Apontamentos para a
história de Viseu

O património de uma cidade

António João Cruz

Património, o que é?

Viseu: os seus palácios e casas brasonadas, as soas igrejas e as suas muralhas. Ao princípio isto era o património: os monumentos. Hoje ainda, eles são as legendas de uma cidade que a propaganda turística não deixa nunca de repetir: a Sé, as janelas quinhentistas, as igrejas do Carmo, dos Terceiros e da Misericórdia, o Seminário, o edifício do museu Grão-Vasco, as casas do Cimo de Vila, dos Treixedos e dos Peixotos, as portas ainda em pé do Soar e dos Cavaleiros — outros não porque foram já destruídos.

Num percurso traçado para uma definição de património esta foi a etapa primeira: o que, feito pelo homem, impressiona pela sua monumentalidade, o que esmaga  pela  sua   dimensão. Mas, por um necrológico conceito da nossa cultura, apenas o que doutros tempos nos chegou.

O ultrapassar desta perspectiva foi, teria de ser, o estender o conceito de património a outras obras de arte, eruditas é claro, mas mais modestas nas dimensões: o recheio de igrejas e museus, as mais raras espécies bibliográficas e os manuscritos inéditos ainda ou a público já dados, sirvam como exemplos o S. Pedro do Grão Vasco e o original da Virtuosa Benfeitoria do infante D. Pedro.

Não raro, esta é a ideia que primeiro se tem de património. Mas há que além dela passar: as alminhas erigidas ao longo das estradas, os ex-votos, os instrumentos e os objectos de um outro quotidiano, hoje perdido quase mas que noutros tempos foi o de uma civilização, como os objectos de folha de flandres que os latoeiros da Sé fazem hoje ainda, como as amieiras de Vil de Moinhos, como os barros negros de Molelos e de Ribolhos e os vermelhos da Gândara, como os cestos do Montemuro e como os outros instrumentos e objectos mais que menos conhecidos são, Como a Sé e os outros monumentos iodos, isto é património. Também. Como eles também, testemunhos de outros viveres e de outros homens. Como eles também, testemunhos de outras sociedades e de outras mentes.

Isto é: de vida nos fala o património, da do homem. Porque património humano é tudo o que da acção do homem resulta, o que vivo está como o que vivo ontem esteve mas hoje já não porque o tempo ou os próprios homens lhe deram morte. Por isso, património são também os edifícios, as alfaias agrícolas, os objectos industriais, o modo de alimentação e de vestir, as crenças, a literatura orai como a escrita. Por isso, património são também o monte de Santa Luzia, o Fontelo e o Pavia, onde dia após dia, ano após ano, século após século, o diálogo com o homem é sempre empreendido para um e outro lado a um mesmo tempo. Por isso, património são também...

Assim entendido o património, como fazer a distinção tradicional entre património natural e património cultural? Natureza em oposição à cultura, o mesmo é dizer ao homem? É uma formulação demasiado dicotómica, pois que é a cultura se não algo que na natureza assenta ?

Vejamos o Fontelo. Aparentemente como património natural deverá ser classificado: é uma manifestação da natureza que aí, como em nenhum outro sítio da cidade, atinge a sua pujança. Mas é também uma manifestação dos homens, pois quem lhe deu a forma que hoje vemos se não eles ?

Insisto: na medida em que o homem intervém na natureza, na medida em que a tenta moldar a si, é ele também que a cria. Por isso, património cultural.

Um outro aspecto a necessitar urgentemente de revisão é o do etnocentrismo das nossas tradicionais definições de património, elas todas marcadas pelos nossos preconceitos.

