Três séculos e meio de historiografia visiense
António João Cruz
de
tradição aquando da morte de algum personagem local de
maior relevo, cem anos depois, num centenário do seu
nascimento, ou mesmo numa outra qualquer comemoração
póstuma que lhe é prestada, vir-se a público
dizer umas tantas palavras de elogio, seja ao homem, seja à
obra, mas durante os seguintes 25, 50 ou 100 anos, conforme a
periodicidade destes louvores, é também de
tradição ser ele totalmente esquecido pelo grande
público, até que nova comemoração se
venha a balizar e de novo o personagem se veja transformado em
«herói» da terra.
Recordar, fora de algum desses rituais folclóricos, alguns
importantes marcos que avultam em três séculos e meio de
historiografia visiense por razões óbvias, todos
eles já falecidos eis o objectivo destas notas.
Seis nomes: Manuel Botelho Ribeiro Pereira, José de Oliveira Berardo, Maximiano
de Aragão, Alexandre de Lucena e Vale, Amorim Girão e José
Coelho. Uns totalmente desconhecidos. Os outros, os mais
recentes, tenuamente recordados na memória de alguns. Nada
mais! O que daqui passar será do estrito conhecimento dos
especialistas!
Profunda influência parece terem tido os autores apontados,
uns nos seus contemporâneos, outros nos que lhes seguiram o
gosto de conhecer a terra sua. No entanto, uns com obra de reduzidas
dimensões, outros com ela mais vasta; uns com oportunidade de
a publicarem de imediato, outros que para tal tiveram de esperar
três séculos! Mas qualquer deles deu importantes
contribuições para os estudos históricos
visienses. Cada um a seu modo. Uns abrindo horizontes novos. Outros,
mais tradicionais e conservadores, rumaram a antigos
métodos.
Podemos por este facto descortinar três distintas
épocas ou fases em que se repartiu a historiografia
visiense.
Na 1.ª colocaremos Manuel Botelho Ribeiro
Pereira, humanista serôdio, que aproveitou a
lição de André de Resende. Estamos perante a
crónica visando enaltecer a pátria (=Viseu). A
História, essa ainda está longe...
Na 2.ª encontramos Berardo, Aragão e Lucena e Vale. Se entendermos, como Joaquim
Barradas de Carvalho, que a passagem da
história-crónica para a história-ciência
entre nós iniciada por Alexandre Herculano
só se efectuou após uma revolução
epistemológica que substituiu o estudo do sensível pelo
estudo do inteligível, com estes 3 autores não estamos
ainda perante a História, embora disso haja uma tentativa
sobretudo empreendida por Oliveira Berardo. Estaremos antes frente a
uma história-batalha, história crónica,
história dos acontecimentos, como se lhe queira chamar.
Tal dimensão de História só com Amorim
Girão e José Coelho parece
ser alcançada. Eis-nos na 3.ª fase.
Vejamos então, ainda que sucintamente, qual a
contribuição de cada um.
Manuel Botelho Ribeiro
Pereira
Os Diálogos Morais e Políticos, de Ribeiro
Pereira (c. 1580? c. 1640?), são tidos como a mais
remota crónica da cidade.
Muito pouco se sabe da vida de seu autor, mas ao estudo da sua
obra pouco interessará. Retenham-se apenas dois pontos: tinha
uma formação universitária e as suas
convicções assumem um estatuto de nobreza o
preconceito contra o comércio, o lucro e o trabalho.
A sua intenção é o de elogiar a sua
própria pátria, a cidade de Viseu:
«fundação da cidade de Viseu, história de
seus bispos, gerações e nobreza com muitos sucessos que
nela aconteceram e outras antiguidades e coisas curiosas». Assim
o afirma no título.
Sabendo que os Diálogos foram redigidos pouco antes
da Restauração, provavelmente concluídos em
1636, o seu testemunho é suspeito. Não havia Frei
Bernardo de Brito publicado poucas décadas antes a sua Monarquia Lusitana, onde todo o produto da fértil
imaginação do autor foi dado como autêntico,
não hesitando em forjar documentos, sejam epigráficos,
sejam paleográficos, que «provassem» a sua
narrativa, tudo isto para que os seus leitores vissem que um
tão glorioso passado de Portugal tornava humilhante a sua
presente situação de súbditos do rei espanhol? E
não havia também André de Resende recorrido a
semelhantes métodos para enaltecer a sua cidade de
Évora? Por este facto torna-se o testemunho de Ribeiro Pereira
altamente suspeito, tanto mais quanto é certo que
amiudadamente cita os autores de semelhantes patranhas. Até
que ponto?
Nos Diálogos poderemos distinguir duas partes
diferenciadas. Uma, recheada de lendas e fábulas, aquela que
se faz eco das opiniões de Resende, Bernardo de Brito e
outros. A segunda, a de maiores dimensões, é aquela que
resulta da investigação do próprio autor, umas
vezes melhor conduzida, pior nas restantes, mas estamos de crer que
isenta dessas invenções. Será impossível
provar-se isto, mas o facto de diversos testemunhos por ele vistos e
invocados na sua crónica, sejam documentos
paleográficos, sejam epigráficos, terem sido
confirmados nos nossos dias parece-nos ser bastante abonatório
a seu favor. As interpretações essas é que
não serão necessariamente correctas.
A sua obra é um curioso caso de divulgação
antes de ser publicada. Com efeito, baldados se mostraram os
esforços despendidos pelo autor no sentido de a ver publicada.
