Os grupos e as ideias: um exemplo do séc. XVII
António João Cruz
Manuel Botelho Ribeiro Pereira já noutra ocasião o
abordámos (A Voz das
Beiras de 16-7-1981). Então como o primeiro cronista
da cidade. A ele voltamos. Hoje utilizando a sua obra como testemunho
de um determinado grupo social.
Pereira deve ter nascido ao redor de 1580. Na sua família
um número incontável de membros do clero e de elementos
da nobreza rural e da de toga (funcionários
administrativos). Por nascimento pertence à nobreza. Em 1630
dá início à redacção dos Diálogos Morais e Políticos, texto que aborda o
passado da cidade mas também onde discute alguns problemas
económico-sociais.
Tornemos o que sobre o comércio ele pensava. Logo à
partida posições contraditórias, pelo menos em
parte: 1) é vil e contrário à virtude de
tal modo que o nome de mercador, «tão abatido pela gente
que o trata», é suficiente para desacreditar um nobre; 2) se for de pequeno trato sem dúvida que é vil,
se de grande vil será também a menos que os seus lucros
sejam obtidos sem enganos, sem mentiras e sem usuras e na agricultura
sejam investidos.
Porque lhe põe assim tantas reservas? Expressamente
não o diz mas um passo há em que refere a usura e a
cobiça como predicados dos mercadores: «sempre hão
de chupar, enganar e apanhar com no olho no interesse e proveito
próprio, pela qual razão carecem de virtude». O
que ele reprova não é, por isso, o comércio em
si. Antes os meios de que os mercadores se servem para mais depressa
enriquecerem.
E a agricultura? Porque legitima ela recorrer a métodos que
doutra forma repudiaria? Ou será que um mercador que na
agricultura invista os seus lucros a meios tão vis não
recorre? Nada como ouvir as palavras por si escritas: «certo que
diz muito bem Horácio, se queremos viver cada um segundo a
natureza pede, não há outro lugar onde mais alegremente
se possa passar a vida que em a herdade do campo que tenha
medianamente o necessário. Em outro lugar diz: bem aventurado
é aquele que, apartado dos negócios, como os primeiros
homens lavra com seus bois as terras que herdou dos seus pais, livre
dos cuidados da ganância». Das duas, uma: ou pelo regresso
ao campo porque o mercador se torna auto-suficiente não vai
jamais proceder como dantes ou quem à agricultura um dia se
dedica, tão virtuosa ela é, não poderia nunca
ter lançado mão de outra coisa que não fossem
processos não menos dignos de exemplo.
Um problema resta, contudo: porque razões o comércio
de pequeno trato por «vil e baixo» deve ser havido?
Não poderão os mercados de menos cabedais contribuir
também eles para o desenvolvimento da vida no campo? A
resposta a esta pergunta deixa-a Botelho Pereira por outras linhas:
«a necessidade pode impedir a virtude». E explica-se:
«a fortuna a muitos dá muito, mas a nenhum quanto
deseja»; ora Séneca disse, «não há que
fiar (... ) daqueles a quem engana a cobiça não lhe
dando nunca a abundância que promete».
Após esta brevíssima sondagem alguns pontos importa
sublinhar:
1.º) motivos de ordem moral determinam
2.º) as suas posições contra o
comércio e
3.º) o seu preconceito quanto aos mais pequenos
mercadores.
São atitudes de um grupo social perante outros que da sua
sociedade fazem parte. A velha nobreza, baluarte da fé, a
depreciar a burguesia mercantil e os cristãos-novos? Numa
cidadezinha de uns três milhares de habitantes até que
ponto tal mentalidade de classe traduz um movimento de profundidade?
Ou não foi a centúria de seiscentos caracterizada por
enorme agitação social? Questões a apontarem
para pesquisas ainda não realizadas!
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Os grupos e as ideias: um
exemplo do séc. XVII», A Voz das
Beiras, 401, 27-5-1982, pp. 2, 8 (1982).
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