Se património é tudo o que da acção do homem resulta, como dizer que a «casa de emigrante», viva nas cores, do nosso património cultural não faz parte enquanto a habitação de forma e construção tradicionais o faz? Uma e outra não são resultado de um mesmo processo, diferentemente conduzido apenas? Uma e outra não resultam de um mesmo diálogo entre o homem e o seu meio geográfico Apenas os padrões culturais que ditaram a escolha dos materiais, como da forma, como das cores foram outros que não os mesmos. Agora, porque a habitação tradicional cronologicamente recua mais longe, apenas ela como património deverá ser classificada? Suponhamos que daqui por dois ou três séculos existem ainda «casas de emigrantes». Então, no séc. XXII ou XXIII, os defensores do património não as terão por tradicionais e, por isso como exemplares a preservar e recuperar? Eles não as terão como genuínas manifestações da cultura popular portuguesa (o que é isto?) e em nome disso não irão tentar proibir a construção de outras habitações então recém-surgidas ? Suponhamos agora que dentro de vinte anos nenhuma «casa de emigrante» resta de pé e que nenhuma outra é erguida. Será que os defensores do património do séc. XXII ou XXIII quando virem fotografias delas as não darão como exemplos da destruição do património operada no séc. XX?

O pôr em causa a nossa prática cultural no domínio do património é por isso um acto que resulta justificado. Assim: será que o combate hoje movido à «casa de emigrante» é sinónimo de defesa do património? Não será antes uma tentativa de, pela força, uma cultura se impôr a outra cultura? Se sempre assim se tivesse procedido, se isso se tivesse feito quando o gótico foi inovação e mudança, que seria da Batalha?

O problema assim equacionado não fica esgotado, pois ele outra forma pode assumir: tendo por património tudo o que..., como compreender que seja a UNESCO (Convenção sobre a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, Paris, 1972) a falar do património cultural — dos monumentos, dos conjuntos monumentais e dos lugares — como o que do ponto de vista histórico, artístico, científico, estético, etnológico ou antropológico tem «um valor universal excepcional»?

Será que nem tudo o que da acção do homem resulta é importante? Será que nem todos os seus actos têm um significado? Façamos que não: mas então, por onde fazer a medição se não por um pessoalíssimo critério? Ora, num país e numa cidade ou em outro qualquer sítio em que culturas diferentes se tocam que outro significado poderá isso ter que não o de a cultura mais forte às mais fracas se impôr?

Destruir,   preservar e recuperar

À partida, na encruzilhada entre dois tempos, o passado e o futuro, uma interrogação de hoje: transmitir ou destruir?

Durante os dias todos dos anos em que de património se fala as opções, porque disso se trata, são concordes, as respostas uma apenas: património é o testemunho passado de uma geração a outra, a que se lhe segue. Testemunho do homem, há que acrescentar. Melhor: dos homens — formulação plural que melhor consagra a necessidade da diversidade, o mesmo é dizer da diferença. Resposta teórica, é claro. Porque toda uma prática outra coisa mostra: a necessidade de destruir — destruição quotidiana em que o homem se alia ao tempo num mesmo processo que não pára nunca.

Isto é: se a defesa do património resulta de uma humana necessidade de não perder referências, entenda-se uma identidade comum, a sua destruição radica-se numa outra necessidade de constantemente uma comunidade a si própria se (re)criar, recusando antigas concepções, outras novas construindo, em movimento contínuo, crescente sempre na sua velocidade.

Aqui a primeira impossibilidade: a de na encruzilhada simultaneamente se escolherem os dois caminhos. A escolha deve ser feita, tem de ser feita, uma vez apenas — porque o tempo passado não volta nunca e a destruição que uma vez se faz é para sempre.

A escolha é a cultura que a faz, são as ideias e os conceitos de um tempo e de uns homens. E ela, assim, desse tempo e desses homens nos fala. A destruição do património não é, por isso, destruição; é antes uma manifestação de uma cultura. A conclusão, é, no entanto explosiva: levada às consequências últimas ela enuncia a auto-destruição da humanidade.

Hoje, a escolha é a de preservar e de recuperar: preservar o que vivo está ainda, recuperar o que vivo esteve já. Aqui a segunda impossibilidade: a de vencer a morte. Impossibilidade aparentemente adiada, no entanto.