Só em 1955, mais de 3 séculos passados, alguém a
resolveu editar: a então Junta de Província da Beira
Alta. Mas, ao contrário do que se poderia supor, foi ela
aproveitada por grande numero daqueles que se dedicaram ao estudo de
Viseu, facto este que só se tornou possível
graças ao elevado número de cópias manuscritas
que dela foram feitas.
Berardo parece não a ter conhecido. Mas para Aragão
terá sido uma das principais fontes que utilizou, juntamente
com outras crónicas que ainda hoje se conservam
inéditas. Também em outros autores de mais diminuta
importância se têm dela socorrido.
Mas sou de opinião de que por regra ela tem sido mal
utilizada. A impressão que tenho, possivelmente um tanto
apressada, e a de que ela tem servido sobretudo de fonte em segunda
mão uma vez que o que dela se tem aproveitado são as
várias informações, principalmente sobre
história religiosa, que Ribeiro Pereira aí colige
através da transcrição de alguns documentos,
umas vezes na íntegra, só parcialmente nas restantes.
No entanto, por certo, outras fontes haverá para tal estudo,
quem sabe se de informes mais importantes, e possivelmente grande
número de documentos aí referidos ainda
existirão. Não admira pois que estes testemunhos que se
guardam em arquivos e bibliotecas continuem à espera de serem
descobertos!
Pelo contrário, o importante testemunho que nos dá
da vida económica da cidade nas vésperas da
Restauração continua ignorado, facto este em parte
explicado pela ausência de qualquer monografia ao tema
dedicada. Também assim sucede com a contribuição
que a obra poderia prestar a uma história das atitudes
mentais, dada a diversidade dos temas abordados. No entanto, ao que
parece, em Viseu ninguém descobriu ainda este
domínio.
José de Oliveira
Berardo
Oliveira Berardo (1803? - 1862) é um personagem quase
lendário, já em sua vida, ainda hoje também.
Visienses de mais avançada idade conhecem anedotas que o
têm como protagonista; os contemporâneos tiveram-no em
conta de «verdadeira enciclopédia encadernada em
saragoça de Gouveia, ferrenho e fortemente agarrado no
dogmatismo e infalibilidade das suas opiniões; um dos
primeiros homens de letras de Portugal», opinava Alexandre
Herculano.
No entanto, a sua obra impressa em respeito a Viseu dimensiona-se
a uma série de artigos por ele publicada em O Liberal,
primeiro jornal deste nome, e que subordinou ao geral
título de «Notícias Históricas de
Viseu», e a alguns pequenos textos sobre Grão Vasco e que
correm impressos quer em jornais quer em obras de outros autores.
Já dos seus manuscritos o mesmo se não poderá
dizer, uma vez que parecem numerosos. Mas qual o seu actual
paradeiro? Em 1949 parte da obra inédita encontrava-se em
posse da família de Maximiano de Aragão, na
Câmara. Municipal de Oliveira de Frades, na Câmara e na
Biblioteca Municipal de Viseu e na biblioteca do Liceu de Alves
Martins. Mas hoje, em 1981? No liceu nada se encontra. O que estava
na Câmara de Viseu passou para a Biblioteca Municipal, onde
hoje se guardam as Notícias de Viseu, o codicilo
do seu testamento e possivelmente mais alguns papéis avulsos.
E a que se encontrava em outras mãos? Onde pára
ela?
Berardo parece ter tido bastante importância para Maximiano
de Aragão. É ele que diz: «Oliveira Berardo
compendiou no seu manuscrito Notícias de Viseu, que
ofereceu à Câmara Municipal e esta conserva no arquivo
(e não na sua Biblioteca) o que em diversos documentos e
manuscritos encontrou sobre confrarias estabelecidas nesta
cidade.
Desse manancial de informação autorizado, transcrevo
ou extracto, com os acrescentamentos que tiver por úteis, o
que ele escreveu».
Mas não foi só sobre as confrarias que Aragão
o aproveitou. Nem sequer indicou sempre a sua fonte. Com efeito, tal
utilização manifesta-se em muitos outros assuntos,
chegando muitas das vezes a ser uma cópia quase ipsis
verbis de Berardo sem indicação de qualquer
autoria. Exemplifiquemos com o início do capítulo que
Aragão consagra às «Torres Romanas» de Viseu
:
«No ano 616 (Resende) ou 617 (tábuas capitolianas) da
fundação de Roma e 139 ou 138 antes de Cristo, o
procônsul Décio Júnio Bruto marchou para a
Península, onde depois de várias lutas alcançou
triunfo sobre os Lusitanos e Calaicos da Espanha Ulterior.
Antes de se retirar para Entre Douro e Minho, fez lançar os
fundamentos a duas torres e a uma cidadela, que denominou Viso, em um
lugar sobranceiro aos célebres arraiais de Caio Negídio
(...)».
Ora, que havia escrito Berardo?
«Pelos anos de 616 da fundação de Roma e no ano
de 139 antes de Cristo marchou o cônsul Décio
Júnio Bruto para as Espanhas, onde depois de vários
acontecimentos triunfou dos Lusitanos e Calaicos da Espanha Ulterior
(...).
Note-se que este triunfo teve lugar no ano seguinte sendo
já pro-cônsul Décio Bruto. É por estes
anos, e por ordem deste Romano, como os antiquários pretendem,
que se lançaram os fundamentos de duas torres e Cidadela em
lugar sobranceiro aos célebres arraiais de Caio
Negídio, onde agora se acha situada a Cidade de
Viseu».
