Partir e chegar: Antes das estradas, as estradas de e para Viseu
António João Cruz
(...) a terra conserva mais
fielmente o vestígio dos caminhos que desde muito cedo os
homens calcorrearam. A estrada imprime-se no solo; semeia germes
de vida: casas, lugarejos, aldeias, cidades. Mesmo aquilo que, no
primeiro instante, suporíamos pistas de acaso,
traçadas pelo arbítrio de caçadores ou
pegueiros, grava a sua marca. (...) Essas estreitas faixas, que a
repetição dos passos humanos inscreve ligeiramente
na superfície, aspira já à permanência,
reivindica uma personalidade.
Vidal de la Blache
Diz-se frequentemente que Viseu nasceu de um cruzamento de vias romanas.
José Coelho fala numa dúzia, Moreira de Figueiredo
refere um número ainda maior, Amorim Girão e outros
ficam-se por sete ou oito.
É possível o que
não é o mesmo que provável que na
realidade tenha existido um tão elevado número de vias
romanas com destino à povoação continuada por
Viseu ou daí saídas. É possível. No
entanto, a dimensão desse aglomerada não permite que a
atribuição de importância a todos esses caminhos,
ainda que implicitamente, seja qualquer coisa de
razoável.
Os marcos miliários até
agora encontrados — os melhores testemunhos arqueológicos
de uma via romana dispõem-se na região segundo
um eixo que liga a estrada Olisipo - Cale - Bracara (Lisboa -
Porto - Braga) com Emerita (Mérida). Por isso, dessa
via se pode estar certo. Ou dessas duas vias, segundo a terminologia
que tem sido utilizada: a de Viseu a Mérida e a de Viseu
à mais ocidental estrada do império romano.
O facto de apenas esta via estar
arqueologicamente bem documentada e o facto de ter sido restaurada
menos de um século depois de construída, quando em
Portugal muitos trechos de vias romanas têm alcançado o
século XX em muito bom estado de conservação,
permitem atribuir uma importância considerável a essa
estrada. Esta conclusão é reforçada por um
argumento de outra natureza: as regiões que põe em
comunicação, Mérida, capital da província
romana da Lusitânia, e o noroeste peninsular, região de
forte densidade demográfica.
Mais de mil anos depois, na Idade
Média, essas são ainda direcções
privilegiadas: para o litoral dirige-se uma estrada com destino ao
Porto e, possivelmente, Aveiro e em sentido oposto se encaminha uma
estrada para a Covilhã e, daqui, para Castelo Branco. No
entanto, agora há mais direcções privilegiadas:
para Coimbra segue uma estrada de não menor importância
e, embora talvez não seja tão percorrida, uma outra
dirige-se para Lamego, de onde se alcança a província
de Trás-os-Montes.
A coincidência de duas
direcções não pode, contudo, esconder o que de
diferente existe.
Na Idade Média as estradas que
levam a Viseu ou de Viseu partem, têm sobretudo
funções inter-regionais: põem Viseu em
comunicação com outras regiões. No tempo de
Cláudio ou no tempo de Adriano, a povoação de
escasso significado demográfico e administrativo não
admite uma tal interpretação. Essa
povoação é então um ponto de passagem,
apenas um pequeno aglomerado ao lado da estrada de Emerita a Bracara. Tal situação permite explicar a Cava de
Viriato como uma fortificação levantada num descampado
para protecção da estrada e de quem por ela
passa.
Um segundo aspecto convém
notar: embora as aparências mostrem que algumas
direcções resistem aos séculos, nada se sabe do
que entretanto se passou. O que parece ser resultado de uma longa
continuidade histórica pode ser, apenas, um reatar de velhos
caminhos.
Em
meados de setecentos, as estradas ao redor de Viseu formam uma
complicada teia (fig. 1). No entanto, orientam-se quase todas nas
direcções NE-SW e E-W e poucas têm outras
orientações.
Segundo um documento da Câmara
de Viseu, de 1835, dessas estradas as verdadeiramente importantes
são as que saem para Coimbra (pela Foz-Dão), para
Aveiro, para o Porto (através da serra da Gralheira) e para
Lamego. Em 1868 as estradas de 1.ª ordem que para Viseu
convergem são: a que vem de Aveiro por Oliveira de Frades e
Vouzela, a que saindo da estrada Lisboa Porto passa pela
Mealhada, por Mortágua, por Santa Comba-Dão e Tondela e
a que vem da Guarda por Celorico (ponto de cruzamento de outras
importantes estradas), Fornos e Mangualde (outro nó de
estradas).
Embora entre 1835 e 1865 se
modifiquem alguns dos itinerários (tal como, se calhar, entre
a Idade Média e 1835), Coimbra, Aveiro e Porto (que em 1865 se
alcança pela estrada que segue para Aveiro e depois pela que
une Lisboa ao Porto) são destinos para onde se dirigem sempre
as principais estradas, da idade Média a 1865, a que se
juntam, por vezes, Lamego e/ou a Beira interior (Guarda ou
Covilhã), algumas direcções continuando aquelas
que há dois milénios eram as direcções
privilegiadas e todas elas continuadas hoje à
excepção da direcção que corresponde
à ligação com Lamego.
