Apontamentos para a
história de Viseu

Os pobres de uma cidade e arredores

António João Cruz

Os testemunhos da pobreza são escassos: os pobres vivem nos arredores de uma sociedade de que não serão nunca elementos — na visão de passados séculos, entenda-se. Não têm acesso às deliberações camarárias como não merecem referência nas crónicas da cidade. Os documentos todos que deles falam em caso algum são de sua lavra: a sua história não a escreveram eles — não a podemos escrever nós, por isso. Antes: esses homens e mulheres que num dia nasceram e noutro morreram, chegam-nos através do poder de que foram marginais. Problema primeiro, fundamental. Paradoxo também: como compreender tal condescendência? Mas é sobretudo o silêncio que pesa.

É, no entanto, a pobreza de tão pequenas dimensões como o sugere a ausência de testemunho? A isto tentar responder eis o objectivo da sondagem empreendida.

Em finais do séc. XVIII ou princípios do seguinte, o bispo D. Jerónimo Soares relatava que «neste Bispado há muita pobreza por ser uma província mui fecunda de povoações»... Conhecida é a atenção que aos prelados visienses os pobres suscitaram: os seus biógrafos referem frequentemente doações e dádivas generosas por eles efectuadas de modo mais irregular que regular, seja directamente, seja por intermédio de outrem, a Misericórdia por exemplo. Mas em termos quantitativos tudo se ignora.

Um documento até hoje inédito dá-nos, contudo, preciosos elementos. É o Rol dos Pobres mais necessitados da freg.a do Pe Cura Manoel Lopes de Almeyda (ADV, Cabido, m. 3, col. 125): um recenseamento elaborado com o objectivo de se proceder a uma «repartição de vestidos». O domínio demo-geográfico? O milhar e meio de habitantes de uma das freguesias «urbanas» de Viseu, 65% dos quais vive no campo, nos arredores da cidade. Em 1766.

Primeira questão: quem são os pobres? No inventário apenas sobre 1/3 vêm indicadas as causas porque foram em tal grupo incluídos. A maior parte são doentes e/ou aleijados. Muitos são também os velhos. Depois as viúvas e os órfãos. Ou seja: são apenas referidas as pessoas que vivem no limiar da incapacidade física. Mas os outros tipos de pobres: os que vivem no limiar biológico e aquele outros que vivem no da associabilidade? São eles os que não trazem qualquer indicação ou antes algum motivo houve para que não fossem arrolados também?

Segundo ponto: quantos os pobres e onde residem?

Na cidade são 42, portanto uns 8 % da população total. Encontram-se sobretudo na Rua Nova (17) e na Rua Escura (12) — na cidade medieval, entenda-se. Nos arredores, 69: 6 % dos habitantes, irregularmente distribuídos por muitas povoações elas todas juntinho a Viseu: 1 nas Laijas (1% da população) e no Carvalhal (6 %), 3 em Barbeita (2 %), como em Gumirães (2 %), como na Quinta das Fontaínhas, como na da Alagoa (23 %), 5 em Marzovelos (9%) e em Cabanões (12%), 7 na Póvoa de Sobrinhos (5 %), 9 no Soqueiro (?), 13 em Rio de Loba (8 %) e 16 em Ranhados (6%).

Em Portugal, no séc. XVIII, as regiões interiores são ainda o sítio onde cidade e campo de diferente pouco apresentam: o campo penetra pela cidade — as hortas e quintais numerosos que aí se encontram disso são um bom testemunho — e esta mais não é do que uma aldeia maior, com mais elevada concentração de edifícios públicos tal como de funcionários administrativos. A existência de uma quase mesma taxa de pobreza em uma e outro disso não será também sintoma? Ou apenas fortuita coincidência, vazia de significado?

Mas o manuscrito refere apenas, segundo os seus próprios termos, os «pobres mais necessitados». Assim será legítimo supor que a pobreza é de muito maiores dimensões. Quanto? Uns 15 % da população ? 20 %? Mais ainda ? Questões ainda sem resposta.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Os pobres de uma cidade e arredores», A Voz das Beiras, 406, 1-7-1982, pp. 2, 8

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