Apontamentos para a
história de Viseu

Instituto Liberal de Instrução e Recreio (1904-1926)

António João Cruz
Alberto Metelo Coimbra

Em 1979 comemoraram-se os 75 anos de existência do Instituto Liberal de Instrução e Recreio, que constitui, dentro do seu tipo, das associações mais antigas da cidade de Viseu. Deste modo, impõe-se o pesquisar a vida específica do Instituto como contributo à história da própria cidade, adentro do período considerado. Com as comemorações das Bodas de Diamante surgiu a oportunidade da consecução desse objectivo, motivo porque deixamos aqui estas breves notas, embora elas se restrinjam aos anos de 1904 a 1926.

As principais fontes utilizadas foram os três livros de actas das sessões da direcção, que hoje se encontram na secretaria da associação, a par de algumas poucas notícias publicadas na imprensa periódica local da época.

No ano de 1904 atravessava o reino profunda crise.

Se, no aspecto político, "a quadra dos vinte anos decorridos de 1890 a 1910 foi extraordinariamente agitada para Portugal" (1), menos o não foi no aspecto ideológico: católicos e maçónicos, monárquicos e republicanos gladiavam-se mutuamente e sem tréguas.

Por outro lado, o aparecimento da "grande indústria", no século passado, havia suscitado o aparecimento de uma forte actividade operária traduzida nos diversos congressos realizados.

No meio de toda esta agitação, o associativismo, comum ao ideário republicano, revelava-se aos opositores da monarquia como forma de pugnar pela organização disciplinada e eficiente de que o Reino não dispunha (2).

"Os agrupamentos operários (...) constituíam, muitas vezes, autênticos partidos, com acção política, directa ou indirecta, apoio eleitoral, organização moldada na dos partidos políticos, congressos periódicos, órgãos na imprensa, etc." (3).

Ao mais restrito nível da cidade de Viseu, os primeiros anos do presente século revelaram-se como "a imagem tristemente perfeita da própria vida política nacional sob o regime parlamentarista" (4).

Assim, à semelhança do "rotativismo" governamental, também na Câmara Municipal de Viseu se sucediam Progressistas e Regeneradores na orientação dos destinos do concelho (5), até que em 1907 a ditadura franquista colocou na presidência da Comissão Municipal o Coronel Gerardo Ferreira.

Neste panorama de inconstância e mutabilidade política, quais as linhas de força que se podem discernir na pequena cidade do interior?

a) Em primeiro lugar há a assinalar a crescente importância que os republicanos vinham assumindo (6) – de certo modo, iniciada em 1865, com a criação do Centro Liberal de Viseu (7), a que se seguiu numerosa publicação periódica (8). Em 1882 é publicado o Idêa Nova, primeiro jornal republicano. De duração efémera (9 números), sucedem-lhe duas folhas académicas, Viziense e um segundo Idêa Nova, respectivamente 7 e 8 anos depois, que não tiveram melhor sorte. Em 1891 é a Democracia da Beira, que aguenta a publicação por pouco mais de um ano, integrando no seu corpo redactorial todos os responsáveis da 1.ª série do Idêa Nova, além de outros nomes, onde avulta o de Ricardo Pais Gomes, várias vezes presidente da Assembleia Geral do Instituto Liberal de Instrução e Recreio no período anterior a 1910. A Nova Lucta (4 números) surge em 1894 e imediatamente se lhe segue O Intransigente, ambos tendo como director Ricardo Pais Gomes. Quatro anos volvidos, A Voz da Officina, "Semanário orgão do operariado visiense", e que em 1904 já se diz "Jornal Socialista", fundado por Alberto Sampaio – "intrépido luctador do Bem, da Liberdade e da Justiça" (9) e que vem a ser sócio do Instituto. Na tradição de outros jornais académicos de feição republicana surge, em 1904, a Mocidade Republicana. Em 1906, A Beira. Com larga colaboração, em que se reconhece grande número dos futuros representantes republicanos da cidade, é a voz do Centro Republicano de Viseu, núcleo aglutinador de numerosas acções de propaganda por todo o distrito, e que se fundara em Janeiro de 1905.

