Apontamentos para a
história de Viseu

Três séculos e meio de historiografia visiense

António João Cruz

de tradição aquando da morte de algum personagem local de maior relevo, cem anos depois, num centenário do seu nascimento, ou mesmo numa outra qualquer comemoração póstuma que lhe é prestada, vir-se a público dizer umas tantas palavras de elogio, seja ao homem, seja à obra, mas durante os seguintes 25, 50 ou 100 anos, conforme a periodicidade destes louvores, é também de tradição ser ele totalmente esquecido pelo grande público, até que nova comemoração se venha a balizar e de novo o personagem se veja transformado em «herói» da terra.

Recordar, fora de algum desses rituais folclóricos, alguns importantes marcos que avultam em três séculos e meio de historiografia visiense – por razões óbvias, todos eles já falecidos – eis o objectivo destas notas.

Seis nomes: Manuel Botelho Ribeiro Pereira, José de Oliveira Berardo, Maximiano de Aragão, Alexandre de Lucena e Vale, Amorim Girão e José Coelho. Uns totalmente desconhecidos. Os outros, os mais recentes, tenuamente recordados na memória de alguns. Nada mais! O que daqui passar será do estrito conhecimento dos especialistas!

Profunda influência parece terem tido os autores apontados, uns nos seus contemporâneos, outros nos que lhes seguiram o gosto de conhecer a terra sua. No entanto, uns com obra de reduzidas dimensões, outros com ela mais vasta; uns com oportunidade de a publicarem de imediato, outros que para tal tiveram de esperar três séculos! Mas qualquer deles deu importantes contribuições para os estudos históricos visienses. Cada um a seu modo. Uns abrindo horizontes novos. Outros, mais tradicionais e conservadores, rumaram a antigos métodos.

Podemos por este facto descortinar três distintas épocas ou fases em que se repartiu a historiografia visiense.

Na 1.ª colocaremos Manuel Botelho Ribeiro Pereira, humanista serôdio, que aproveitou a lição de André de Resende. Estamos perante a crónica visando enaltecer a pátria (=Viseu). A História, essa ainda está longe...

Na 2.ª encontramos Berardo, Aragão e Lucena e Vale. Se entendermos, como Joaquim Barradas de Carvalho, que a passagem da história-crónica para a história-ciência – entre nós iniciada por Alexandre Herculano – só se efectuou após uma revolução epistemológica que substituiu o estudo do sensível pelo estudo do inteligível, com estes 3 autores não estamos ainda perante a História, embora disso haja uma tentativa sobretudo empreendida por Oliveira Berardo. Estaremos antes frente a uma história-batalha, história crónica, história dos acontecimentos, como se lhe queira chamar.

Tal dimensão de História só com Amorim Girão e José Coelho parece ser alcançada. Eis-nos na 3.ª fase.

Vejamos então, ainda que sucintamente, qual a contribuição de cada um.

Manuel Botelho Ribeiro Pereira

Os Diálogos Morais e Políticos, de Ribeiro Pereira (c. 1580? – c. 1640?), são tidos como a mais remota crónica da cidade.

Muito pouco se sabe da vida de seu autor, mas ao estudo da sua obra pouco interessará. Retenham-se apenas dois pontos: tinha uma formação universitária e as suas convicções assumem um estatuto de nobreza – o preconceito contra o comércio, o lucro e o trabalho.

A sua intenção é o de elogiar a sua própria pátria, a cidade de Viseu: «fundação da cidade de Viseu, história de seus bispos, gerações e nobreza com muitos sucessos que nela aconteceram e outras antiguidades e coisas curiosas». Assim o afirma no título.

Sabendo que os Diálogos foram redigidos pouco antes da Restauração, provavelmente concluídos em 1636, o seu testemunho é suspeito. Não havia Frei Bernardo de Brito publicado poucas décadas antes a sua Monarquia Lusitana, onde todo o produto da fértil imaginação do autor foi dado como autêntico, não hesitando em forjar documentos, sejam epigráficos, sejam paleográficos, que «provassem» a sua narrativa, tudo isto para que os seus leitores vissem que um tão glorioso passado de Portugal tornava humilhante a sua presente situação de súbditos do rei espanhol? E não havia também André de Resende recorrido a semelhantes métodos para enaltecer a sua cidade de Évora? Por este facto torna-se o testemunho de Ribeiro Pereira altamente suspeito, tanto mais quanto é certo que amiudadamente cita os autores de semelhantes patranhas. Até que ponto?

Nos Diálogos poderemos distinguir duas partes diferenciadas. Uma, recheada de lendas e fábulas, aquela que se faz eco das opiniões de Resende, Bernardo de Brito e outros. A segunda, a de maiores dimensões, é aquela que resulta da investigação do próprio autor, umas vezes melhor conduzida, pior nas restantes, mas estamos de crer que isenta dessas invenções. Será impossível provar-se isto, mas o facto de diversos testemunhos por ele vistos e invocados na sua crónica, sejam documentos paleográficos, sejam epigráficos, terem sido confirmados nos nossos dias parece-nos ser bastante abonatório a seu favor. As interpretações essas é que não serão necessariamente correctas.

