Apontamentos para a
história de Viseu

A cidade do barroco

António João Cruz

De Viseu se costuma dizer que bem se poderia chamar «cidade princesa do barroco». Deixando de parte o que nessa afirmação há de bairrismo, quem sabe se sem visão, é no entanto verdade que um dos estilos que mais marcas deixou na cidade de hoje foi o barroco — período que se inicia com toda a pujança, é Alexandre Alves, um especialista da história da arte visiense, que o reconhece, com a morte de D. Jerónimo Soares, ocorrida em 1720, e que se prolonga até 1741, época de vacância, em que foi o cabido a administrar os bens que doutro modo seria o bispo a fazer.

Ora, que sucede então em Viseu? Em fins do séc. XVII a cidade tem uns 900 fogos, tantos quantos em meados do séc. XVIII. Ao abrir o séc. XIX pouco irá além dos 1000. Embora estes números sejam dados com algumas reservas não se pode deixar de reconhecer que o crescimento que eles traduzem é modestíssimo — o aumento do número de fogos que nesse período ocorre em Portugal é de mais de 65 %. Isto tem um significado: Viseu, no séc. XVIII, está em crise: a sua população não cresce.

Tomemos um outro indicador: os preços — os preços do azeite porque são aqueles que formam a série menos incompleta. Para a primeira metade do século aos elementos disponíveis, que já por si são escassos, há que pôr também algumas reservas. No entanto, eles permitem-nos vislumbrar um movimento que se pode descrever assim: na década de 10 um ciclo de grande amplitude — reflexos da Guerra da Sucessão de Espanha —, de 20 a 50 uma subida pouco acentuada pelo menos durante as primeiras duas décadas os preços mantêm-se notáveis —, de 50 a 59 uma fase de baixa e, finalmente, uma subida firme que se prolonga pelos inícios do séc. XIX.

Repare-se: durante as décadas de 20 e 30 o gráfico da população e o dos preços têm uma mesma curva: uma recta horizontal. Ora, isto levanta uma questão que é a de saber como explicar o desenvolvimento do barroco neste contexto. É que há uma contradição: uma cidade onde a circulação monetária se mantém constante — facto que se traduz na horizontalidade da curva dos preços — como se pode abalançar a essa quase que renovação urbana?

Não se diga que a arte não influi na economia: numa cidade tão pequena como é Viseu setecentista — esta é a realidade, por muito que isso pese a algumas pessoas —, a presença dos artistas, as somas gastas em materiais e pagamentos teriam de deixar a sua marca na vida económica visienses. Essas «grandes somas, (...) de tamanho vulto», que então se despenderam não poderiam deixar de provocar um aumento dos preços.  Mas não foi isso que na realidade sucedeu: essa renovação barroca ocorreu durante um período em que a curva dos preços se mantém horizontal; mas não será esse movimento resultado de uma conjuntura nacional, quem sabe se internacional? Ora, a época que vai de meados da década de 10 a meados do século é de descida dos preços do azeite — pelo menos, assim acontece no mercado de Lisboa. Esse desfasamento de tendências entre os dois mercados não terá a sua explicação na renovação barroca visiense? — hipótese a explorar mas que, no entanto, não resolve ainda o problema: pois como justificar que nesse período de crise se tenham empreendido essas obras? Supor, como até aqui se tem feito, que elas foram consequência da inexistência de prelado durante as décadas de 20 e 30 afigura-se como explicação demasiado confusa e insuficiente: essa hipótese bastante ajudaria a explicar se com essa transferência de funções económicas tivesse ocorrido simultaneamente um considerável aumento das receitas eclesiásticas — isto traria como consequência um acentuado aumento dos preços dos géneros. Ora, esse acréscimo das receitas apenas seria possível se durante esse período a cidade não estivesse em crise — a crise europeia de 1650-1750 que, demograficamente, se caracteriza pela diminuição do ritmo de crescimento. E repare-se: essa mudança da conjuntura económica é que seria a verdadeira causa (a principal, entenda-se), não o facto de então se estar em vacância e ser o cabido a gerir as receitas episcopais. Infelizmente não dispomos de estimativas dos rendimentos do bispado como para o séc. XVII sucede, mas não se diga, quase que a significar desafogo económico, que o facto de «na Semana Santa de 1727, aos pobres desta cidade» terem sido «distribuídas (...) nada menos de 100 moedas de ouro de lei, de 4800 réis cada uma» é um «alarde extraordinário de munificência». Esse facto corresponde sobretudo ao reconhecimento de uma situação de pobreza cuja real dimensão nos escapa.

O empreendimento a que o cabido mete mãos deve ter, teve certamente, a suas consequências económicas: essas obras deram emprego a muitos braços que doutro modo o teriam de ir procurar a outro lado (será bom não esquecermos da dimensão da emigração pelo menos em finais do século) — disso reflexo é o facto de os preços, os do azeite pelo menos, durante essas duas décadas de vacância se manterem estáveis contra uma tendência que era a de descida. Desse empreendimento quem menos lucra por certo que não é o cabido: quanto mais elevados foram os preços mais as suas rendas são aumentadas pois que então os foros que lhe são pagos são-no em géneros. Por outro lado, quanto maiores forem as suas rendas maior é o investimento possível. Por isso, cabe perguntar em que medida essas obras públicas que se realizaram na cidade constituíram um factor de desenvolvimento económico previamente pensado nas suas consequências?

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Será necessário referir a fragilidade de toda esta construção? Os elementos hoje disponíveis são ainda muito escassos. Mais não se pode fazer do que tentar levantar algumas pistas para uma futura investigação, nada mais.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A cidade do barroco», A Voz das Beiras, 421, 26-10-1982, pp. 2, 10

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