b) É nos finais do séc. XIX e princípios deste que se dá a formação de diversos agrupamentos culturais e recreativos: anterior a 1855 a Sociedade Civilizadora e a Assembleia Viseense, em 78 forma-se o Club Viseense, em 81 o Grémio de Viseu (10), em 93 a Sociedade de Recreio Protectora do Monte-Pio Viseense, em 1903 a Associação de Classe dos Empregados do Comércio de Viseu e o Centro Instrução e Recreio José Dionísio, no ano seguinte o Círculo Católico de Operários de Viseu e o Instituto Liberal de Instrução e Recreio, em 1917 o Grémio Alberto Sampaio.

Com diferentes objectivos a atingir (ou, pelo menos, que se propunham alcançar), diferente era também a preponderância de classes determinadas e assim diversos os incrementadores de tais fundações.

Se as primeiras eram clubes elitistas da aristocracia viseense, com o Grémio iniciam-se as associações abertas às classes menos favorecidas, ainda que fossem apoiadas, ora pela Igreja (11), ora por republicanos (12).

Paralelamente a este esforço associativo em prol da instrução e recreio há a referir o aparecimento, em 1889, do semanário Viziense, segundo com este nome, "jornal eclético para instrução e recreio", de que se publicaram 22 números.

c) Durante o último quartel do séc. XIX dá-se a formação dum "espírito caritativo", tão caro a determinado estrato social, que se prolonga ainda pelos primeiros anos do novo século.

Disso testemunho é a fundação, em 1874, do Asilo Viseense da Infância Desvalida, em 81 da Sopa Económica, em 82 dos Asilos dos Inválidos, em 98 do Pão de Santo António. É igualmente durante este período que se forma o Asilo-Oficinas de Santo António, ainda hoje existente (13).

d) No domínio das infra-estruturas e melhoramentos sociais há que registar, ainda antes do fim do século, a inauguração do caminho de ferro da Beira Alta (1882), tido como símbolo do progresso, e que se revelou como principal via de escoamento dos produtos agrícolas de que naturalmente a região era farta.

Os anos de 1889 e 1900 são marcados por dois acontecimentos da maior importância: o fornecimento de energia eléctrica à cidade e a inauguração do serviço de água.

No entanto, o seu funcionamento parece ter deixado a desejar. Os problemas que regularmente se vão deparar, sobretudo no caso da energia, estendem-se pelos primeiros anos do século.

e) A população do concelho orçava em 1878 pelos 51.500 habitantes, com uma preponderância do sexo feminino de cerca de 2.500 almas. Em 1911 a população anda pelos 55.700 habitantes e em 1930 pelos 60.100, o que dá um crescimento demográfico de 8,1 % para o primeiro período e de 7,7 % para o segundo, crescimentos estes assaz diminutos se comparados com os 27,4 % e 14,6 % ocorridos em Portugal continental durante os períodos considerados. (Estes dados populacionais não utilizam os restantes censos intermediários por impossibilidade da sua consulta).

A principal actividade é, de longe, a agricultura (63,8 % da população em 1911). No entanto, de 1911 a 1930 há uma diminuição de 9,3 %, pois que esse valor fica então pelos 54,5 %.

A seguir à agricultura surge a indústria (18,8 % em 1911) e o comércio (4,1 %).

f) Ao nível cultural, o concelho de Viseu revelava, em 1920 uma taxa de analfabetismo de 74,1 %, 3,6 % superior à do continente, que é reduzida, 10 anos depois, para 70,5 %, acompanhando a redução ocorrida no País durante esse período.

Quantas escolas primárias havia por essa altura, não o sabemos. Contudo, em 1890 a cidade possuía 4 aulas oficiais. No distrito havia 419 escolas oficiais e 47 particulares, com um total de 29.237 alunos (9.919 dos quais do sexo feminino), ou seja, cerca de 62 alunos por escola (14).