A sua obra é um curioso caso de divulgação antes de ser publicada. Com efeito, baldados se mostraram os esforços despendidos pelo autor no sentido de a ver publicada. Só em 1955, mais de 3 séculos passados, alguém a resolveu editar: a então Junta de Província da Beira Alta. Mas, ao contrário do que se poderia supor, foi ela aproveitada por grande numero daqueles que se dedicaram ao estudo de Viseu, facto este que só se tornou possível graças ao elevado número de cópias manuscritas que dela foram feitas.

Berardo parece não a ter conhecido. Mas para Aragão terá sido uma das principais fontes que utilizou, juntamente com outras crónicas que ainda hoje se conservam inéditas. Também em outros autores de mais diminuta importância se têm dela socorrido.

Mas sou de opinião de que por regra ela tem sido mal utilizada. A impressão que tenho, possivelmente um tanto apressada, e a de que ela tem servido sobretudo de fonte em segunda mão uma vez que o que dela se tem aproveitado são as várias informações, principalmente sobre história religiosa, que Ribeiro Pereira aí colige através da transcrição de alguns documentos, umas vezes na íntegra, só parcialmente nas restantes. No entanto, por certo, outras fontes haverá para tal estudo, quem sabe se de informes mais importantes, e possivelmente grande número de documentos aí referidos ainda existirão. Não admira pois que estes testemunhos que se guardam em arquivos e bibliotecas continuem à espera de serem descobertos!

Pelo contrário, o importante testemunho que nos dá da vida económica da cidade nas vésperas da Restauração continua ignorado, facto este em parte explicado pela ausência de qualquer monografia ao tema dedicada. Também assim sucede com a contribuição que a obra poderia prestar a uma história das atitudes mentais, dada a diversidade dos temas abordados. No entanto, ao que parece, em Viseu ninguém descobriu ainda este domínio.

José de Oliveira Berardo

Oliveira Berardo (1803? - 1862) é um personagem quase lendário, já em sua vida, ainda hoje também. Visienses de mais avançada idade conhecem anedotas que o têm como protagonista; os contemporâneos tiveram-no em conta de «verdadeira enciclopédia encadernada em saragoça de Gouveia, ferrenho e fortemente agarrado no dogmatismo e infalibilidade das suas opiniões; um dos primeiros homens de letras de Portugal», opinava Alexandre Herculano.

No entanto, a sua obra impressa em respeito a Viseu dimensiona-se a uma série de artigos por ele publicada em O Liberal, primeiro jornal deste nome, e que subordinou ao geral título de «Notícias Históricas de Viseu», e a alguns pequenos textos sobre Grão Vasco e que correm impressos quer em jornais quer em obras de outros autores.

Já dos seus manuscritos o mesmo se não poderá dizer, uma vez que parecem numerosos. Mas qual o seu actual paradeiro? Em 1949 parte da obra inédita encontrava-se em posse da família de Maximiano de Aragão, na Câmara. Municipal de Oliveira de Frades, na Câmara e na Biblioteca Municipal de Viseu e na biblioteca do Liceu de Alves Martins. Mas hoje, em 1981? No liceu nada se encontra. O que estava na Câmara de Viseu passou para a Biblioteca Municipal, onde hoje se guardam as Notícias de Viseu, o codicilo do seu testamento e possivelmente mais alguns papéis avulsos. E a que se encontrava em outras mãos? Onde pára ela?

Berardo parece ter tido bastante importância para Maximiano de Aragão. É ele que diz: «Oliveira Berardo compendiou no seu manuscrito Notícias de Viseu, que ofereceu à Câmara Municipal e esta conserva no arquivo (e não na sua Biblioteca) o que em diversos documentos e manuscritos encontrou sobre confrarias estabelecidas nesta cidade.

Desse manancial de informação autorizado, transcrevo ou extracto, com os acrescentamentos que tiver por úteis, o que ele escreveu».

Mas não foi só sobre as confrarias que Aragão o aproveitou. Nem sequer indicou sempre a sua fonte. Com efeito, tal utilização manifesta-se em muitos outros assuntos, chegando muitas das vezes a ser uma cópia quase ipsis verbis de Berardo sem indicação de qualquer autoria. Exemplifiquemos com o início do capítulo que Aragão consagra às «Torres Romanas» de Viseu :

«No ano 616 (Resende) ou 617 (tábuas capitolianas) da fundação de Roma e 139 ou 138 antes de Cristo, o procônsul Décio Júnio Bruto marchou para a Península, onde depois de várias lutas alcançou triunfo sobre os Lusitanos e Calaicos da Espanha Ulterior.

Antes de se retirar para Entre Douro e Minho, fez lançar os fundamentos a duas torres e a uma cidadela, que denominou Viso, em um lugar sobranceiro aos célebres arraiais de Caio Negídio (...)».

Ora, que havia escrito Berardo?

«Pelos anos de 616 da fundação de Roma e no ano de 139 antes de Cristo marchou o cônsul Décio Júnio Bruto para as Espanhas, onde depois de vários acontecimentos triunfou dos Lusitanos e Calaicos da Espanha Ulterior (...).

Note-se que este triunfo teve lugar no ano seguinte sendo já pro-cônsul Décio Bruto. É por estes anos, e por ordem deste Romano, como os antiquários pretendem, que se lançaram os fundamentos de duas torres e Cidadela em lugar sobranceiro aos célebres arraiais de Caio Negídio, onde agora se acha situada a Cidade de Viseu».

