O rio e a
cidade
António João Cruz
O rio e a cidade — tema do tamanho dos dois personagens e importante como se de um dos dois se tratasse. Porque a cidade não se explica sem o rio. Como este, aquele que hoje vemos, sem a cidade. Acrescento: extracto do diálogo entre o homem e o meio geográfico.
É a história desta comunicação, simultaneamente empreendida nos dois sentidos, que importa fazer.
Mas como fazer uma história das águas do rio, das que fixaram os habitantes da cidade e das que outros homens separaram? Como fazer uma história das águas do rio, das que alimentaram homens e mulheres e das que os mataram? Como fazer uma história das águas do rio, das que fizeram girar rodas de moinho e das que hortas regaram? Como fazer...
Uma vez mais, o mesmo lamento: a historiografia visiense ignorou o rio, como ignorou os pobres, como ignorou o pão de cada dia, como... Porque nessa história não há outros heróis que não o rio e a cidade, reis só de passagem e de guerra contra castelhanos sangue não se encontra.
E também uma mesma esperança: a de que um dia essa história se venha a fazer. E que cedo seja.
Isto dito, como começar a falar de um rio sem utilizar uma fórmula velha de manuais velhos também, como de outros acabados de imprimir; «nasce o Pavia na Serra da Mina, junto à Póvoa do Confulco, freguesia de Mundão, banha as povoações do Casal, Nespereira e Catavejo da mesma freguesia; em Travassós de Baixo recebe da margem esquerda, a ribeira de Mundão, em S. João da Carreira, da mesma margem, a ribeira de Travassós de Cima, e em Viseu o ribeiro do Pintor, com o nome de ribeiro das Mestras. A juzante da freguesia do Salvador [leia-se S. Salvador] os seus afluentes principais são, da margem direita do Rio d'Asnos e da margem esquerda, o ribeiro de Vila Chã, no sítio dos Três Rios, a montante de Parada de Gonta, desaguando na margem direita do Dão, junto a Ferreiroz»?
Depois: como continuar senão tentando abordar o rio como factor geográfico a pesar nas origens do povoamento? Como não dizer que mais do que separar o rio uniu os habitantes que nas suas margens se fixaram? Como nada dizer da proximidade de alguns castros ao rio, sirvam de exemplo o dos Três Rios como o do «castelo dos Mouros»?
Sucede, no entanto, que nenhuma dessas relações mecanicamente se pode explicar, nenhuma delas é linear nem clara como noutro tempo o foram as águas do Pavia. Doutro modo como explicar que outros cumes elevados junto ao rio não tenham sido escolhidos para a edificação de outros castros? Doutro modo como explicar que apenas um deles se tenha desenvolvido e originado Viseu?
Bom: afinal, para a cidade, o rio o que é? Porque de história se trata: o que foi?
Em três palavras: o guardador da vida.
Primeiro porque se não é ao rio que os habitantes do povoado vão buscar a água que bebem, pelo menos em tempos mais recentes, é a ele que ficam devendo as «frescas hortas, a muita hortaliça e a grande quantidade de verde linho». Assim é no séc. XVII e é por num dia as águas serem poucas que moleiros e agricultores de Vil de Moinhos entram em lula pela sua posse — é a vida em disputa. Os moleiros levam a melhor e em acção de graças fazem um cortejo à capela de S. João da Carreira, ano após ano — as Cavalhadas de Vil de Moinhos e a sua origem lendária.
Mas não são só as terras que fertiliza: rio que se preze não esquece os peixes que o povoam. O Pavia é assim, foi assim: abundante de bordalos «em extremo saborosos».
A segunda dádiva, noutros tempos não menos importante, é a segurança: a Cava, um octógono que bem se pode considerar regular, de muros de secção trapezoidal, pelo exterior um perímetro de quase dois quilómetros e meio, que seria ela se os seus muros não fossem circuitados por um fosso que se inundava com a água de um pequeno ribeiro que ao Pavia se ia juntar?
Guardador da vida, pois: da dos homens e da que a destes permite. Mas porque os homens não respeitam a do rio porque não havia este de se não pagar também na mesma moeda, uma vez por outra? Por isso a «alagôa que esta Cava tem» porque «não corre no Verão e está sempre enxarcada» é causa de «muitas doenças». Por isso o Pavia que «no estio leva pouca água por lha tomarem para regarem», pela «hortaliça que nele se lava junto com a roupa e a imundice da cidade que nele se despeja» «fica [com a] sua água corrupta», o que mais ajuda à insalubridade do sítio.
Dificuldades no diálogo já no séc. XVII... Que se dirá hoje?
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «O rio e a
cidade», A Voz das Beiras, 415, 9-9-1982, pp. 2, 10.
Artigo em formato pdf
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