Na cidade havia o liceu, fundado em 1849, instalado por então no Paço dos Três Escalões, com uma frequência de cerca de 350 alunos em 1890.

Fundada por decreto de 1898 existia também a Escola Industrial e Comercial de Viseu, que tivera origem na Escola Prática de Agricultura (datada de 1887).

Habitualmente mudando de nome, existia, desde de 1897, a Escola do Magistério.

Com 284 alunos, entre internos e externos, no ano lectivo de 1886-1887, existia, antes do decreto de 20 de Abril de 1911 (Lei da Separação do Estado das Igrejas), a instrução ministrada no Seminário, posteriormente reatada.

Ainda no aspecto cultural há a assinalar a Biblioteca Municipal de Viseu que, inaugurada em 1865 com os livros doados por António Nunes de Carvalho, estava então instalada no edifício no mesmo Liceu.

g) No aspecto urbanístico há uma expansão da cidade sobretudo para o seu lado SW, com os novos arruamentos do Massorim cujas obras se prolongam por vários anos. Em 1899 dá-se também a construção da actual rua Maria do Céu Mendes.

Dos edifícios que então se construíram, por entre todos sobressai o da Câmara Municipal, projecto do engenheiro José de Matos Cid.

Neste ambiente de mudança de século, o que presidiu à criação do Instituto Liberal de Instrução e Recreio? Quais os interesses que aí estiveram presentes?

Os seus Estatutos são claros em relação à 1.ª questão: o desenvolvimento do "progresso moral e intelectual" e o recreio dos seus associados (15). A receptividade a tal proposta foi certamente boa, mesmo inesperada: 318 associados, oriundos das mais diversas classes sociais, que ingressaram na colectividade durante 1904, ano da sua fundação (cf. quadro anexo).

Quanto à 2.ª interrogação, folheando o primeiro livro das actas das sessões da direcção logo uma imagem nos surge: a de um agrupamento de fortes simpatias pelo ideário republicano, que mantém vivo nos seus associados uma esperança pelos tempos da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, que só chegarão a 5 de Outubro de 1910, opinião esta reforçada pela presença de elementos como Ricardo Pais Gomes (16), Alberto Sampaio (17), e da generalidade de todos os influentes e activistas republicanos do Viseu de então.

Não nos é, pois, difícil de imaginar durante esses anos que antecederam a implantação da República, nas salas do Instituto e perante o olhar desconfiado das autoridades e das hostes monárquicas, pequenos encontros e reuniões semi-clandestinas onde inflamadamente se diria dos grandes ideais democráticos e onde se rejubilaria por este ou aquele sucesso republicano, ou pela grande tirada parlamentar de Afonso Costa, ao mesmo tempo que se criticavam e juravam desforras aos cabecilhas monárquicos locais.

***

Entrou, para o Instituto, António da Silva Sequeira, o primeiro sócio, em 30/1/1904, e 6 dias depois já se encontra reunida a 1.ª direcção, que, a 3 de Novembro do mesmo ano, aprova os 37 artigos dos Estatutos que ainda hoje se mantêm em uso, somente com ligeiras alterações (18). Igualmente nesta sessão foi deliberado inaugurar formal e solenemente o Instituto Liberal de Instrução e Recreio no dia 8 de Dezembro, convidando-se para "discurssarem n‘esse dia os sócios srs. Drs. Carlos de Lemos, José Pereira e Ricardo Paes Gomes". Deste importante acto na vida da instituição resta-nos uma reportagem n‘O Distrito de Viseu (jornal progressista), n.º 1543 de 13/12/1904, aliás recheada de pormenores interessantes que nos darão a ideia da textura ideológica do Instituto:

"Como estava anunciado realizou-se quinta-feira, dia 8, a inauguração solemne d‘esta sympathica associação, que, para em tudo ser sympathica, ainda antes de inaugurada, e a poucos passos da sua fundação, logo creára uma aula de instrucção primaria, com o título de Escola Alves Martins, frequentada actualmente por mais de cincoenta alunos.