Também para Francisco Manuel Correia, autor de umas
anónimas Memórias em Respeito à Cidade de
Viseu, datadas de 1876, foi Berardo que constituiu a principal
fonte.
Era Oliveira Berardo digno de tal crédito? Qual a sua
importância hoje?
Tomemos como exemplo as suas Notícias de Viseu,
de 1838, que se guardam na Biblioteca Municipal de Viseu.
«Eu louvo o espírito patriótico de certos
escritores referindo as façanhas gloriosas dos seus
conterrâneos; mas quisera que uma crítica mais prudente
tivesse presidido às suas histórias e que os sons das
palavras não dessem parto à sua
imaginação», eis a sua profissão de
fé à partida. Palavras a fazer meditar autores de muito
balofas páginas de chauvinismo!
Para mais correctamente poder efectuar essa crítica do que
antes dele havia sido escrito lança mão de três
métodos então ainda incipientes: a arqueologia (que
passa pela defesa do património), a estatística e a
abonação com documentos contemporâneos da
época estudada.
No entanto, ele próprio cometeu erros que bem poderiam ter
sido evitados com um pouco mais de atenção. Por
exemplo, num quadro afirma ser 431 e 570 o número de fogos
respectivamente das freguesias Oriental e Ocidental de Viseu. Mais
à frente, em outros, encontramos 470 e 580 ou ainda, como
total, 750. Mesmo que não se refiram ao mesmo ano, como em
parte parece ser, tais divergências não se
poderão explicar por aí.
E é pena que tais quadros estatísticos, porventura
hoje a mais importante contribuição que esse manuscrito
nos dará, sofram de erros deste tipo (à
semelhança do que sucede nos censos do I.N.E) que obrigam a
muita cautela na sua utilização.
Quanto à outra parte, a não estatística,
parece-nos ser muito mais importante pelos métodos aí
propostos, evidente sinal de modernidade, do que pelos resultados
práticos a que chegou, embora estes na época tenham
constituído importante ponto de partida a outros trabalhos
que, em parte, mais não fizeram que o plagiar.
E se outros méritos não tivesse, certamente teria o
de constituir a primeira tentativa de um estudo global do passado
visiense.
Maximiano de
Aragão
Além
de numerosas obras de menor tomo é M. Aragão
(1853-1929) o autor de 6 volumes dedicados a Viseu, os dois
últimos postumamente editados por iniciativa de Aquilino
Ribeiro. Infelizmente. tal contribuição ficou
incompleta, aquém dos planos do seu autor que projectava
além dos publicados dedicar-se em posteriores volumes
às ciências, à arte. à agricultura, ao
comércio e à indústria.
No entanto, alguns desses temas havia-os já pontualmente
abordado, a arte sobretudo, em trabalhos de menores dimensões.
Por exemplo, um seu livro sobre Grão Vasco, surgido em 1900,
foi já considerado por Luís Reis Santos
porventura o autor da mais importante obra sobre os pintores
quinhentistas de Viseu como «o ponto de partida para os
estudos positivos sobre a matérias.
Muito mais importantes pela quantidade de
informações fornecidas do que pela metodologia empregue
se mostram essas 2000 páginas do seu Viseu. Com efeito,
informa o autor que o seu «trabalho reduziu-se a procurar a
matéria-prima em documentos ou autores antigos, tomar nota do
que podia aproveitar no meu preconcebido plano de transmitir aos
vindouros os mais importantes factos». E, um pouco adiante:
«Numa palavra, a ideia dominante desta obra é a verdade
dos acontecimentos e a sua rigorosa apreciação, tendo
como guia as regras da lógica, que se encontram nos autores
clássicos».
Teve Aragão a justa opinião sobre a sua obra:
procurar algo mais do que um repositório de factos
criticamente apurados é procurar o que nela não
existe.
A sua importância, no entanto, manifesta-se a vários
níveis.
Por um lado, o autor teve acesso a numerosos documentos
particulares, porventura hoje perdidos, e a algumas tentativas da
historiografia visiense que nunca chegaram a ser publicadas e que,
por isso, utilizou-as do modo que muito bem lhe apeteceu, por vezes
nem sempre do mais correcto como já a propósito de
Oliveira Berardo referi.
Por outro lado, constitui esta obra uma tentativa de elaborar uma
visão global da história visiense, ainda que segundo
uma perspectiva factual. Essa tentativa de visão global
não impede, contudo, que ela seja fragmentária, em
faltas. Enquanto em Berardo encontramos uma série de
capítulos que de comum pouco mais têm de que o facto de
estarem reunidos sob um mesmo título, em Aragão esses
estilhaços surgem-nos em maiores dimensões: a um lado
as instituições políticas, a outro as
religiosas, um volume sobre os escritores e ainda um outro dedicado
às instituições sociais. E, além disto,
nos dois primeiros tomos dá-nos uma sequência
cronológica de factos e acontecimentos onde de tudo isto se
encontra um pouco. O próprio autor disso se deu conta e chegou
mesmo a escrever «que os fenómenos que constituem cada
uma destas categorias penetram e influem em todas e em cada uma das
outras» mas uma vez que «os de cada grupo têm
características bem distintas dos dos outros grupos»
escolheu proceder a abordagens separadas.
Ora, a ordem por que Aragão efectuou tal estudo
dá-nos a sua opinião sobre os movimentos da
história: «hesitei por algum tempo sobre se em seguida as Instituições políticas (...) deveria
colocar as sociais ou as religiosas. Optei por estas,
por serem em grande parte determinantes daquelas e guias das suas
variabilíssimas direcções».
