das pedras de Cepões (as alminhas e a Laje Gorda) e da romagem anual à ermida de Santa Eufémia, das rendas de bilros de Farminhão, do convento de S. Martinho de Orgens, em S. Miguel do Outeiro do outeiro e das outras pedras da aldeia, da lenda do Turco em S. Pedro de France, dos barros de Téivas, da recuperação do passado empreendida em Torredeita, e a terminar, dos testemunhos arqueológicos de Vila Chã de Sá; as ilustrações mostram-nos as casas do Almargem, de varanda à volta, e as eiras e os espigueiros, as amieiras de Vil de Moinhos, as alminhas de Oliveira de Barreiros, as choupanas de Prime, o amolador de tesouras e os estanhos de Pascoal.
Textos breves, como se de uma enciclopédia fossem.
Depois, duas páginas sobre a cidade (pp. 162-163): as origens de Viseu, os séculos medievos, a cidade do Grão Vasco e a do barroco. No fim duas advertências: a primeira sobre a defesa do património e a outra sobre a cidade que é necessário descobrir.
A terminar, as Cavalhadas de Vil de Moinhos (pp. 164-165).
José Saramago viaja menos, horizontalmente, entenda-se: da viagem a Viseu (pp. 116-118) regista apenas o mau almoço, as péssimas condições do museu de Grão Vasco e o que nele viu, a visita à Sé e ao Tesouro e a má dormida. A antítese do outro.
2. Duas diferentes encenações. Por trás, duas diferentes concepções.
A Viagem a Portugal é um livro que descobre a viagem ou que a (re)inventa: viagem por um país, viagem por dentro de nós que portugueses somos. Por isso da viagem a Viseu foram retidos aspectos que doutro modo nunca o seriam. Por isso da viagem a Viseu fica uma perspectiva humana que corre de encontro è vida (recordem-se as palavras depois da visita ao museu: «o viajante precisa descansar um pouco os olhos, dá-los às coisas comuns, as casas, as poucas pessoas que passam, a ruas com os seus nomes saborosos»). Na aparência, por isso, a encenação não conduz a um texto científico, frio nas emoções como na linguagem.
À Descoberta de Portugal, por outro lado, recupera simultaneamente dois outros géneros: a corografia e o dicionário geográfico. Aí viagem não há ou se há dela não há memória. Há apenas um passar de imagens recomendadas.
3. Duas diferentes encenações que me trazem à memória um depoimento de um importante historiador francês, Georges Duby, a propósito do discurso do novo historiador: «este discurso, baseado em observações científicas muito seguras, consegue, pelo prazer do texto organizar-se como uma ficção».
4. Transposições como as fazer? Como podem ser científicas as observações de um livro de viagem, de um livro de uma viagem? Pois não vê cada um com os olhos que tem?
Deixemos estas questões para outra ocasião. Agora, uma coisa certa é: entre a Viagem a Portugal e a À Descoberta de Portugal prefiro a primeira. É o prazer de um texto que com prazer descobre a viagem contra um texto quase que oficial de propaganda turística.
5. Isto tudo dito de outra forma: a Viagem a Portugal pode levar à viagem da descoberta que nós todos deveríamos fazer; À Descoberta de Portugal é um livro para, numa estante, alimentar a nossa pequeno-burguesa cultura geral. A culpa não é de Alberto Correia, autor dos textos sobre Viseu. Disso tenho a certeza. E se a não tivesse o seu Roteiro Turístico do Distrito de Viseu, há pouco editado, dar-ma-ia certamente; ele dar-lhe-ia a absolvição — inocente como os outros colaboradores do volume. Por certo. A culpa a atribuir-se a, seria ao projecto pelas Selecções do Reader's Digest empreendido.
6. À Descoberta de Portugal é um transmissor de informações. Como outro qualquer livro, é claro. Mas com uma específica função: a de as informações transmitidas /adquiridas se ficarem por aí e nada desencadearem — o conhecimento das certezas. Por isso convém olhar com atenção para o que aí se encontra.
7. Começando pelo princípio: «No perímetro do Campo encontra-se o monte de Santa Luzia [...]. Aqui existem testemunhos claros de um velho castro, ainda do Neolítico» (p. 161). Quando isto foi escrito suponho que ainda aí não tinham sido empreendidas as duas sondagens arqueológicas ora já realizadas; por isso, os elementos disponíveis para uma datação eram escassíssimos. Mas, mesmo assim, como supor um castro do Neolítico?
8. «A designação de Veseo que aparece aplicada ao aglomerado pré-romano nada tem a ver com aquela raiz [«Viso» lugar de boa vista)]» (p. 162).
Primeira dúvida: onde é que o nome Veseo aparece aplicado ao aglomerado pré-romano? Até hoje era suposto desconhecer-se quer o nome pré-romano quer o nome romano de Viseu. Ter-se-á entretanto descoberto algum novo documento?
Segunda: se Viseu nada tem a ver com Viso então qual a sua origem ? Pelo
menos, até 1921, para Carolina Michaelis de Vasconcellos, supondo o nome Viseu de origem romana, Viso era o único topónimo que aí poderia ir dar.
9. «Na zona baixa do arrabalde [...] se cruzavam os caminhos» (p. 162). A alusão é às vias romanas. Tradicionalmente se diz que eram cerca de uma dúzia as que em Viseu se cruzavam. Só que os testemunhos disponíveis apenas duas nos asseguram: a de Merida a Viseu e que continuava para ir ligar à que unia Olisipo a Bracara.
Aqui é o peso da tradição que deixa marcas.
10. «Agora, nesta herança social que haverá de conservar-se, pouco mais do que a pedra nos fica como documento directo em que a cidade encontra parte importante da sua alma» (p. 163). Pouco mais do que a pedra nos ficou? E os documentos escritos que na Biblioteca Municipal, no Arquivo Distrital e nas outras bibliotecas e arquivos se guardam?
11. «E os nossos olhos reclamarão sempre aquela nesga de céu roubada par um arranha-céus que ali nasceu como um pesadelo» (p. 163). É claro que cada um vê como pode e como quer... Mas porque se não escreve o mesmo sobre as torres da Sé? Elas também não roubaram uma nesga de céu? Elas também não foram um pesadelo quando acabadas de edificar?
Outra vez a tradição: os nossos preconceitos: o de sempre nos situarmos no centro da história e do tempo! E dos homens também! Doutro modo como entender que se diga que o edifício do MAS roubou «aquela nesga de céu» que «os nossos olhos reclamarão para sempre» e isso se não diga sobre as torres da Sé ou da Misericórdia?
12. À Descoberta de Portugal: certezas, se calhar, não tantas como parecia. É que as aparências iludem...
13. Dois livros, duas viagens. Ou quantas quisermos. Desde que a sua descoberta se faça. Da viagem. Da descoberta.
«A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles» (J. Saramago, p. 5).
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A descoberta da viagem e a viagem da
descoberta», A Voz das Beiras, 486, 20-1-1983, pp. 2, 10.
Artigo em formato pdf
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