Estavam annunciadas duas conferencias: uma pelo conhecido jornalista e publicista, hoje redactor do jornal democratico o "Alarme", do Porto, sr. Heliodoro Salgado; outra pelo (...) poeta sr. Thomaz da Fonseca, (...) redactor do "Ensino", de Coimbra, e na propaganda de boas ideias pelas camadas populares (...).

(…)

Depois das 6 horas principiou a festa da noite. (...) Pede a palavra Heliodoro Salgado. (...)

Mostra como o livre exame, incompatível com o analphabetismo, deu um forte impulso ao derramamento da instrucção nos povos da Religião reformada, cujo progresso em face da decadencia dos povos Catholicos põe em frisante destaque.

(...) durante a sua interessantissima conferencia (...) fôra muitas vezes calorosamente applaudido, recebeu no fim uma enthusiastica ovação.

(...) seguiu-se no uso da palavra Thomaz da Fonseca cuja conferencia subordinada ao thema – A instrucção laica – porque nos consta que será publicada na Voz da Oficina (...)

Em seguida pediu a palavra o nosso amigo dr. Carlos de Lemos que (...) teve uma referencia muito commovida para um morto, cuja saudade persistia immarcessivel no coração de todos os presentes, Alberto Sampaio, cujo retrato foi nesse momento descerrado. Saudou ainda a imprensa liberal de Viseu ali representada pelo nosso redactor D. Santos Guerra e pelo redactor da Voz da Officina, sr. Bernardo Ribeiro de Sousa. E por ultimo, saudou todos os propagandistas da causa liberal e nomeadamente Guerra Junqueiro, Teophilo Braga, Bernardino Machado, Magalhães Lima, Basilio Telles, António José d’Almeida, João de Menezes e Affonso Costa. (...)

Fallou tambem, em nome da Associação dos Empregados do Comercio de Vizeu, o sr. Antonio da Fonseca que produziu um enthusiastico discurso de saudação aos dois primeiros conferentes com largo elogio do fallecido Alberto Sampaio e franca exposição dos princípios liberaes de cuja realisação espera satisfação plena ás reivindicações das classes trabalhadoras.

Fallou ainda e com muita graça, o sr. Dr. Castro como um materialista e sceptico em materia religiosa. (...)"

Cerca de 3 meses passados, a 30/3/1905, e por ter recebido um oficio da comissão promotora de homenagem à memória de A. Sampaio, a direcção do Instituto acha por bem "prestar o culto da sua homenagem à memória do prestante cidadão e destemido defensor das classes opprimidas", e, portanto, "deliberou por unanimidade acceitar o convite da referida comissão, convidando tambem todos os associados a acompanhál-a n’esta manifestação de saudade á campa do que soube imporse", por ter sido "um defensor das reivindicações sociais". Um ano volvido, novamente a direcção se solidariza a esta homenagem a A. Sampaio e desta vez deliberando "a representação da escola pelo seu professor, alumnos e competente bandeira" (acta de 22/3/1906). Esta resolução terá, aliás, trazido dissabores ao Instituto, pois terá funcionado como despoletador de um movimento a ele adverso. Assim, em acta de 27 de Abril o Presidente "declarou que reunira a direcção para a informar dos boatos calumniosos que andavam a ser propalados sobre esta associação, dizendo-se que ella era republicana e que não tinha vida legal, boatos que obstante serem infundados estavam prejudicando enormemente os interesses do Instituto", tendo-se então deliberado enviar ao Governo Civil "um officio requerendo uma syndicancia que mostrasse serem ou não verdadeiras as acusações feitas".

Se a sindicância pedida foi ou não realizada não o sabemos, mas o que é facto é que o Instituto tinha a fama e o proveito, e em Julho de 1907 não recusa o convite que lhe é enviado para se incorporar na homenagem a Bernardino Machado, então em Viseu, e não tem pejo de reputar o que viria a ser um, dos Presidentes da 1.ª República de "tão illustre cidadão".