Em resumo, o seu Viseu torna-se de consulta quase
obrigatória para a elaboração de qualquer
visão sobre a cidade, seja ela efectuada duma perspectiva das
instituições, da cultura ou mesmo
económico-social, tal é a quantidade de
informações aí reunidas sob o espírito
erudito e crítico do séc. XIX.
Alexandre de Lucena e
Vale
Proporcionar
«o verdadeiro e actual conhecimento dos problemas da nossa
história local, de modo à pronta
informação que se impõe, corrigindo
inexactidões, desenvolvendo o campo da verdade, fornecendo a
nota bibliográfica que fundamenta cada assunto» era o
programa que em 1974 A. de Lucena e Vale (1896-1978) se propunha
cumprir com uma contribuição a que chamaria Viseu
Antigo.
Pensássemos nós que se tralha duma síntese
elaborada no final de uma vida de investigação, onde
sob urna perspectiva e metodologia actuais se fizesse um «ponto
da situação» e se avançassem novas
hipóteses, após a leitura do péssimo
capítulo I («Das origens de Viseu) de imediato
perderíamos as ilusões. Não fossem as
referências bibliográficas a remeter para trabalhos
publicados no séc. XX (ainda que por regra ultrapassados, pois
parece deliberado o esquecimento de primordiais obras sobre o assunto
e que o autor não desconhecia) bem poderíamos datar o
artigo do passado século, na altura em que seguir ou
não Fr. Bernardo de Brito é ainda um dos
problemas a resolver. E os capítulos seguintes em vez de nos
darem os ritmos de uma vivência própria da cidade, salvo
uma ou duas excepções embrenham-se em
eruditíssimos temas tais como as «armas» de Viseu e
o seu processo historiográfico, o local do nascimento de D.
Duarte, o Senhorio de Viseu... (Aliás, é o
próprio autor que no capítulo onde aborda as
«armas» de Viseu diz ser esse o problema «apenas
curiosidade de raros eruditos»!)
De curiosidade em curiosidade (a velha «história) em
ponto miudinho), tal é o percurso que Lucena e Vale percorre
desde a publicação do seu primeiro trabalho, em 1934,
dedicado a O Bispo de Viseu D. Diogo Ortiz de Vilhegas,
até à sua morte, ocorrida pouco depois de
concluído o seu Viseu Antigo.
No entanto, aparentemente de infindo paradoxal, mas só
aparentemente, a sua «história» miudinha deixa de
fora todos os grandes problemas que levanta a compreensão de
uma cidade no seu evoluir.
Por isso, a impressão que nos fica, após a leitura
dos artigos de «síntese» de Lucena e Vale é o
desconhecimento total de alguns dos assuntos abordados (a arqueologia
no referido 1.º capítulo do seu Viseu Antigo, as
generalizações apressadas, um bairrismo tacanho, etc. A
nível metodológico encontra-se num outro século,
talvez o XIX. Por exemplo, o autor (que por acaso pertencia
à Academia Portuguesa da História) parece desconhecer
totalmente que uma revista em 1929 fundada com o nome de Annales
dHistoire Économique et Sociale veio a renovar as
Ciências Sociais e Humanas e a orientar a História para
a dimensão do Homem!... No entanto, numerosos foram os
trabalhos que na Beira Alta publicou e fora dela. Nessa mesma
revista, de que foi director durante 36 anos, cm termos de
páginas ronda os 16% a sua colaboração
(não entrando nestes cômputos os artigos noticiosos que
como director lhe competia fazer). Ora, será que de todas
essas páginas não haverá nenhuma que ainda hoje
tenha préstimo?
No que a Viseu diz respeito temos que mencionar, honras lhe sejam
feitas, o esforço por ele desenvolvido na
publicação de algumas fontes manuscritas. Entre elas os
livros das actas da Câmara Municipal de Viseu (actas umas
resumidas, outras integralmente publicadas). Cobrindo um
período que de 1534 vai até 1914 esse seu trabalho que
em 6 volumes publicou e a que genericamente intitulou de
História Municipal de Viseu» é
imprescindível a quem quiser conhecer os últimos
séculos da história visiense. Esta a sua principal
colaboração que, no entanto, enferma da falta de uma
uniformidade de critério na transcrição e da
ausência de índices temáticos para os
vários volumes que, deste modo, se tornam de difícil
consulta. Por outro lado, nas «introduções»
que abrem tais volumes manifesta-se a falta de capacidade de
organizar uma síntese por não aproveitar
convenientemente as fontes sobretudo por ausência de
metodologia adequada e por lhe ser estranha a sensibilidade a alguns
domínios da nova história.
Com
efeito, a perspectiva que mais lhe agradava era a da história
tradicional. E aí, inesperadamente, um bom trabalho: o Viseu Monumental e Artístico.
Por isso nos surge uma questão: Lucena e Vale um homem
não atento aos novos caminhos que si foram abrindo? De certo
que assim foi. A sua mentalidade um tanto aristocrática disso
foi causa principal. Nem empenhado, nem interessado ele quedou-se
pela herança tradicional recebida.
José Coelho
Ainda
recentemente evocado por ocasião de uma
exposição da sua colecção
arqueológica, José Coelho (1887 - 1977) foi porventura
uma das mais originais personalidades visienses e a que mais viva
ainda estará. Arqueólogo e acérrimo defensor do
património, facetas talvez mais conhecidas, as suas Memórias de Viseu e os seus Cadernos de Notas
Arqueológicas, em número próximo da
centena e meia, contudo testemunham interesse por outros assuntos, a
saber, «artísticos, heráldicas,
genealógicos, paleográficos, epigráficos,
etnográficos», como ele próprio um dia
afirmará.