Também para Francisco Manuel Correia, autor de umas anónimas Memórias em Respeito à Cidade de Viseu, datadas de 1876, foi Berardo que constituiu a principal fonte.

Era Oliveira Berardo digno de tal crédito? Qual a sua importância hoje?

Tomemos como exemplo as suas Notícias de Viseu, de 1838, que se guardam na Biblioteca Municipal de Viseu.

«Eu louvo o espírito patriótico de certos escritores referindo as façanhas gloriosas dos seus conterrâneos; mas quisera que uma crítica mais prudente tivesse presidido às suas histórias e que os sons das palavras não dessem parto à sua imaginação», eis a sua profissão de fé à partida. Palavras a fazer meditar autores de muito balofas páginas de chauvinismo!

Para mais correctamente poder efectuar essa crítica do que antes dele havia sido escrito lança mão de três métodos então ainda incipientes: a arqueologia (que passa pela defesa do património), a estatística e a abonação com documentos contemporâneos da época estudada.

No entanto, ele próprio cometeu erros que bem poderiam ter sido evitados com um pouco mais de atenção. Por exemplo, num quadro afirma ser 431 e 570 o número de fogos respectivamente das freguesias Oriental e Ocidental de Viseu. Mais à frente, em outros, encontramos 470 e 580 ou ainda, como total, 750. Mesmo que não se refiram ao mesmo ano, como em parte parece ser, tais divergências não se poderão explicar por aí.

E é pena que tais quadros estatísticos, porventura hoje a mais importante contribuição que esse manuscrito nos dará, sofram de erros deste tipo (à semelhança do que sucede nos censos do I.N.E) que obrigam a muita cautela na sua utilização.

Quanto à outra parte, a não estatística, parece-nos ser muito mais importante pelos métodos aí propostos, evidente sinal de modernidade, do que pelos resultados práticos a que chegou, embora estes na época tenham constituído importante ponto de partida a outros trabalhos que, em parte, mais não fizeram que o plagiar.

E se outros méritos não tivesse, certamente teria o de constituir a primeira tentativa de um estudo global do passado visiense.

Maximiano de Aragão

Além de numerosas obras de menor tomo é M. Aragão (1853-1929) o autor de 6 volumes dedicados a Viseu, os dois últimos postumamente editados por iniciativa de Aquilino Ribeiro. Infelizmente. tal contribuição ficou incompleta, aquém dos planos do seu autor que projectava além dos publicados dedicar-se em posteriores volumes às ciências, à arte. à agricultura, ao comércio e à indústria.

No entanto, alguns desses temas havia-os já pontualmente abordado, a arte sobretudo, em trabalhos de menores dimensões. Por exemplo, um seu livro sobre Grão Vasco, surgido em 1900, foi já considerado por Luís Reis Santos – porventura o autor da mais importante obra sobre os pintores quinhentistas de Viseu – como «o ponto de partida para os estudos positivos sobre a matérias.

Muito mais importantes pela quantidade de informações fornecidas do que pela metodologia empregue se mostram essas 2000 páginas do seu Viseu. Com efeito, informa o autor que o seu «trabalho reduziu-se a procurar a matéria-prima em documentos ou autores antigos, tomar nota do que podia aproveitar no meu preconcebido plano de transmitir aos vindouros os mais importantes factos». E, um pouco adiante: «Numa palavra, a ideia dominante desta obra é a verdade dos acontecimentos e a sua rigorosa apreciação, tendo como guia as regras da lógica, que se encontram nos autores clássicos».

Teve Aragão a justa opinião sobre a sua obra: procurar algo mais do que um repositório de factos criticamente apurados é procurar o que nela não existe.

A sua importância, no entanto, manifesta-se a vários níveis.

Por um lado, o autor teve acesso a numerosos documentos particulares, porventura hoje perdidos, e a algumas tentativas da historiografia visiense que nunca chegaram a ser publicadas e que, por isso, utilizou-as do modo que muito bem lhe apeteceu, por vezes nem sempre do mais correcto como já a propósito de Oliveira Berardo referi.

Por outro lado, constitui esta obra uma tentativa de elaborar uma visão global da história visiense, ainda que segundo uma perspectiva factual. Essa tentativa de visão global não impede, contudo, que ela seja fragmentária, em faltas. Enquanto em Berardo encontramos uma série de capítulos que de comum pouco mais têm de que o facto de estarem reunidos sob um mesmo título, em Aragão esses estilhaços surgem-nos em maiores dimensões: a um lado as instituições políticas, a outro as religiosas, um volume sobre os escritores e ainda um outro dedicado às instituições sociais. E, além disto, nos dois primeiros tomos dá-nos uma sequência cronológica de factos e acontecimentos onde de tudo isto se encontra um pouco. O próprio autor disso se deu conta e chegou mesmo a escrever «que os fenómenos que constituem cada uma destas categorias penetram e influem em todas e em cada uma das outras» mas uma vez que «os de cada grupo têm características bem distintas dos dos outros grupos» escolheu proceder a abordagens separadas.

Ora, a ordem por que Aragão efectuou tal estudo dá-nos a sua opinião sobre os movimentos da história: «hesitei por algum tempo sobre se em seguida as Instituições políticas (...) deveria colocar as sociais ou as religiosas. Optei por estas, por serem em grande parte determinantes daquelas e guias das suas variabilíssimas direcções».