Já anteriormente, em 24 de Janeiro de 1905, havia a direcção deliberado "significar a sua admiração a um dos mais heroicos defensores das liberdades individuaes e das garantias dos cidadãos".

Bernardino Machado tinha vindo, nesta ocasião, proferir uma conferência sobre a aliança inglesa, conferência esta no espírito da "propaganda da Verdade e da Justiça" a que se havia proposto desde 1904.

É também, aliás, em 1906 que A Folha (bi-semanário católico) (n.º 1809, de 2/9/1906), faz referências, sob a epígrafe "Selvageria" a "graçolas obscenas e allusões ridículas ao ritual da Igreja" que teriam sido praticadas por sócios do Instituto quando acompanhavam um funeral ao cemitério. A direcção do Instituto faz então sair n’A Beira um comunicado em que, como seria de esperar, nega a implicação do Instituto em tais actos. De que lado está a verdade, não o sabemos e nem muito interessa, mas significativo é A Folha não ter nenhumas dúvidas em acusar o Instituto, o que se não verificaria se este fosse da sua simpatia: monárquico.

Deixou marcas o incidente motivado pela homenagem a A. Sampaio, como se pode observar pela acta de 7/3/1910, quando era presidente do Instituto um notável republicano, Bernardo Ribeiro de Sousa, que propõe que o Instituto se associe à homenagem a Sampaio desde que esta "não viesse a ter caracter político; mas attendendo a que mesmo que não tenha esse caracter, sempre lh’o quererão attribuir, propunha que se mandasse ampliar o retrato de Alberto Sampaio e que em occasião opportuna lhe fosse inaugurado n’uma das salas do Instituto, proposta esta que foi approvada por unanimidade".

Na mesma linha, veremos o mesmo presidente que, repita-se, foi um dos grandes lutadores republicanos de Viseu, a recusar proferir uma conferência no Instituto por achar "mais conveniente que essas conferencias fossem iniciadas por oradores que, pela sua posição social, e afastamento da política avançada não dessem lagar a que alguém, por ignorancia ou malvadez, desvirtuassem o seu fim, levando, essas conferencias para o lado político" (acta de 22/4/1910).

Mas a República surge e logo se delibera "um voto de congratulação (...) no empenho de vêr caminhar esta patria oprimida na vanguarda das nações mais cultas" (acta de 11/10/1910).

Ainda antes de formalmente inaugurado o Instituto, deliberou a direcção abrir uma escola pelo método João de Deus, que se passaria a designar por Escola Alves Martins (19).

Do acto solene da abertura da mesma, realizado no domingo 7 de Fevereiro de 1904, para o qual foram convidados o Comissário de Polícia, Governador Civil, Administrador do Concelho, Inspector Escolar, Dr. José Augusto Pereira, Guilherme Cardoso, Dr. Carlos de Lemos e Carlos de Oliveira, ficou-nos um anúncio e um convite publicados n’ O Commercio de Vizeu (n.º 1831, 7/2/1904) e uma pequena reportagem n’ O Districto de Vizeu (n.º 1455, 9/2/1904). Referia-se a este último que "brevemente serão tambem inauguradas aulas de musica, dança, esgrima e muitos outros melhoramentos que a bizarra direcção provisória tem projectado".

Contemporânea dos primeiros dias do Instituto, a escola é um facto denunciador da sua vitalidade inicial.

A criação desta escola pode, no entanto, ser encarada de um modo mais geral, e pudemo-la incorporar no grande movimento em prol da instrução popular que frutificava desde meados do séc. XIX e, assim, podemos perceber o seu encerramento temporário entre os anos de 1908 e 1910, período em que a sua sala de aula foi utilizada para nela funcionarem missões da Associação de Escolas Móveis. As aulas eram diurnas e nocturnas e A Beira (n.º 201, 28/5/1909) testemunha que "o maior numero d’alumnos é dos arrabaldes da cidade, trabalhadores do campo, artistas, etc." e que a realização dos exames que noticia eram à noite, "porque alguns alumnos são pastores de gado e creados de servir, pelo que só à noite podem comparecer".