A sua imensa obra (que até hoje não houve ainda
oportunidade de integralmente inventariar) poder-se-á, grosso
modo, classificar em dois grandes temas, ainda que complementares: a
arqueologia e a defesa do património.
Quanto ao primeiro, a sua tese de licenciatura, apresentada em
1912, será formalmente o seu ponto de partida. Mas esse seu
trabalho só em 1924/5 terá continuidade com a
publicação da Policromia Megalítica. Por
ser a partir de então que a sua actividade desenvolvida neste
domínio terá continuidade e
sistematização, é que 1924/5 será
verdadeiramente o início de um percurso pessoal de que um
incidente ocorrido com Mendes Correia e que n marcou para sempre, foi
o detonador. Não fora esse facto, por J. Coelho narrado nas
suas publicações sempre que para isso teve
oportunidade, e por certo não disporíamos hoje dos seus
numerosos trabalhos de temática arqueológica.
Já sobre o património, mais do que por qualquer
outro motivo, foi o .seu próprio interesse desde o
início manifestado que o tornou num dos seus mais
acérrimos defensores. Mas nem sempre (aliás, poucas
vezes) encontrou apoio junto dos seus conterrâneos, bem pelo
contrário. As campanhas por ele empreendidas em defesa das
muralhas de Viseu, os seus projectos de valorização da
Cava de Viriato, as lutas travadas contra os responsáveis
municipais no sentido de se manter a nomenclatura de ruas e
praças, foram combates perdidos. Só alguns dos
que perdeu...
No entanto, no quadro da historiografia visiense é seu o
mérito de ter sido o primeiro a sistematicamente sair do
gabinete e a efectuar trabalho de campo, de que a sua
colecção arqueológica será o testemunho
mais eloquente. Até então, à
excepção de algumas esporádicas incursões
na arqueologia, essa «nova» forma de
recuperação do passado, as origens de Viseu eram
«estudadas» no meio de muito eruditas discussões
sobre descendentes de Noé. Fr. Bernardo de Brito estava ainda
bem vivo e muito peso tinha na questão... Ora, os anos que J.
Coelho cursou a Universidade (onde foi aluno de J. Leite de
Vasconcelos), à semelhança do que com Amorim
Girão sucedeu, foram suficientes para lhe abrir essas
«novas» perspectivas.
O estudo do mais remoto passado local vai assim
gradualmente adquirido um apoio científico. Doravante as
hipóteses apresentadas terão as suas bases assentes em
concretas realidades os testemunhos arqueológicos e
epigráficos e não em textos de um frade
alcobacense.
Alguns pontos haverá em que o trabalho de J. Coelho
metodologicamente se encontra ultrapassado. Mas ainda hoje a ele
terá de recorrer quem quiser conhecer as origens do actual
povoamento. E, o que é triste, as viragens
metodológicas operadas quase simultaneamente por Coelho e A.
Girão não foram ainda entre nós suficientemente
desenvolvidas: corrigidas por novas investigações e
abertas na perspectiva.
Porém,
a obra de J. Coelho é caótica. Vejam-se, por exemplo,
as suas Memórias de Viseu, o seu trabalho de maiores
dimensões. Que encontramos? Uma enorme quantidade de
informações reunidas duma forma perfeitamente
arbitrária. Mas nessas páginas sem
ordenação encontramos uma tentativa de
compreensão de uma paisagem e de um povoamento. Conseguiu-o? A
variedade das abordagens talvez o tenha disso impedido. Perdeu-se no
meio da confusão (um tanto acrescida pelo facto de a sua
publicação se ter iniciado num jornal)!... Mas, como
não assinalar o capítulo dedicado à demografia
(que aqui pela primeira vez surge na historiografia visiense), pese
embora que mais do que rudimentar, as páginas sobre os
factores geográficos, as suas notas toponímicas e
arqueológicas a tentarem vislumbrar a génese de uma
ocupação?... Só neste sentido poderemos dizer
que, à semelhança de A. Girão, José
Coelho conseguiu alcançar a História. Por isso, melhor
seria afirmar que J. Coelho se situa na pré-história da
História
Aristides de Amorim Girão
No que ao distrito de Viseu diz respeito, além de alguns
trabalhos de geografia física e de diversos artigos de
carácter arqueológico, Amorim Girão (1895-1960)
é o autor da «primeira e ainda meritória
monografia geográfica da evolução de uma cidade
portuguesa». Tal é a opinião recente de um outro
geógrafo com vocação de historiador
Orlando Ribeiro a respeito de Viseu. Estudo de uma
Aglomeração Urbana, publicado em 1925.