Em resumo, o seu Viseu torna-se de consulta quase obrigatória para a elaboração de qualquer visão sobre a cidade, seja ela efectuada duma perspectiva das instituições, da cultura ou mesmo económico-social, tal é a quantidade de informações aí reunidas sob o espírito erudito e crítico do séc. XIX.

Alexandre de Lucena e Vale

Proporcionar «o verdadeiro e actual conhecimento dos problemas da nossa história local, de modo à pronta informação que se impõe, corrigindo inexactidões, desenvolvendo o campo da verdade, fornecendo a nota bibliográfica que fundamenta cada assunto» era o programa que em 1974 A. de Lucena e Vale (1896-1978) se propunha cumprir com uma contribuição a que chamaria Viseu Antigo.

Pensássemos nós que se tralha duma síntese elaborada no final de uma vida de investigação, onde sob urna perspectiva e metodologia actuais se fizesse um «ponto da situação» e se avançassem novas hipóteses, após a leitura do péssimo capítulo I («Das origens de Viseu) de imediato perderíamos as ilusões. Não fossem as referências bibliográficas a remeter para trabalhos publicados no séc. XX (ainda que por regra ultrapassados, pois parece deliberado o esquecimento de primordiais obras sobre o assunto e que o autor não desconhecia) bem poderíamos datar o artigo do passado século, na altura em que seguir ou não Fr. Bernardo de Brito é ainda um dos problemas a resolver. E os capítulos seguintes em vez de nos darem os ritmos de uma vivência própria da cidade, salvo uma ou duas excepções embrenham-se em eruditíssimos temas tais como as «armas» de Viseu e o seu processo historiográfico, o local do nascimento de D. Duarte, o Senhorio de Viseu... (Aliás, é o próprio autor que no capítulo onde aborda as «armas» de Viseu diz ser esse o problema «apenas curiosidade de raros eruditos»!)

De curiosidade em curiosidade (a velha «história) em ponto miudinho), tal é o percurso que Lucena e Vale percorre desde a publicação do seu primeiro trabalho, em 1934, dedicado a O Bispo de Viseu D. Diogo Ortiz de Vilhegas, até à sua morte, ocorrida pouco depois de concluído o seu Viseu Antigo.

No entanto, aparentemente de infindo paradoxal, mas só aparentemente, a sua «história» miudinha deixa de fora todos os grandes problemas que levanta a compreensão de uma cidade no seu evoluir.

Por isso, a impressão que nos fica, após a leitura dos artigos de «síntese» de Lucena e Vale é o desconhecimento total de alguns dos assuntos abordados (a arqueologia no referido 1.º capítulo do seu Viseu Antigo, as generalizações apressadas, um bairrismo tacanho, etc. A nível metodológico encontra-se num outro século, talvez o XIX. Por exemplo, o autor (que por acaso pertencia à Academia Portuguesa da História) parece desconhecer totalmente que uma revista em 1929 fundada com o nome de Annales d’Histoire Économique et Sociale veio a renovar as Ciências Sociais e Humanas e a orientar a História para a dimensão do Homem!... No entanto, numerosos foram os trabalhos que na Beira Alta publicou e fora dela. Nessa mesma revista, de que foi director durante 36 anos, cm termos de páginas ronda os 16% a sua colaboração (não entrando nestes cômputos os artigos noticiosos que como director lhe competia fazer). Ora, será que de todas essas páginas não haverá nenhuma que ainda hoje tenha préstimo?

No que a Viseu diz respeito temos que mencionar, honras lhe sejam feitas, o esforço por ele desenvolvido na publicação de algumas fontes manuscritas. Entre elas os livros das actas da Câmara Municipal de Viseu (actas umas resumidas, outras integralmente publicadas). Cobrindo um período que de 1534 vai até 1914 esse seu trabalho que em 6 volumes publicou e a que genericamente intitulou de História Municipal de Viseu» é imprescindível a quem quiser conhecer os últimos séculos da história visiense. Esta a sua principal colaboração que, no entanto, enferma da falta de uma uniformidade de critério na transcrição e da ausência de índices temáticos para os vários volumes que, deste modo, se tornam de difícil consulta. Por outro lado, nas «introduções» que abrem tais volumes manifesta-se a falta de capacidade de organizar uma síntese por não aproveitar convenientemente as fontes sobretudo por ausência de metodologia adequada e por lhe ser estranha a sensibilidade a alguns domínios da nova história.

Com efeito, a perspectiva que mais lhe agradava era a da história tradicional. E aí, inesperadamente, um bom trabalho: o Viseu Monumental e Artístico.

Por isso nos surge uma questão: Lucena e Vale um homem não atento aos novos caminhos que si foram abrindo? De certo que assim foi. A sua mentalidade um tanto aristocrática disso foi causa principal. Nem empenhado, nem interessado ele quedou-se pela herança tradicional recebida.

José Coelho

Ainda recentemente evocado por ocasião de uma exposição da sua colecção arqueológica, José Coelho (1887 - 1977) foi porventura uma das mais originais personalidades visienses e a que mais viva ainda estará. Arqueólogo e acérrimo defensor do património, facetas talvez mais conhecidas, as suas Memórias de Viseu e os seus Cadernos de Notas Arqueológicas, em número próximo da centena e meia, contudo testemunham interesse por outros assuntos, a saber, «artísticos, heráldicas, genealógicos, paleográficos, epigráficos, etnográficos», como ele próprio um dia afirmará.

