«Pinturas de milagres» do distrito de Viseu. Uma exposição em Lisboa
António João Cruz
Na Biblioteca Nacional de Lisboa esteve patente no passado mês de Janeiro uma exposição de «pinturas de milagres» do distrito de Viseu. Aí estiveram presentes mais de uma centena de exemplares acompanhados por algumas fotografias dos templos de onde provinham — novidade relativamente à exposição que, com o mesmo material, se realizou na última Feira Franca, em Viseu.
Mas, o que são as «pinturas de milagres»?
São quadros geralmente de dimensões pouco avantajadas. O seu suporte é quase sempre a madeira. Mas também os há de lata. Têm formas várias. Os mais simples são só rectangulares. Colocados na vertical ou na horizontal. Os outros apresentam na parte superior um semi-círculo, um triângulo a modo de frontão ou um outro recorte variado conforme a imaginação do seu autor. Pintados vemos os homens na sua vivência quotidiana e Cristo, Sua Mãe ou qualquer santo. Na zona inferior costuma ter uma legenda. Encontram-se por muitas igrejas deste País. De Sul a Norte. Nas terras altas do interior e nas mais baixas do litoral. Mas há também os que foram recolhidos em museus ou colecções particulares. Outros desapareceram ou foram destruídos e assim deixaram de cumprir a sua função.
Chamam-lhes «ex-votos». Porque são a memória dum voto feito em hora aflita. Mas como também há «ex-votos noutros materiais e que são esculpidos ou modelados, a estes quadrinhos, para especificar a sua tipologia, igualmente se dá o nome de «milagres» ou «pinturas de milagres». Porque milagres é o que eles narram.
A antiguidade dos «ex-votos» recua longe. Às grandes civilizações do oriente...
Um dia surgem na Península. Dedicados às divindades indígenas que sob o domínio romano tiveram o seu culto na zona hoje portuguesa são muitas as dezenas que se conhecem. Mas especificamente «pinturas de milagres» só as encontramos depois do séc. XVI. Se é por nunca terem existido ou se por seu extravio hoje nada de definitivo se pode adiantar. Pois não foi nos inícios do presente século que para homens como Rocha Peixoto e José Leite de Vasconcelos se punha em dúvida a existência de «milagres» seiscentistas? Contudo, os hoje conhecidos já são vários e um deles datará mesmo de cerca de 1644.
Não obstante o seu elevado número e o facto de cobrirem um período de mais de três séculos, as «pinturas de milagres» têm apenas sido encaradas como uma forma de arte popular e só ocasionalmente têm contribuído com uma ou outra informação a propósito do nosso passado. Nada mais!
No entanto, os «milagres» são fotografias da vida quotidiana. Formam um álbum com muitas, muitas fotografias. E que podemos ver? Homens vestidos como no seu tempo se vestia. No interior das casas os móveis que no seu tempo se usavam. Fora dessas paredes as actividades múltiplas que todos os dias se repetiam. E também outras mais ocasionais.
Um estudo quantitativo dos «milagres» poder-nos-ia dar importantes informações sobre a religiosidade popular, as épocas de fomes e de epidemias, as doenças mais frequentes, as relações familiares e inter-familiares, além de, é claro, nos dar um bom contributo para uma história do vestuário e do mobiliário. E que dizer das achegas que poderão dar a uma história das mentalidades e da cultura?
Obras pobres, as «pinturas de milagres» têm ficado esquecidas na sombra das igrejas. Os autores de tais pinturas, quase todos ignotos, na sua maioria ao povo pertenciam. E elas nos transmitiram a sua beleza mas, sobretudo, a sua ingenuidade. Afinal tal como os painéis de «alminhas» que o tempo e os homens hoje destroem.
Esperemos que exposições como esta consigam chamar a atenção para este nosso património que urge defender e preservar.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «'Pinturas de milagres' do distrito de Viseu. Uma exposição em Lisboa»,
A Voz das Beiras, 391, 18-3-1982, pp. 2, 12.
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