Apresentada como dissertação de concurso para
Assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
é esta obra um importante ponto de viragem da historiografia
visiense. Trabalho de geografia, ela assinala simultaneamente o
início dum interesse pela explicação da cidade,
pela sua compreensão. Como o autor afirma, «o estado
actual de uma cidade é sempre o resultado de uma sedimentação de elementos fragmentários
provenientes de épocas anteriores». Por isso, para a sua
compreensão hoje, surge a «necessidade de reconstituir: a
sua evolução através dos tempos, determinando os
diversos ciclos do seu desenvolvimento, cujas causas naturais ou
doutra ordem, importa determinar». Assim se explica que um
estudo geográfico seja apontado como a única monografia
visiense redigida segundo uma perspectiva ampla, suscitando novas
investigações; por outro lado, indica-nos alguns dos
apoios de que a História poderá lançar
mão para num estudo pluridisciplinar nos dar a
compreensão duma realidade presente com vista ao futuro,
afinal o que nos importa. Ora esse passar da história à
prospectiva já aqui se encontra documentado. O futuro de
Viseu, que é o tema da conclusão, é afinal a
justificação da sua dissertação: a Viseu
«dedico e confio o presente estudo, na esperança de que,
enumerando as circunstâncias geográficas que
determinaram ou concorreram para o seu desenvolvimento no passado,
ele possa contribuir também para indicar, em certo modo, o
caminho que devem trilhar todos aqueles que têm por
missão preparar-lhe um futuro mais próspero».
Este interesse manifestado pelo futuro é uma das mais
importantes contribuições deste trabalho. Mais ainda do
que a revelação da geo-história, simultaneamente
a abrir novas perspectivas e a apontar para o desaparecimento das
fronteiras entre as Ciências Sociais e Humanas. Muito mais
ainda do que os capítulos de que o autor diz ser trabalho
unicamente seu e deles ser integralmente responsável. Esta
é a sua mais importante contribuição. Ela
aponta-nos aquilo para que a História serve, a sua
justificação, a sua legitimidade.
Mas que sucedeu com este seu
trabalho? Aquando da sua publicação teve largo eco
na imprensa periódica local. Mas depois? Infelizmente,
passou despercebido. A investigadores e aos que por missão
têm preparar a Viseu um mais próspero futuro. Aos
políticos não interessou o diagnóstico feito
nem os caminhos propostos. Quanto aos
«historiadores»..., não teve continuadores (um
Orlando Ribeiro será porventura uma
excepção); a sua concepção e os seus
problemas passavam longe dos factos e episódios
anedóticos e curiosos das suas preocupações.
De facto, em rigor, é este o primeiro trabalho de
História sobre a cidade.
Viseu, de A. Girão, um
trabalho incompreendido no tacanho meio cultural da
cidade?
É possível que sim.
É certo que alguém houve que veio a desenvolver o
mais original capítulo da obra (pelo menos tal era a
opinião do autor) o do burgo no tempo dos romanos.
José Coelho retomou a sua lição,
desenvolveu-a, ampliou-a. Mas até que ponto se torna
devedor a Girão não o sabemos. Recentemente outros
fizeram o mesmo. Algumas das suas hipóteses foram postas de
lado por novos testemunhos arqueológicos. Mas o problema
mantém-se, é o mesmo: qual o ponto de partida dessas
novas abordagens?
Por outro lado, as mais fecundas
perspectivas aí abertas ficaram até hoje
intocáveis, como se de doença mortal transmitida por
contacto padecessem. Até quando?*
Do passado ao presente a modernidade
possível. Os inícios do percurso
As breves notas que nos anteriores artigos deixámos
registadas a propósito de alguns dos nomes da historiografia
visiense. mais do que com a integração dos autores num
ambiente, seja de cultural, económico, social ou
político, preocuparam-se sobretudo com o valor que para
nós, hoje, assumem os seus trabalhos a Viseu dedicados. Ou
seja, de certo modo funcionam como um inventário
(necessariamente rápido) daquilo que já se fez.
Essa é uma das possíveis abordagens da
historiografia visiense.
Mas pelo menos uma outra há e sem a qual, ainda que
brevemente ensaiada, não queremos concluir estes apontamentos.
Como explicar no seu tempo e espaço as diferentes
visões e perspectivas adoptadas por esses historiadores»
bem como por outros que aqui não foram mencionados? O problema
é o de investigar o conteúdo da frase célebre de
Lucien Febvre: «História, filha do tempo».
Isso é o que se tentará nas linhas seguintes.
A primeira realização da historiografia visiense de
que temos conhecimento data da 1.ª metade do séc. XVII.
Ora, como explicar que tal emergência seja tão
tardia?
Em 1527, em números redondos, a cidade contará uns
1800 habitantes em Portugal 37 cidades e vilas possuem maiores
dimensões demográficas do que Viseu. De 1527 a 1636 a
sua população terá duplicado mas um viajante que
por aqui passa nos inícios do séc. XVII diz da cidade
que lhe falta «povoação» e «que
não é grande». O meio é de facto pequeno.
Os acontecimentos insólitos e não habituais são
raros. Por isso a ausência duma memória colectiva
escrita não é notada; uma historiografia oral é
suficiente para as necessidades de então. Ela permite memorar
ocorrências de outros tempos, melhor ou pior. O que a
memória não permitir alcançar com
precisão mas de que seria conveniente haver um exacto registo,
títulos de emprazamento e outras escrituras disso se
encarregam.
Contudo, o número dos membros do clero vai em grande
aumento. Os prelados vivem como grandes senhores e as suas rendas
aumentam extraordinariamente. Em meados do séc. XVI
rondarão os 8.000 cruzados anuais. Em 1615, 15.000. Ao fechar
o século, 45.000. Ou seja, em século e meio um
acrescento de mais de 460%. O seu estatuto exige uma
glorificação, um elogio. Exige uma crónica a
assinalar feitos ilustres e virtudes. A historiografia oral se por
um lado não é já suficiente para tal
registar, por outro surge como imprópria. À
semelhança dos reis e outros nobres senhores do reino que
dispõem de uma crónica também a mitra a quer
ter.
