Apontamentos para a
história de Viseu

Em viagem:
Paradinha, uma aldeia dos arredores de Viseu

António João Cruz

Para quem, de Viseu, sai do Rossio, Paradinha fica para Sul, junto à estrada que segue para Coimbra, a uns escassos milhares de metros da cidade. Repousa suavemente num planalto entre os 400 e os 500 metros que aí começa a descer para acompanhar o leito do Pavia. Ao redor, até a vista se perder, onde o homem não arroteou ainda a terra ou, tendo-o feito, não conseguiu vencer, tudo são verdes pinhos acrescerem por entre ciclópicos torrões de granito. Lá ao longe, muito ao longe, vê-se, esfumada, a serra da Estrela.

A aldeia é semelhante a muitas outras. Não tem palácios nem igrejas venerandas no porte e na idade. Apenas um modesta capelinha particular e a que o povo construiu à sua custa há uma vintena de anos.

No «povo», local a que em idos tempos se dimensionava a povoação, vemos, lado a lado, casas de pedra, algumas de piso térreo com as dependências agrícolas e andar superior para habitação e outras de reduzidas dimensões, recentemente melhoradas ou refeitas e de arquitectura incaracterística.

A maior parte dos seus habitantes mais idosos dedicam-se, na aldeia, aos trabalhos agrícolas — os cereais, a vinha e a oliveira — como há milénios. Eles são a memória da aldeia. Eles conhecem as histórias de mouros e franceses, as grutas onde o João Brandão se escondia e os lagares onde a mourama fazia o vinho. Eles sonham com potes rasos de moedas reluzentes de ouro escondidas por entre o pedregal, junto a tocas de láparos.

As gerações mais novas por regra trabalham ou estudam em Viseu. Desprezam o sistema cultural tradicional, de fórmulas e regras empíricas, mas dificilmente conseguem dominar a cultura «urbana». Querem distanciar-se suficientemente do primeiro grupo para alcançarem o segundo. Não o conseguem, no entanto. Mas a cidade penetrou no campo e são eles que para isso mais contribuem.

Entre este primitivo núcleo e a estrada que de Viseu segue para Coimbra, foi-se estabelecendo, desde há duas dezenas de anos, uma zona de habitações novas, sobretudo de pessoas que em Viseu se integram sector terciário. Sempre com rés-do-chão, 1.° andar, jardim e quintal ao redor, por todo o lado banhadas pelo sol, estas habitações contrastam com as outras que, cá em baixo, atarracadas, se diluem na escuridão de tortuosas ruas e becos mal calcetados. Dispõem-se ao redor da nova capela e ao lado da estrada que conduz a Viseu. Entre os dois núcleos o contacto e a comunicação são reduzidos ao mínimo.

De ano a ano a aldeia muda de aspecto durante alguns dias. Em Agosto, gente de outras aldeias acorre a Paradinha à festa da Senhora da Saúde. Muita gente vem!... Vêm cumprir promessas uns. Outros somente divertirem-se. Como e quando isto começou não se sabe. No entanto, é possível que a procissão se realizasse já em meados do séc. XVIII e que na sua origem tenha estado alguma calamidade que atingiu a população.

Durante os outros dias todos do ano a aldeia é sempre igual. Todos os dias os mesmos ritos se repetem, assim como as actividades há muito tempo começadas e nunca acabadas.

Sucedem uma a uma, as noites de frio e de geada. A água parada fica sólida, as culturas queimadas. Depois, meses depois, chegam as andorinhas e o cheiro das flores. Vem o Verão e fazem-se as ceifas. Quando as uvas estão maduras colhem-se. O vinho vai de novo encher os cascos e a terra adormecer com sementes novas no seu ventre.

Para os outros, Primaveras e Invernos são iguais. E o Outono também. Apenas no Verão alguns têm férias que vão passar à beira-mar. Depois voltam e de novo começam a trabalhar.

Estes são cada vez mais numerosos. Os agricultores que, repetindo gestos milenares, se dedicam exclusivamente ao cultivo das suas terras de dimensões incrivelmente pequenas (apenas 6% têm mais de 1 ha) são sempre menos. Técnicas novas tornaram obsoletas outras tradicionais. Utilizam-se adubos químicos e motores para tirar água embora o tamanho da propriedade impeça qualquer tentativa de mecanização.

Fala-se em «desculturação». Será? A cultura é algo de vivo, não uma coisa morta. Ou pretenderemos transformar as aldeias de hoje em fósseis de outrora?

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Em viagem: Paradinha, uma aldeia dos arredores de Viseu», A Voz das Beiras, 390, 4-3-1982, pp. 6, 8

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