O pão de
cada dia
António João Cruz
Meados do séc. XIX. A superfície da Beira empregue no cultivo de cereais é estimada em 67,5 léguas quadradas — entenda-se 9,3 % da área total. Hoje no distrito de Viseu as terras de cereais representam 14,7 %; na globalidade dos distritos de Aveiro Coimbra, Viseu, Guarda e Castelo Branco (a antiga província da Beira) 13,2 %. Se no último século foi mais ou menos igual a expansão das terras de pão, a dar crédito a estes valores, em meados de oitocentos 10,4 % do distrito de Viseu está ocupado com cereais.
Será um décimo das terras suficiente para alimentar os habitantes todos? Muitos dos testemunhos da historiografia visiense — todos eles com intuitos panegíricos, recorde-se — falam da abundância de géneros. Mas existia ela na realidade ou tratava-se antes de simples elemento de retórica ou de rotineiro elogio?
Essa a questão a que se tentará responder mas, desde fá, bom será referir a fragilidade de alguns dos dados aqui utilizados tal como o tratamento rudimentar a que foram sujeitos. Isto é sobretudo resultado da insuficiência de fontes quantitativas para outras épocas que não a nossa.
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Em 1864 dizia o Marquês de Niza que o gasto médio de grãos de cereais por dia e por pessoa era de 2 kg. O que ao fim de um ano dá uns 730 kg. Vitorino Magalhães Godinho aponta números bastante diferentes: 3 hectolitros anuais por habitante. A equivalência entre hectolitros e quilogramas varia conforme o cereal: 1 hl de centeio = 74 kg, 1 hl de milho = 75 kg: 1 hl de trigo=79 kg mas se como valor médio tomarmos o de 1 hl=75 kg temos como consumo anual uns 225 kg, ou seja 1/3 da quantidade indicada pelo Marquês de Niza., Sucede que em 1906 a ração de pão de jornaleiros agrícolas e artesãos é em quase todo o país de 1 kg se não mais e o peso que a batata então tem não é o de meados do séc. XIX. Aceitemos por isso os 730 kg.
Em meados de oitocentos a população do distrito ronda os 365 mil habitantes. Isto é: anualmente são necessárias umas 255 mil toneladas de cereais.
Como para as novas sementeiras é preciso cerca de 15 % da produção, supondo os cereais consumidos no distrito todos eles daí originários para as sementeiras, temos que a produção de cereais no distrito seria da ordem das 300 mil toneladas. O que significa um rendimento de 5,8 t/ha. Hoje, no distrito, a média dos rendimentos do trigo, do milho e do centeio é de cerca de 1 t/ha: logo de imediato esse valor de 5,8 surge como improvável. Mais: como impossível.
Embora a tendência da evolução a longo prazo seja a do aumento do rendimento, aceitando como valor de ontem o 1 t/ha de hoje teremos como produção anual umas 52 mil toneladas: apenas 17 % do necessário! Mesmo tendo como exacto o valor excessivamente baixo apresentado por Magalhães Godinho para o consumo anual de cereais por pessoa, apenas 63 % das necessidades seriam supridas.
Mas há que entrar também como os quantitativos gastos na alimentação do gado e com aqueles que se destroem por acidente (posto que estes se possam considerar desprezíveis). Mais se acentuará ainda essa insuficiência. Depois, há os anos que são bons mas outros há que o não são.
Conclusão plena de consequências: Viseu (o distrito) é em meados do séc. XIX uma região altamente deficitária em cereais tal como muito provavelmente o fora em anteriores épocas. Não residirá aqui uma das explicações para o fraco crescimento demográfico da região nos séculos que atrás de oitocentos ficaram ? É que, diz-nos uma das regras das repartições dos homens no espaço, a desigual distribuição demográfica é função da quantidade de alimentos disponível em cada região. Excepções há-as... Como há também formas de contrariar a distribuição desigual do alimento: o seu comércio. O que não existe em meados de oitocentos, antes do caminho de ferro, é um meio de transporte terrestre que permita alimentar um número grande de homens a grande distância de uma fonte alimentar.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «O pão de
cada dia», A Voz das Beiras, 403, 10-6-1982, pp. 2, 10
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