Ela
surge, assim, em 1630/6 e até inícios do séc.
XIX e historiografia visiense é toda ela eclesiástica.
1722: o Catálogo aos Prelados da Igreja de Viseu, de
João Col. 1767: as Memórias Históricas e
Cronológicas dos Bispos de Viseu, de Leonardo de Sousa.
1837: a Notícia Histórica dos Bispos de Viseu,
de Berardo. 1848: a Resumida Notícia dos Bispos de
Viseu nos Séculos XVI, XVII, XVIII, de D. Francisco
Alexandre Lobo. 1855: o Epitome Ecclesiae Visonensis,
também de Berardo. E outras obras de menor
importância... E embora aos trabalhos oitocentistas não
presida o mesmo espírito que aos primeiros, não deixa
de se notar o facto de de uma delas ser da autoria de um bispo...
Ora, a historiografia laica surge-nos só depois de 1820,
depois de uma época em que a Igreja foi abalada. No entanto,
como seria de esperar, de início concede ainda grande peso
à história religiosa. 1838: as Notícias de
Viseu, de Berardo. 1894: o 1.º volume do Viseu de M.
Aragão. Os seus autores? Homens empenhados na vida do seu
tempo. De comum têm o facto de terem sido administradores de
concelho do distrito. Berardo é um liberal... Quanto a
Aragão era bacharel em Teologia mas também o era em
Direito.
Era uma nova etapa que assim começava! No meio de intensas
convulsões políticas...
Do passado ao presente a modernidade possível.
Erudição e novos horizontes
A mudança duma atitude e duma perspectiva é lenta,
muito lenta. A inércia de duas centúrias de
historiografia religiosa í quase de um século!
Ao assalto dessa forma de crónica e de memórias
panegíricas parte a erudição oitocentista e os
estudos de temas marginais. Um movimento esboçado a
nível do país aqui tem os seus reflexos, um pouco
pálidos, é certo, mas tem-nos. O mundo do séc.
XIX não é já o de 1636: agora formas de
comunicação relativamente fáceis permitem
conhecer o que em Lisboa e noutras cidades se faz. A partir de meados
do século os jornais tornam-se frequentes.
Assim, em 1857, em Lisboa, publica-se a Memória Sobre
Algumas Inscrições Encontradas no Distrito de Viseu.
Ora assiste-se aí a uma mudança de perspectiva
sobre o valor dos documentos arqueológicos e
epigráficos. Enquanto até então pouco mais eram
do que simples curiosidades, para o autor do opúsculo, um
visiense sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa
chamado Oliveira Berardo, esses testemunhos se bem interpretados
«podem dar uma luz inesperada aos pontos obscuros da
história; e até mesmo da literatura em geral e ao
estudo das línguas». Qual o seu valor relativamente a
outras fontes ele próprio, em 1844, já o afirmara:
«O que há de mais certo são os documentos
(escritos) porque provam; depois vêm os monumentos porque
confirmam»; finalmente a tradição, mas esta
é menos segura «porque é susceptível de
sofrer a influência da malícia ou da
ignorância».
Mas para uma clivagem que na segunda década do séc.
XX se vai operar, mais importante do que este alargamento da
noção de fontes se mostraram por um lado, os estudos
sobre a arte nomeadamente a polémica gerada a
propósito de Grão Vasco , por outro, a
circulação da literatura de viagens e de grande
número de dicionários corográficos. Os primeiros
pela primeira vez arredaram a história duma
problemática religiosa pois as tentativas já
empreendidas de visões globais de Viseu concediam ainda
excessivo peso a esse tema. Quanto a estes últimos, incitavam
à compreensão das diferenças regionais, talvez
mesmo à sua explicação...
Ora, como tentar compreender a realidade de hoje se até
às suas origens não recuarmos? Tal é o movimento
que vai tomando forma após uma longa gestação.
Um «historiador» sobretudo interessado em
«factos» M. Aragão isso mesmo nos
testemunha: em 1905 publica As Plantas, os Animais e o Homem Sob o
Ponto de Vista da Geografia e em 1921 A
Pré-História. Ideias Gerais e Sintéticas. E,
simultaneamente, indica-nos os dois caminhos diferentes que essa
investigação percorre na busca das origens. Por um
lado, estas entendidas como «começos» linha
de investigação só é possível
após a ampliação da noção de
fonte. Por outro, simplesmente como «causas» (sobretudo
geográficas).
Tal
gestação vem a ter o seu fim em 1924/5, anos que por
isso foram de chegada. A Policromia Megalítica, de J.
Coelho, e o Viseu, de A. Girão, culminaram tais
percursos, ainda que de diferentes modos. Mas foram sobretudo anos de
partida. Porque marcam o início do trabalho de campo
sistemático. Porque o estudo de Girão abriu novos
horizontes e perspectivas até então insuspeitadas.
1926: ano do 28 de Maio. Uma nova ordem emerge. Igualmente uma
nova ideologia. 1937: José Coelho então exercendo o
magistério liceal é obrigado a dele se afastar... Na
mesma década: criação da Academia Portuguesa da
História. Um projecto: uma história oficial.
Alexandre de Lucena e Vale é um dos académicos.
Consequências? Longe de os horizontes vastos legados por um A.