O fecho destas escolas, a quem Viseu ficou a dever "a libertação do analphabetismo de perto de duzentas pessoas" (A Beira, n.º 305, 816/1910), por motivos contratuais, originou desde logo o reaparecimento da Escola Alves Martins. Na lista de preferências para os alunos a admitir são também notórias as preocupações sociais (acta de 22/4/1910).

Assim, aceitar-se-iam primeiro os alunos que tivessem frequentado as Escolas Móveis, depois os reconhecidamente pobres e, finalmente, os mais que desejassem até ao número de 50.

O Instituto justificava assim ser uma "prestimosa colectividade"...

A partir de 1910 muitos dos "notáveis" do Instituto são chamados a lugares de responsabilidade na administração pública, pois eram necessários os quadros que substituíssem os monárquicos saneados. Para o observar basta, por exemplo, uma vista de olhos por sobre as primeiras vereações e comissões executivas camarárias republicanas de Viseu. Por outro lado, já não era mais necessário o ambiente de semi-clandestinidade que se vivia no Instituto. Quem quisesse rogar pragas a todos os monarcas e monárquicos que houvesse no mundo inteiro já não o fazia no segredo cuidadoso junto a amigos de igual opção ideológica; fá-lo-ia no Rossio, falando bem alto... Fá-lo-ia também nas salas do Instituto; contudo tal acto agora perderia toda a sua carga e significado anteriores.

E assim progressivamente o Instituto perde importância política. Nada tinha de especial ser-se republicano em tempo de República.

É então o tempo em que se sucedem as zaragatas e as expulsões de associados e em que, sintomaticamente, em cada conjunto de 30 novos sócios, 20 deles ou eram sargentos ou soldados.

E isto, apesar de no 2.º andar do edifício do Instituto se ter instalado o Partido Republicano Português que, como se lê em acta de 25/11/1912, "chamará para este (Instituto) grande número de sócios e por consequencia concurrerá para o seu engrandecimento".

A proximidade, e não queremos referirmo-nos à proximidade apenas em distância do P.R.P., teria, aliás, condicionado o teor da única "passagem política" nas actas de 1910 a 1926. Na acta da sessão de 20/5/1915 refere-se que "a direcção deliberou por unanimidade assignar aqui o seu sentimento íntimo de congratulação por a Republica Portuguesa ter entrado nas ‘normas constitucionaes’, banido pela revolução de 14 e 15 do corrente o ‘governo ditatorial’ que o sufocava e arrastava para o aniquilamento. Portugal renasceu pela liberdade e pela justiça, enveredando por esta revolução, no caminho pleno e breve que o conduzirá, não haja duvida, para a prosperidade que merece pela sua sublime historia, como nação livre e independente".

Só em Fevereiro de 26 nos surge nova manifestação de vitalidade no Instituto: a criação da biblioteca. Mas 1926 é o ano em que a República, desacreditada e decadente, dá lugar à ditadura militar, e o Instituto está em crise.

Na verdade, os motivos que o presidente então em exercício refere como condicionantes do seu pedido de demissão, são denunciadores de crise interna e não deverão ser estranhos à mudança política acontecida no país a 28 de Maio. Dizia o presidente "que sacrificadamente aceitára (o cargo) pela grande afeição que dedicava ao Instituto, – que viu tão florescente e considerado pelas suas congeneres – e que presentemente vem perdendo toda a sua prosperidade, devido aos discolos que no seu seio se introduziram. Havia, é certo, um meio de se fazer o saneamento; mas acarretaria grandes desgostos e rancorosas retaliações por parte daqueles que ainda se deixam iludir pelas habilidosas insinuações dos que se comprazem em alimentar a discordia e provocar desalentos. Tem chegado ao seu conhecimento, – e outros tem de visu presenciado, – certos casos que só se conceberiam nos meios onde a civilização não tivesse acesso" (acta de 30/9/1926). E observava ainda: "o depauperamento que muito acentuadamente (a colectividade) se vem votando, e de que ele tem a sugestão de ser a causa primaria".

