Apontamentos para a
história de Viseu

Sobre as origens da Feira Franca

António João Cruz

Nos finais do séc. XVIII Viseu dispõe de duas feiras, centenária qualquer delas.

Uma, que se realiza todas as primeiras terças-feiras de cada mês (e que a nossos dias chegou realizando-se semanalmente), espalha-se pelas «várias praças, rossios e terreiros» da cidade. Século e meio antes, por alturas da Restauração, a ela vinham mercadores de Castela e do Alentejo buscar sobretudo panos de linho. No entanto, fundamentalmente a sua função é a de abastecer o meio milhar de quilómetros quadrados ao seu redor, aquele círculo que do que produz consome 99 %.

A outra, anual, é a Feira Franca.

Realiza-se em Setembro no rossio da Ribeira. Em 1758, na resposta ao inquérito para o Dicionário Geográfico de Luís Cardoso, diz um dos curas da cidade que as produções agrícolas locais «não só fazem a terra abundante mas sustentam por mais de doze dias, quatro ou cinco mil pessoas que efectivamente habitam nesta cidade pelo tempo da Feira Franca». Isto é uma forma muito inábil — o número aí apontado de 4 mil pessoas corresponde à população residente — de dizer que era grande a afluência à Feira. Mais de um século antes, nos finais da terceira década de seiscentos diz-se da Feira Franca que «vai em tanto aumento que lhe faz pouca ou nenhuma vantagem a de Trancoso».

Para a sua vida mais remota os testemunhos vão rareando. Quanto mais se recua mais eles escasseiam. Tem-se, por isso, tentado encontrá-los. Só que essa pesquisa tem sido conduzida numa direcção errada. Assim, diz-se que as suas origens são desconhecidas. obscuras, remotíssimas, perdem-se na noite dos tempos, ou coisa no género... De vez em quando aparece alguém que afirma ter encontrado um documento legislativo mais antigo do que o até aí conhecido e em consequência disso nos encontramos mais próximos da «verdade». E por certo haverá quem ainda pense que um dia (e impacientemente se espera por ele) um «historiador» mais bafejado pela sorte encontrará o almejado papel ou pergaminho onde a custo (tal é o preço da sua ancianidade) se lerá em termos inequívocos que «eu, o rei fulano de tal, ordeno que hoje se realizará em Viseu pela primeira vez uma Feira que será de periodicidade anual», etc., etc..

O caminho a seguir decididamente que não pode ser este, o de procurar o ano, o mês e a dia (já agora porque não as horas e os minutos?) em que a realeza «criou» a Feira. Esse é um falso problema. O problema realmente está em determinar as causas porque em determinado momento se começa a realizar em Viseu a Feira. Não as causas que bastam para explicar; apenas aquelas que ajudam a explicar.

Assim encaradas as origens, muitas das densas nuvens que turvavam a visão desaparecem. Basta olhar para o que sucede no interior da vizinha Espanha: graças sobretudo ao comércio da lã — que produziu o desenvolvimento do comércio e da indústria — no século XIV criam-se grandes feiras à imitação das andaluzas, estremenhas e murcianas do século anterior.

Ora, não será o que sucede com a Feira de Viseu? A hipótese não é nova; pelo contrário, conta já com algumas dezenas de anos. Só que ela tem sido completamente ignorada, à semelhança do que em Viseu sucede com Amorim Girão — o autor que esta opinião mais vezes defendeu e do melhor modo.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Sobre as origens da Feira Franca», A Voz das Beiras, 397, 29-4-1982, pp. 3, 8.

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