Girão serem ainda mais abertos, assiste-se a um retrocesso
para uma historiografia tradicional, oficial. A sua obra disso
é um bom testemunho. Por exemplo, veja-se também a
percentagem que os artigos biográficos, sobre
instituições, de história militar e religiosa,
de heráldica e de genealogia
temas preferidos por essa historiografia representam no
total da colaboração da revista Beira Alta (de
que Lucena e Vale foi o director até 1977). 1942-45: 31,0 %.
1946-50: 30,1 %. 1951-55: 31,4 %. 1956-60: 29,6 %. 1961-65: 24,0 %.
1966-70: 24,8 %. 1971-75: 21,2 %. 1976-80: 12,6 %. Ora, em 1942-45 a
restante colaboração dessa revista podia do seguinte
modo ser agrupada: sobre arte, monumentos e cultura, 36,9 %;
arqueologia, epigrafia e etnografia, 10,7%; monografias locais, 3,6%;
estudo e publicação de fontes, 3,6 %. Outros temas
representavam 14,3%. Em 1976-80 essas percentagens eram,
respectivamente, 34,0 %, 24,3 %, 3,9 %, 13,6 % e 11,7 %.
E embora deste modo se simplifique um tanto o problema (por
exemplo, a essa historiografia tradicional mais do que temas
próprios corresponde antes um método), essa
conclusão torna-se evidente.
Tendências actuais e perspectivas da
historiografia visiense
A modo de conclusão dum percurso de três
séculos e meio apresente-se sucintamente aquilo a que se
poderá chamar de orientação e perspectivas da
historiografia visiense actual.
Se bem vejo, parece-me poderem-se distinguir duas principais
linhas de força.
A
1.ª consiste numa mudança de perspectiva de abordagem
cujos pioneiros foram J. Coelho e A. Girão. Assiste-se assim
ao desenvolvimento de temas específicos (a arte
Alexandre Alves) ou das ditas ciências auxiliares da
história e que afinal mais não são do que novos
métodos de investigação histórica
(sobretudo a arqueologia Celso Tavares da Silva, a etnografia
Alberto Correia e a geografia Orlando Ribeiro).
Por outro lado, em temas ainda recentemente abordados com uma
perspectiva ultrapassada a genealogia, por exemplo em
vez de se verificar uma actualização de métodos
e de visão, assiste-se gradualmente ao seu abandono ou, pelo
menos, a não despertar novas atenções,
possivelmente por incapacidade de «reciclagem» dos que a
esses domínios se dedicam.
A 2.ª linha, intimamente associada à 1.ª,
caracteriza-se pelo recurso exclusivo à monografia ou
então, complementarmente, pela publicação de
documentos sejam eles paleográficos, arqueológicos ou
outros. Mas trata-se de monografias abordando temas muito
específicos. A monografia denominada local onde
simultaneamente se trataram aspectos económicos, sociais,
culturais e outros, tem sido ignorada. O reduzidíssimo
número de concorrentes que aos Jogos Florais da Feira de S.
Mateus de 1981 apresentaram trabalhos para o tema
«monografia», se outros testemunhos não houvesse
disso seria sintoma. Não será pois de estranhar que,
semelhantemente, não se disponha de nenhuma síntese de
tais dimensões mas alargada ao quadro total da
ocupação humana de Viseu. Por falta de vontade para a
edificar? De apoios? Ou pela ausência de monografias de
base? Contudo estamos perante uma situação
crítica que tarda em ser ultrapassada: por um lado, a falta
quase total de monografias válidas sobre determinados temas
(história económica e social, por exemplo) impede a
elaboração de tal síntese. Por outro, a
inexistência desta leva a uma desorientação das
monografias uma vez que assim só muito dificilmente se
poderão traçar adequadas linhas de pesquisa a
empreender. Por outras palavras, não raro se fazem monografias
sem se conhecer à partida os principais pontos a focar e os
principais problemas a resolver, ou seja, constroem-se castelos no
ar, a menos que se tente suprir estas faltas recorrendo a trabalhos
sobre outras regiões.
E os apoios? Onde estão eles? Desnecessário
será dizer quanto são insuficientes quer para a
investigação quer para a publicação de
resultados. Neste último domínio cabe uma especial
referência à revista Beira Alta,
edição e propriedade da Assembleia Distrital de
Viseu, que desde 1942 tem constituído uma das raras formas de
publicação de trabalhos sobre o distrito.
Mas onde está o centro congregador de esforços
despendidos por uma mesma causa, hoje tão necessário,
indispensável a uma investigação colectiva, a
uma investigação pluridisciplinar? Onde estão os
verdadeiros museus, os museus vivos, a sugerir linhas de pesquisa e a
sensibilizar populações? Onde está a
política cultural decidida e orientada, empreendida pelas
autarquias, seja no apoio a grupos autónomos, seja na
dinamização de actividades próprias? Onde
está a defesa do património se nem sequer dele existe
um inventário?
Tais são alguns aspectos de um mesmo problema cultural que
numa cidade dum Portugal em permanente evoluir urge resolver antes
que para tal seja demasiado tarde.
* Fragmento que
não saiu publicado.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Três
séculos e meio de historiografia visiense»,
A Voz das Beiras, 357, 9-7-1981, pp. 7, 10; 358, 16-7-1981, pp. 3, 8; 359, 23-7-1981, pp. 6, 8; 372, 22-10-1981, pp. 1, 3; 373, 29-10-1981, pp. 7, 8; 374, 5-11-1981, pp. 5, 8; 375, 12-11-1981, pp. 6, 8; 376, 19-1117-1981, pp. 3, 8; 377, 26-11-1981, pp. 6, 8; 378, 3-12-1981, pp. 5, 8.
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