Por detrás desse enganar sucessivo, jogo em que importa erguer fachadas, está uma prática que se diz de «defesa do património». Sobretudo empreendida, exclusivamente empreendida, por um poder cultural — atitude etnocêntrica com laivos de paternalismo.

Mas como defender? Através de uma acção de inventariação e estudo, primeiro, depois através de uma acção de recuperação, que é também de recolha e de restauração? Será isso suficiente sem uma outra acção, a de permitir que o património a viver continue ou que a viver recomece? Por isso, na realidade, o problema é o de saber como preservar. Mas como o fazer? Se tudo morre, como não deixar morrer? Se tudo morre, como trazer à vida o que morreu já? Insisto: é impossível preservar e recuperar. Também porque se do património houvesse destruição, destruição seria toda a restauração.

A Sé é um exemplo: para quem a visita, supõe Almeida Moreira ser «curioso acentuar que, ao entrar, passa por um portal dos meados do séc. XVII, construído entre duas torres românicas do séc. XII, com modificações na sua parte superior, do séc. XVIII, para se encontrar, uma vez no interior da igreja, sob uma abóbada do princípio do séc. XVI, sustentada em apoios do séc. XII». E depois há toda a decoração do interior... Para a restaurar, que século escolher? Porque se vamos restituir--lhe a forma do séc. séc. XVIII vamos destruir as outras todas dos outros séculos todos. Porque se vamos restituir-lhe a forma do séc. XVI...

Restaurar as formas, é claro. Apenas. Porque as emoções como as ideias perderam-se. Para sempre. Mesmo que em todos os pormenores a Sé pudesse retomar a sua forma do séc. XII, ela seria a Sé do séc. XX, o século que de novo lha dera, e não a do séc. XII. Porque os olhos que para ela olhariam seriam os do séc. XX.* Porque as emoções que ela suscitasse seriam emoções do séc. XX. Porque...

Se impossível é transmitir, se impossível é destruir, que se faz ao património? (Re)cria-se! O património, esta é a sua lei, não se transmite, não se destrói, (re)cria--se.

A prática da defesa

Os gestos milenares de camponeses das terras madrastas, os dias todos repetidos, iguais todos uns aos outros, a mesma dor e a mesma alegria, vêem-se nas fotografias coloridas de livros, de livros que compramos. Em nós é o respeito por essas vidas das nossas tão diferentes, é o contacto, falso porque irreal, com o seu exotismo, é o gostar ou não gostar das fotografias coloridas dos livros que compramos. Mas as dores e as alegrias, a vida e a morte desses homens e dessas mulheres são deles, são eles, não somos nós, não o seremos nunca. Por isso, com que direito e em nome de quê lutaremos para que esses gestos continuem sempre a ser repetidos, hoje como ontem, ontem como anteontem, iguais sempre a si mesmos? Porquê essa luta? Apenas para que a estrangeiros possamos dizer: «veja as nossas raízes, aprecie a sua pureza; faça férias em Portugal, o paraíso perdido que espera por si, que espera que o encontre»? Com que direito e em nome de quê se decidirá sobre a vida e a morte desses outros homens, indefesos perante nós senhores de um outro poder, senhores de uma outra força, senhores de outros homens?

É claro: estes camponeses são um e muitos a um mesmo tempo. Um porque paradigma da prática de um poder cultural, muitos por aquilo que são. Por isso, eles são também as «casas de emigrantes» que não se querem deixar construir. Por isso, eles são também as canções que falam de amores e de trabalhos de um outro quotidiano, entoadas ao som do maçar do linho que hoje não se cultiva, mas que nós queremos ouvir ainda nos campos. Por isso, eles são também o edifício de quase vinte andares que não se quis deixar construir na cidade. Por isso. eles são também...