A sua imensa obra (que até hoje não houve ainda oportunidade de integralmente inventariar) poder-se-á, grosso modo, classificar em dois grandes temas, ainda que complementares: a arqueologia e a defesa do património.

Quanto ao primeiro, a sua tese de licenciatura, apresentada em 1912, será formalmente o seu ponto de partida. Mas esse seu trabalho só em 1924/5 terá continuidade com a publicação da Policromia Megalítica. Por ser a partir de então que a sua actividade desenvolvida neste domínio terá continuidade e sistematização, é que 1924/5 será verdadeiramente o início de um percurso pessoal de que um incidente ocorrido com Mendes Correia e que n marcou para sempre, foi o detonador. Não fora esse facto, por J. Coelho narrado nas suas publicações sempre que para isso teve oportunidade, e por certo não disporíamos hoje dos seus numerosos trabalhos de temática arqueológica.

Já sobre o património, mais do que por qualquer outro motivo, foi o .seu próprio interesse desde o início manifestado que o tornou num dos seus mais acérrimos defensores. Mas nem sempre (aliás, poucas vezes) encontrou apoio junto dos seus conterrâneos, bem pelo contrário. As campanhas por ele empreendidas em defesa das muralhas de Viseu, os seus projectos de valorização da Cava de Viriato, as lutas travadas contra os responsáveis municipais no sentido de se manter a nomenclatura de ruas e praças, foram combates perdidos. Só alguns dos que perdeu...

No entanto, no quadro da historiografia visiense é seu o mérito de ter sido o primeiro a sistematicamente sair do gabinete e a efectuar trabalho de campo, de que a sua colecção arqueológica será o testemunho mais eloquente. Até então, à excepção de algumas esporádicas incursões na arqueologia, essa «nova» forma de recuperação do passado, as origens de Viseu eram «estudadas» no meio de muito eruditas discussões sobre descendentes de Noé. Fr. Bernardo de Brito estava ainda bem vivo e muito peso tinha na questão... Ora, os anos que J. Coelho cursou a Universidade (onde foi aluno de J. Leite de Vasconcelos), à semelhança do que com Amorim Girão sucedeu, foram suficientes para lhe abrir essas «novas» perspectivas.

O estudo do mais remoto passado local vai assim gradualmente adquirido um apoio científico. Doravante as hipóteses apresentadas terão as suas bases assentes em concretas realidades – os testemunhos arqueológicos e epigráficos – e não em textos de um frade alcobacense.

Alguns pontos haverá em que o trabalho de J. Coelho metodologicamente se encontra ultrapassado. Mas ainda hoje a ele terá de recorrer quem quiser conhecer as origens do actual povoamento. E, o que é triste, as viragens metodológicas operadas quase simultaneamente por Coelho e A. Girão não foram ainda entre nós suficientemente desenvolvidas: corrigidas por novas investigações e abertas na perspectiva.

Porém, a obra de J. Coelho é caótica. Vejam-se, por exemplo, as suas Memórias de Viseu, o seu trabalho de maiores dimensões. Que encontramos? Uma enorme quantidade de informações reunidas duma forma perfeitamente arbitrária. Mas nessas páginas sem ordenação encontramos uma tentativa de compreensão de uma paisagem e de um povoamento. Conseguiu-o? A variedade das abordagens talvez o tenha disso impedido. Perdeu-se no meio da confusão (um tanto acrescida pelo facto de a sua publicação se ter iniciado num jornal)!... Mas, como não assinalar o capítulo dedicado à demografia (que aqui pela primeira vez surge na historiografia visiense), pese embora que mais do que rudimentar, as páginas sobre os factores geográficos, as suas notas toponímicas e arqueológicas a tentarem vislumbrar a génese de uma ocupação?... Só neste sentido poderemos dizer que, à semelhança de A. Girão, José Coelho conseguiu alcançar a História. Por isso, melhor seria afirmar que J. Coelho se situa na pré-história da História

Aristides de Amorim Girão

No que ao distrito de Viseu diz respeito, além de alguns trabalhos de geografia física e de diversos artigos de carácter arqueológico, Amorim Girão (1895-1960) é o autor da «primeira e ainda meritória monografia geográfica da evolução de uma cidade portuguesa». Tal é a opinião recente de um outro geógrafo com vocação de historiador – Orlando Ribeiro – a respeito de Viseu. Estudo de uma Aglomeração Urbana, publicado em 1925.

