S. Teotónio - conspiração herege

António João Cruz

À partida tudo está já dito: varão insigne, virtudes reunidas em tal abundância como até então nunca se viria, feitos milagrosos. Em suma : um santo que honra a sua terra de nascimento, qualquer que seja, por muitos outros santos que ela tivesse já.

A este quadro o que há mais para acrescentar? Que outro elogio a esta personagem celestial se poderia mais fazer? Que se poderia dizer da sua vida senão que foi prior da Sé de Viseu, que duas peregrinações aos Lugares Santos fez, que para prior de Santa Cruz de Coimbra por seus irmãos de hábito foi escolhido e que tal fama de santidade à hora da sua morte desfrutava que logo um ano depois, em 1163, era canonizado? Insisto: poder-se-ia dizer mais alguma coisa? Se S. Teotónio fosse um homem, um comum mortal, bem se poderia tentar um esboço de explicação, seja da sua vida, seja do seu mito. Mas o mesmo se poderá fazer de alguém que deste mundo não foi, de alguém que acima dele viveu?

No entanto, o processo aparentemente encontra-se bastante completo: todos os actos que como prova de santidade poderiam ser utilizados se encontram inventariados por todos esses historiógrafos que desde há séculos infatigavelmente livro após livro os têm registado, tais como as suas falas mais sábias há muito se encontram gravadas para a posteridade. E mais: em todos os seus pormenores, que nenhum deles poderia ficar esquecido.

Mas sendo quase todas as referências tardias não há que usar de cautela na sua utilização? — primeira dúvida a surgir. Por outro lado, terá o prior D. Teotónio, ao que consta conselheiro de D. Afonso Henriques, vivido assim tão à margem do seu mundo medieval? — questão segunda, herege na dúvida que levanta. É que o comportamento de Teotónio parece obedecer a umas certas normas de conduta no seu tempo vigentes. E assim sendo...

Bom, comecemos pelo princípio: Teotónio, moço de alguns anos, na companhia de seu tio, o bispo D. Crescónio, desce do Minho, onde havia nascido cerca de 1080, para Coimbra. Aí fica até que aos 18 anos, por morte do tio, vai para Viseu onde toma ordens. Até aqui nada de premonitório, nenhum indício da importância que mais tarde virá a ter, até aqui percurso semelhante a muitos outros, certamente. Mas que sucede depois? Viseu em virtude do estado desolador em que fora recuperada das mãos mouras não tem ainda bispo. É o de Coimbra que então governa a antiga diocese e para melhor o fazer aí dispõe de um prior. Em 1112, por morte de D. Teodónio, também seu tio, D. Teotónio é nomeado para o substituir na função. Ora sucede que anos mais tarde D. Teotónio a tal renuncia para em peregrinação ir aos Lugares Santos.

É o início do mito: a peregrinação é, nos princípios do século XII, um acto de significação profunda: ela é a purificação, o mesmo é dizer a preparação para a morte e a promessa de salvação: o peregrino S. Teotónio que regressa dos Lugares Santos não pertence já a este mundo pois no outro ele tem já o seu lugar destinado. Ele não pode, por isso, retomar o antigo priorado. E, imune aos castigos terrestres, ele, voz dos Céus, pode serenamente censurar D. Teresa e o conde Fernando Peres.

Prepara uma terceira peregrinação quando o arcediago D. Telo, o encarregado de educação do jovem Teotónio quando a Coimbra chegara, o convida a entrar na comunidade de Santa Cruz, organizada segunda a regra de Santo Agostinho. Enquanto a catedral a que ele renunciara é a igreja da cidade, entenda-se a igreja voltada para os homens, para a vida quotidiana, o mosteiro é o local desta afastado, exclusivamente orientado para o Céu de que pretende obter o perdão. D. Teotónio não poderia ser insensível ao convite-pedido; ele não poderia recusar-se a ser o mais directo elo entre Deus e os homens — prior da comunidade que outra coisa poderia ele ser?

Pois: que poderia ele ser? No séc. XII o que poderia ser um santo senão um ser dobrado ao peso dos rituais? Como poderia Teotónio ser canonizado se não tivesse traçado o seu próprio caminho, árduo mas o caminho da santidade: primeiro a purificação, depois o abandono do mundo?

E o mito, porque nasce ele? Homens desprotegidos, impotentes perante uma natureza que não conhecem ainda, saídos do terror do ano mil, o do fim dos tempos, como não haviam eles de se agarrarem a um homem dos Céus tão próximo? —aliás, outra não era a função dos monges que não a de agentes de redenção colectiva. Como poderiam eles, nesses momentos de crise e de pânico, não multiplicar feitos e virtudes do santo que por eles rogava? Como poderiam ...