O incidente vem a ser remediado, mas de uma forma artificial. Em Assembleia Geral decide-se que se inaugure um retrato de José da Costa Guimarães e que a partir dali ficasse na sala da direcção do Instituto (acta de 11/1/1927) (20). Mas o depauperamento do Instituto sobreviveu, certamente.

É como se o Instituto estivesse condenado a viver todos os precalços da República...

 

 (1) Marques Guedes, "Os Últimos Tempos da Monarquia: 1890 a 1910", História de Portugal, dir. literária de Damião Peres, vol. VII, Portucalense Editora, Barcelos, 1935, p. 412.

(2) A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa, Arcádia, Lisboa, 2.ª ed., 1975, p. 21.

(3) A. H. de Oliveira Marques, A 1.ª República Portuguesa (Alguns Aspectos Estruturais), Livros Horizonte, Viseu, 2.ª ed., 1975, p. 78.

(4) Alexandre de Lucena e Vale, Os Finais da Monarquia e Começos da República nas Actas da Câmara de Viseu. 1900-1914, separata de Beira Alta, Junta Distrital de Viseu, Viseu, 1971, p. 3.

(5) Podem-se ver as respectivas vereações em A. de Lucena e Vale, op. cit., pp. 7 e ss.

(6) "Ser republicano, por 1890, 1900 ou 1910, queria dizer ser contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas, contra a corrupção política e os partidos monárquicos, contra os grupos oligárquicos" (Oliveira Marques, A 1.ª República Portuguesa, cit., p. 68).

(7) Acta da fundação no Livro das Actas do Centro Liberal de Vizeu, ms. da B. M. V., cota 20-I-55.

(8) Sobre a imprensa periódica de Viseu: Maximiano de Aragão, A Imprensa no Districto de Vizeu. Fragmento Historico, Viseu, 2.ª ed., 1900 e A. Campos, Registo Bibliografico e Jornalístico Visiense, ms. da B. M. V., cota 20-I-28.

(9) Instituto Liberal de Instrução e Recreio, Actas das sessões da direcção, vol.-I, 30/3/1905, fs. 19.

(10) Sobre estas associações: M. Aragão, Viseu. Instituições Sociais, Seara Nova, Lisboa, 1936, pp. 165-178.

(11) O então bispo D. José Dias Correia de Carvalho, "para favorecer o desenvolvimento da associação ou círculo católico de operários, mandou construir exclusivamente à sua custa uma excelente casa para aquela agremiação. Custou a obra mais de vinte contos de réis" (Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova ed. dirigida por Damião Peres, vol. III, Civilização, Porto-Lisboa, 1970, p. 597).

(12) Sobre a ideologia destas associações há a referir um artigo publicado n’ A Voz da Verdade (semanário republicano) de 13/3/1926 (n.º 250), assinado pelo pseudónimo Nemo:

"AS ASSOCIAÇÕES DE RECREIO

Há na cidade seis associações de recreio. Todas teem a sua claque e algumas até com certo caracter político.

Os avançados vão para o Alberto Sampaio; no Instituto são mais ou menos liberais; no Monte Pio predomina o comercio; no Gremio Viseense, embora sem caracter político era e é uma agremiação de todas as correntes do regimen (...)".

(13) Sobre estas instituições: M. Aragão, op. cit., p. 81 e ss.

(14) Pedro Ferreira, Portugal Antigo e Moderno, vol. XII, Lisboa, 1890, pp. 1642-1643.

(15) Estatutos do Instituto Liberal de Instrução e Recreio, Viseu, reimpressão de 1974, art.º 2.º.