Apresentada como dissertação de concurso para Assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é esta obra um importante ponto de viragem da historiografia visiense. Trabalho de geografia, ela assinala simultaneamente o início dum interesse pela explicação da cidade, pela sua compreensão. Como o autor afirma, «o estado actual de uma cidade é sempre o resultado de uma sedimentação de elementos fragmentários provenientes de épocas anteriores». Por isso, para a sua compreensão hoje, surge a «necessidade de reconstituir: a sua evolução através dos tempos, determinando os diversos ciclos do seu desenvolvimento, cujas causas naturais ou doutra ordem, importa determinar». Assim se explica que um estudo geográfico seja apontado como a única monografia visiense redigida segundo uma perspectiva ampla, suscitando novas investigações; por outro lado, indica-nos alguns dos apoios de que a História poderá lançar mão para num estudo pluridisciplinar nos dar a compreensão duma realidade presente com vista ao futuro, afinal o que nos importa. Ora esse passar da história à prospectiva já aqui se encontra documentado. O futuro de Viseu, que é o tema da conclusão, é afinal a justificação da sua dissertação: a Viseu «dedico e confio o presente estudo, na esperança de que, enumerando as circunstâncias geográficas que determinaram ou concorreram para o seu desenvolvimento no passado, ele possa contribuir também para indicar, em certo modo, o caminho que devem trilhar todos aqueles que têm por missão preparar-lhe um futuro mais próspero».

Este interesse manifestado pelo futuro é uma das mais importantes contribuições deste trabalho. Mais ainda do que a revelação da geo-história, simultaneamente a abrir novas perspectivas e a apontar para o desaparecimento das fronteiras entre as Ciências Sociais e Humanas. Muito mais ainda do que os capítulos de que o autor diz ser trabalho unicamente seu e deles ser integralmente responsável. Esta é a sua mais importante contribuição. Ela aponta-nos aquilo para que a História serve, a sua justificação, a sua legitimidade.

Mas que sucedeu com este seu trabalho? Aquando da sua publicação teve largo eco na imprensa periódica local. Mas depois? Infelizmente, passou despercebido. A investigadores e aos que por missão têm preparar a Viseu um mais próspero futuro. Aos políticos não interessou o diagnóstico feito nem os caminhos propostos. Quanto aos «historiadores»..., não teve continuadores (um Orlando Ribeiro será porventura uma excepção); a sua concepção e os seus problemas passavam longe dos factos e episódios anedóticos e curiosos das suas preocupações. De facto, em rigor, é este o primeiro trabalho de História sobre a cidade.

Viseu, de A. Girão, um trabalho incompreendido no tacanho meio cultural da cidade?

É possível que sim. É certo que alguém houve que veio a desenvolver o mais original capítulo da obra (pelo menos tal era a opinião do autor) – o do burgo no tempo dos romanos. José Coelho retomou a sua lição, desenvolveu-a, ampliou-a. Mas até que ponto se torna devedor a Girão não o sabemos. Recentemente outros fizeram o mesmo. Algumas das suas hipóteses foram postas de lado por novos testemunhos arqueológicos. Mas o problema mantém-se, é o mesmo: qual o ponto de partida dessas novas abordagens?

Por outro lado, as mais fecundas perspectivas aí abertas ficaram até hoje intocáveis, como se de doença mortal transmitida por contacto padecessem. Até quando?*

Do passado ao presente a modernidade possível. Os inícios do percurso

As breves notas que nos anteriores artigos deixámos registadas a propósito de alguns dos nomes da historiografia visiense. mais do que com a integração dos autores num ambiente, seja de cultural, económico, social ou político, preocuparam-se sobretudo com o valor que para nós, hoje, assumem os seus trabalhos a Viseu dedicados. Ou seja, de certo modo funcionam como um inventário (necessariamente rápido) daquilo que já se fez.

Essa é uma das possíveis abordagens da historiografia visiense.

Mas pelo menos uma outra há e sem a qual, ainda que brevemente ensaiada, não queremos concluir estes apontamentos. Como explicar no seu tempo e espaço as diferentes visões e perspectivas adoptadas por esses historiadores» bem como por outros que aqui não foram mencionados? O problema é o de investigar o conteúdo da frase célebre de Lucien Febvre: «História, filha do tempo».

Isso é o que se tentará nas linhas seguintes.

A primeira realização da historiografia visiense de que temos conhecimento data da 1.ª metade do séc. XVII. Ora, como explicar que tal emergência seja tão tardia?

Em 1527, em números redondos, a cidade contará uns 1800 habitantes – em Portugal 37 cidades e vilas possuem maiores dimensões demográficas do que Viseu. De 1527 a 1636 a sua população terá duplicado mas um viajante que por aqui passa nos inícios do séc. XVII diz da cidade que lhe falta «povoação» e «que não é grande». O meio é de facto pequeno. Os acontecimentos insólitos e não habituais são raros. Por isso a ausência duma memória colectiva escrita não é notada; uma historiografia oral é suficiente para as necessidades de então. Ela permite memorar ocorrências de outros tempos, melhor ou pior. O que a memória não permitir alcançar com precisão mas de que seria conveniente haver um exacto registo, títulos de emprazamento e outras escrituras disso se encarregam.

Contudo, o número dos membros do clero vai em grande aumento. Os prelados vivem como grandes senhores e as suas rendas aumentam extraordinariamente. Em meados do séc. XVI rondarão os 8.000 cruzados anuais. Em 1615, 15.000. Ao fechar o século, 45.000. Ou seja, em século e meio um acrescento de mais de 460%. O seu estatuto exige uma glorificação, um elogio. Exige uma crónica a assinalar feitos ilustres e virtudes. A historiografia oral se por um lado não é já suficiente para tal registar, por outro surge como imprópria. À semelhança dos reis e outros nobres senhores do reino que dispõem de uma crónica também a mitra a quer ter.