Esta é a nossa prática. Prática de uma defesa do património. Prática de uma defesa de nós. De nós brancos civilizados, de nós europeus, de nós portugueses que sabemos ler e escrever, de nós portugueses que sabemos ter poder, que sabemos decidir pelos outros, que podemos decidir pelos outros, que decidimos pelos outros. Esta é a nossa prática de defesa do património. Esta é a nossa prática de defesa de nós. São as nossas ideias que estão certas, são os nossos valores que estão certos, somos nós que estamos certos. Os outros nunca. Nunca. O seu património há por isso que ser substituído pelo nosso, pelo nosso património, pelo património.

Que se pretende, afinal, com essas acções ditas de defesa de um património que, dizem-nos, nos é comum a todos nós?

Antes de mais, ela significa o traçar prévio de um caminho para outros homens, caminho que não raro caminho não é porque o que se pretende, já que atrás não se pode voltar, é o ficar no mesmo sítio. Estas acções, fruto de um nosso progresso que foi e é cultural, são, pela ordem que gostariam de estabelecer, a sua própria negação. No entanto, uma coisa certa é: quando, ao iniciar um caminho longo, o nosso antepassado conscientemente construiu o seu primeiro artefacto, o nosso primeiro artefacto, se assim se pensasse, se assim se pretendesse defender o património, se assim acontecesse, hoje ainda o instrumento único que nós saberíamos construir, o instrumento único que nós saberíamos utilizar, seria esse, seria esse e nenhum mais. Será isso que se pretende? Será?

Uma segunda constatação: essa defesa do património passa por um seu estudo, estudo que mais se tem feito na aparência do que na realidade, há que sublinhá-lo. Mas, mesmo assim, quanto mais reduzidos não seriam os nossos conhecimentos se durante estes séculos todos que atrás de nós ficaram esse estudo não tivesse sido empreendido melhor nuns casos do que noutros, mais atentos umas vezes aos aspectos que doutras passaram despercebidos ?

Um exemplo: que se saberia hoje sobre todas essas inscrições romanas que Manuel Botelho Ribeiro Pereira, em meados da primeira metade do séc. XVII, estudou a seu modo? É certo que esse estudo hoje se encontra muito ultrapassado. É também certo que algumas das inscrições existem hoje ainda. Mas aquelas todas de que se desconhece o paradeiro? Que se saberia hoje sobre o povoamento romano de Paradinha, ali mesmo ao sair da cidade, se ele não tivesse lido aquela epígrafe funerária, monumento mandado fazer pelos pais piedosos de Valerius Reburrus, falecido aos 17 anos, monumento feito para perpetuar uma vida e uma morte ? Essa inscrição é um exemplo. Assim como esse cronista seiscentista o é também. Exemplos apenas.

Mas poderá algum dia esse estudo trazer à vida os homens de que esses testemunhos nos falam? A arqueologia deles empreendida será um modo de melhor conhecermos esses homens que antes de nós viveram, o seu quotidiano e as suas ideias, a sua vida e a sua morte. Será também um modo de melhor nos conhecermos, de melhor sabermos o caminho por nós andado, o caminho por onde nós andamos, o caminho por onde nós andaremos — pois presente passado e futuro tocam-se sempre, fundem-se sempre num mesmo tempo. Mas, repito, esse estudo poderá alguma vez trazer esses homens até nós?

Esta uma outra versão de uma das leis do património: podemos utilizá-lo mas não o podemos nunca recuperar, entenda-se um reencontro com esses homens que o fizeram.

Defender o património?!... Que poderá isso significar?

P.S. É claro que a «casa de emigrante» não é referida por aquilo que é mas por aquilo que representa.

* Fragmento que não saiu publicado.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «O património de uma cidade», A Voz das Beiras, 425, 25-11-1982, pp. 2, 10; 428, 16-12-1982, pp. 2, 12; 483, 23-12-1982, pp. 2, 14.

Artigo em formato pdf