(16) Ricardo Pais Gomes. Nascido a 14/3/1968, bacharel em Direito, foi governador civil do distrito de Viseu após a implantação da República, "regimen para o qual contribuiu, desde bem novo, com a sua propaganda na imprensa local democratica" (A. Campos, op. cit., p. 55). Foi também Ministro da Marinha e Director-Geral do Ministério do Interior.

(17) Alberto Sampaio. "Exerceu o oficio de tipografo. Muito inteligente, alma amplamente democratica, foi o primeiro que mais e melhor defendeu aqui em palestras, comícios e em ‘A Voz da Verdade’, que fundou, os ideais socialistas" (Idem, ibidem, p. 109). Morreu a 29/3/1904, vítima da tuberculose.

(18) Da época dos estatutos do Instituto Liberal mais 4 de associações congéneres nos chegaram às mãos: Estatutos / do / Centro Instrução e Recreio – "José Dionyzio" / Vizeu / Typographia Central / 1903; Estatutos / da / Associação de classe / dos / Empregados do Commercio / de / Vizeu / Vizeu / Typographia da "Revista Catholica" / 1903; Estatutos / do / Circulo Catholico d’Operarios / de / Vizeu / Vizeu / Typographia d’A Folha / 1904; Estatutos / da / Sociedade de Recreio Protectora / do Monte-Pio Viziense / Approvados em 29de Setembro de 1894 / Vizeu / Typographia Central / 1905.

O que há de semelhante entre eles, ou de diferente?

Um primeiro relance por todos eles dá-nos uma imagem muito semelhante: cada um com cerca de 40 artigos, os mesmos órgãos, os mesmos tipos de sócios...

A entrada para sócio ordinário apenas é limitada aos empregados comerciais na Associação dos Empregados de comércio; nas restantes a todos os indivíduos do sexo masculino, com bom comportamento e maiores de 16 anos. Além dos ordinários podiam também os sócios ou serem ordinários ou extraordinários ou correspondentes.

Como corpos gerentes das associações todas elas à excepção dos empregados do Comércio, que não têm conselho fiscal, apresentam assembleia geral, direcção e conselho fiscal, ainda que de composição diferente:

Associação Mesa da
Assembleia Geral
Direcção Conselho Fiscal
I
Círculo Católico
1 Presidente
2 Vice-presidentes
2 Secretários
1 Presidente
1 Vice-presidente
2 Secretários
1 Tesoureiro
4 Directores
4 Suplentes
3 efectivos
3 suplentes
II
José Dionísio
1 Presidente
2 Secretários
=I 1 Presidente
2 Vogais
III
Comércio
1 Presidente
1 Vice-presidente
2 Secretários
1 Presidente
1 Vice-presidente
2 Secretários
1 Tesoureiro
4 Directores
--
IV
Monte-Pio
=III 1 Presidente
1 Secretário
1 Tesoureiro
4 Directores
5 Suplentes
1 Presidente
2 Secretários
2 Suplentes
V
Instituto
=III =I =II(*)

(*) Embora os Estatutos tal não indiquem eram também eleitos 2 vogais suplentes.

A periodicidade das assembleias gerais ordinárias: semestrais no Instituto e no Monte-Pio, anuais nos restantes.

Nas 5 instituições idênticas funções tinham os mesmos órgãos.

(19) É sintomático o facto de para patrono da escola do Instituto ter sido escolhida a figura do grande bispo liberal que era, pode dizer-se, o ídolo republicano local, que a todo o momento servia de estandarte contra o "jacobinismo e beatismo dos padres d’A Folha".

(20) Actualmente na secretaria do Instituto, deparam-se-nos 3 fotografias ampliadas, representando Alberto Sampaio, o bispo Alves Martins e uma terceira figura não identificada que poderá ser de José Guimarães.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, Alberto Metelo Coimbra, «Instituto Liberal de Instrução e Recreio (1904-1926)», in Instituto Liberal de Instrução e Recreio. 76.º Aniversário, Viseu, 1980, pp. 5-21.

Artigo em formato pdf