Ela surge, assim, em 1630/6 e até inícios do séc. XIX e historiografia visiense é toda ela eclesiástica. 1722: o Catálogo aos Prelados da Igreja de Viseu, de João Col. 1767: as Memórias Históricas e Cronológicas dos Bispos de Viseu, de Leonardo de Sousa. 1837: a Notícia Histórica dos Bispos de Viseu, de Berardo. 1848: a Resumida Notícia dos Bispos de Viseu nos Séculos XVI, XVII, XVIII, de D. Francisco Alexandre Lobo. 1855: o Epitome Ecclesiae Visonensis, também de Berardo. E outras obras de menor importância... E embora aos trabalhos oitocentistas não presida o mesmo espírito que aos primeiros, não deixa de se notar o facto de de uma delas ser da autoria de um bispo...

Ora, a historiografia laica surge-nos só depois de 1820, depois de uma época em que a Igreja foi abalada. No entanto, como seria de esperar, de início concede ainda grande peso à história religiosa. 1838: as Notícias de Viseu, de Berardo. 1894: o 1.º volume do Viseu de M. Aragão. Os seus autores? Homens empenhados na vida do seu tempo. De comum têm o facto de terem sido administradores de concelho do distrito. Berardo é um liberal... Quanto a Aragão era bacharel em Teologia mas também o era em Direito.

Era uma nova etapa que assim começava! No meio de intensas convulsões políticas...

Do passado ao presente a modernidade possível. Erudição e novos horizontes

A mudança duma atitude e duma perspectiva é lenta, muito lenta. A inércia de duas centúrias de historiografia religiosa í quase de um século!

Ao assalto dessa forma de crónica e de memórias panegíricas parte a erudição oitocentista e os estudos de temas marginais. Um movimento esboçado a nível do país aqui tem os seus reflexos, um pouco pálidos, é certo, mas tem-nos. O mundo do séc. XIX não é já o de 1636: agora formas de comunicação relativamente fáceis permitem conhecer o que em Lisboa e noutras cidades se faz. A partir de meados do século os jornais tornam-se frequentes.

Assim, em 1857, em Lisboa, publica-se a Memória Sobre Algumas Inscrições Encontradas no Distrito de Viseu. Ora assiste-se aí a uma mudança de perspectiva sobre o valor dos documentos arqueológicos e epigráficos. Enquanto até então pouco mais eram do que simples curiosidades, para o autor do opúsculo, um visiense sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa chamado Oliveira Berardo, esses testemunhos se bem interpretados «podem dar uma luz inesperada aos pontos obscuros da história; e até mesmo da literatura em geral e ao estudo das línguas». Qual o seu valor relativamente a outras fontes ele próprio, em 1844, já o afirmara: «O que há de mais certo são os documentos (escritos) porque provam; depois vêm os monumentos porque confirmam»; finalmente a tradição, mas esta é menos segura «porque é susceptível de sofrer a influência da malícia ou da ignorância».

Mas para uma clivagem que na segunda década do séc. XX se vai operar, mais importante do que este alargamento da noção de fontes se mostraram por um lado, os estudos sobre a arte – nomeadamente a polémica gerada a propósito de Grão Vasco –, por outro, a circulação da literatura de viagens e de grande número de dicionários corográficos. Os primeiros pela primeira vez arredaram a história duma problemática religiosa pois as tentativas já empreendidas de visões globais de Viseu concediam ainda excessivo peso a esse tema. Quanto a estes últimos, incitavam à compreensão das diferenças regionais, talvez mesmo à sua explicação...

Ora, como tentar compreender a realidade de hoje se até às suas origens não recuarmos? Tal é o movimento que vai tomando forma após uma longa gestação. Um «historiador» sobretudo interessado em «factos» – M. Aragão – isso mesmo nos testemunha: em 1905 publica As Plantas, os Animais e o Homem Sob o Ponto de Vista da Geografia e em 1921 A Pré-História. Ideias Gerais e Sintéticas. E, simultaneamente, indica-nos os dois caminhos diferentes que essa investigação percorre na busca das origens. Por um lado, estas entendidas como «começos» – linha de investigação só é possível após a ampliação da noção de fonte. Por outro, simplesmente como «causas» (sobretudo geográficas).

Tal gestação vem a ter o seu fim em 1924/5, anos que por isso foram de chegada. A Policromia Megalítica, de J. Coelho, e o Viseu, de A. Girão, culminaram tais percursos, ainda que de diferentes modos. Mas foram sobretudo anos de partida. Porque marcam o início do trabalho de campo sistemático. Porque o estudo de Girão abriu novos horizontes e perspectivas até então insuspeitadas.

1926: ano do 28 de Maio. Uma nova ordem emerge. Igualmente uma nova ideologia. 1937: José Coelho então exercendo o magistério liceal é obrigado a dele se afastar... Na mesma década: criação da Academia Portuguesa da História. Um projecto: uma história oficial.

Alexandre de Lucena e Vale é um dos académicos. Consequências? Longe de os horizontes vastos legados por um A. Girão serem ainda mais abertos, assiste-se a um retrocesso para uma historiografia tradicional, oficial. A sua obra disso é um bom testemunho. Por exemplo, veja-se também a percentagem que os artigos biográficos, sobre instituições, de história militar e religiosa, de heráldica e de genealogia – temas preferidos por essa historiografia – representam no total da colaboração da revista Beira Alta (de que Lucena e Vale foi o director até 1977). 1942-45: 31,0 %. 1946-50: 30,1 %. 1951-55: 31,4 %. 1956-60: 29,6 %. 1961-65: 24,0 %. 1966-70: 24,8 %. 1971-75: 21,2 %. 1976-80: 12,6 %. Ora, em 1942-45 a restante colaboração dessa revista podia do seguinte modo ser agrupada: sobre arte, monumentos e cultura, 36,9 %; arqueologia, epigrafia e etnografia, 10,7%; monografias locais, 3,6%; estudo e publicação de fontes, 3,6 %. Outros temas representavam 14,3%. Em 1976-80 essas percentagens eram, respectivamente, 34,0 %, 24,3 %, 3,9 %, 13,6 % e 11,7 %.

E embora deste modo se simplifique um tanto o problema (por exemplo, a essa historiografia tradicional mais do que temas próprios corresponde antes um método), essa conclusão torna-se evidente.

Tendências actuais e perspectivas da historiografia visiense

A modo de conclusão dum percurso de três séculos e meio apresente-se sucintamente aquilo a que se poderá chamar de orientação e perspectivas da historiografia visiense actual.

Se bem vejo, parece-me poderem-se distinguir duas principais linhas de força.

A 1.ª consiste numa mudança de perspectiva de abordagem cujos pioneiros foram J. Coelho e A. Girão. Assiste-se assim ao desenvolvimento de temas específicos (a arte – Alexandre Alves) ou das ditas ciências auxiliares da história e que afinal mais não são do que novos métodos de investigação histórica (sobretudo a arqueologia – Celso Tavares da Silva, a etnografia – Alberto Correia – e a geografia – Orlando Ribeiro). Por outro lado, em temas ainda recentemente abordados com uma perspectiva ultrapassada – a genealogia, por exemplo – em vez de se verificar uma actualização de métodos e de visão, assiste-se gradualmente ao seu abandono ou, pelo menos, a não despertar novas atenções, possivelmente por incapacidade de «reciclagem» dos que a esses domínios se dedicam.

A 2.ª linha, intimamente associada à 1.ª, caracteriza-se pelo recurso exclusivo à monografia ou então, complementarmente, pela publicação de documentos sejam eles paleográficos, arqueológicos ou outros. Mas trata-se de monografias abordando temas muito específicos. A monografia denominada local onde simultaneamente se trataram aspectos económicos, sociais, culturais e outros, tem sido ignorada. O reduzidíssimo número de concorrentes que aos Jogos Florais da Feira de S. Mateus de 1981 apresentaram trabalhos para o tema «monografia», se outros testemunhos não houvesse disso seria sintoma. Não será pois de estranhar que, semelhantemente, não se disponha de nenhuma síntese de tais dimensões mas alargada ao quadro total da ocupação humana de Viseu. Por falta de vontade para a edificar? De apoios‘? Ou pela ausência de monografias de base? Contudo estamos perante uma situação crítica que tarda em ser ultrapassada: por um lado, a falta quase total de monografias válidas sobre determinados temas (história económica e social, por exemplo) impede a elaboração de tal síntese. Por outro, a inexistência desta leva a uma desorientação das monografias uma vez que assim só muito dificilmente se poderão traçar adequadas linhas de pesquisa a empreender. Por outras palavras, não raro se fazem monografias sem se conhecer à partida os principais pontos a focar e os principais problemas a resolver, ou seja, constroem-se castelos no ar, a menos que se tente suprir estas faltas recorrendo a trabalhos sobre outras regiões.

E os apoios? Onde estão eles? Desnecessário será dizer quanto são insuficientes quer para a investigação quer para a publicação de resultados. Neste último domínio cabe uma especial referência à revista Beira Alta, edição e propriedade da Assembleia Distrital de Viseu, que desde 1942 tem constituído uma das raras formas de publicação de trabalhos sobre o distrito.

Mas onde está o centro congregador de esforços despendidos por uma mesma causa, hoje tão necessário, indispensável a uma investigação colectiva, a uma investigação pluridisciplinar? Onde estão os verdadeiros museus, os museus vivos, a sugerir linhas de pesquisa e a sensibilizar populações? Onde está a política cultural decidida e orientada, empreendida pelas autarquias, seja no apoio a grupos autónomos, seja na dinamização de actividades próprias? Onde está a defesa do património se nem sequer dele existe um inventário?

Tais são alguns aspectos de um mesmo problema cultural que numa cidade dum Portugal em permanente evoluir urge resolver antes que para tal seja demasiado tarde.

* Fragmento que não saiu publicado.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Três séculos e meio de historiografia visiense», A Voz das Beiras, 357, 9-7-1981, pp. 7, 10; 358, 16-7-1981, pp. 3, 8; 359, 23-7-1981, pp. 6, 8; 372, 22-10-1981, pp. 1, 3; 373, 29-10-1981, pp. 7, 8; 374, 5-11-1981, pp. 5, 8; 375, 12-11-1981, pp. 6, 8; 376, 19-1117-1981, pp. 3, 8; 377, 26-11-1981, pp. 6, 8; 378, 3-12-1981, pp. 5, 8.

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