Poder-se-ão justificar as
preferências geográficas das estradas, da idade
Média a hoje, sempre orientadas nas mesmas
direcções, as das quatro ou cinco cidades mais
próximas de Viseu? Ou, pelo menos, poder-se-ão
compreender?
Em primeiro lugar há o peso da
demografia: as estradas dirigem-se para onde há maior
concentração demográfica. Ora são os
factores económicos que provocam essa atracção,
como no caso do Porto (com uma zona de influência que se
estende a Viseu e a grande parte da Beira), ora são factores
culturais, como no caso de Coimbra (onde se situa a Universidade para
onde vão os filhos segundos e terceiros da nobreza viseense e
os filhos dos homens honrados e ricos). Mas é sempre o maior
número de homens que orienta.
Em segundo lugar, há as
distâncias: os caminhos orientam-se para as
povoações mais importantes (cidades) e mais
próximas. Mas, deve notar-se, a cidade que uma estrada
põe em contacto com Viseu pode ser ponto de partida para outra
cidade, fazendo-se de cidade em cidade ou de vila em vila qualquer
percurso, por mais extenso que seja.
É o que acontece, por exemplo,
com o Porto: embora esta cidade só por si tenha profunda
influência na vida viseense, seja no aspecto económico
seja no aspecto das ideias e das mentalidades, o Porto é
também ponto de passagem de e para o Minho, região
bastante importante quer do ponto de vista demográfico quer do
ponto de vista económico. Por outro lado, só o
afastamento geográfico explica a escassa importância,
por exemplo, das relações com Lisboa na vida quotidiana
viseense.
Em terceiro lugar, há os
outros obstáculos e incentivos geográficos — serras e planaltos, rios, a dureza do solo, a chuva e a
neve.
Viseu
situa-se num planalto granítico inclinado para o Mondego e
limitado pelas serras da Lapa, Leomil, Montemuro, Gralheira, Caramulo
e Buçaco e pela Cordilheira Central (fig. 2). Planalto sulcado
por rios, é penetrando pelos vales do Mondego e do Dão,
do Vouga e do Paiva que se diminuem os acidentes do relevo. Ora,
é precisamente por aí que se orientam as principais
estradas.
A importância destes factores
geográficos é bastante visível no que sucede com
a ligação com Lamego: embora esta seja a cidade de
Viseu mais próxima, a estrada que une os dois aglomerados tem
de transpor o obstáculo que é a serra, obstáculo
da altura e do relevo, obstáculo da neve, obstáculo do
nevoeiro. Ainda neste século, testemunha-o Aquilino na Geografia Sentimental, fazer essa viagem era partir para o
cabo do mundo. Não admira, por isso, que das estradas mais
importantes esta seja aquela que o é menos, ou pelo menos uma
daquelas.
Em contrapartida, há os
incentivos geográficos, como a navegabilidade dos rios.
É deste modo que se pode explicar o itinerário para
Coimbra pela Foz-Dão. Antes do caminho de ferro da Beira Alta,
terminado em 1882, quando não existe um meio de transporte
terrestre adequado às grandes quantidades e às grandes
distâncias, a facilidade que o Mondego oferece é
aproveitada nas ligações com Coimbra e com o
mar.
Como eram essas estradas, antes das
estradas?
Antes das estradas de macadame,
abertas em Portugal a partir de 1849, as estradas do "distrito
salvo raríssimas excepções — eram uma
sequência de barrancos de tal ordem que nem para liteiras se
prestavam todas", escreve Pedro Augusto Ferreira em 1890. Por
exemplo, os caminhos que atravessam o Buçaco são,
segundo um testemunho de 1609, o de Manuel Severim de Faria,
"carreiros mui estreitos abertos na rocha viva e cobertos de pedra
solta" por onde se anda "dificultosissimamente".
Segundo um conselho da câmara
viseense, de 1835, às estradas devia dar-se uma forma abaulada
de modo a que a água das chuvas rapidamente escorresse para um
e outro lado e as rodas dos carros deviam ser ferradas e sem pregos
salientes. Porém, mesmo assim, estabelece uma postura de 1852,
um homem de cada fogo devia dar, por ano, dois dias de trabalho para
o concerto dos caminhos e limpeza das fontes do concelho.
Por essas estradas se viaja de muitos
modos.
Viaja-se lentamente, com comodidades,
pausas regulares para refeições e descanso, visitas,
repouso em hospedarias. É o caso do bispo D. Júlio
Francisco de Oliveira que, em 1743, demora 9 dias de Lisboa a Viseu.
Só de Coimbra a Viseu demora dois dias, 23 horas de jornada
para percorrer 13 léguas, 0,56 léguas por
hora.
Por outro lado, há as
velocidades excepcionais: diz Gomes Eanes de Azurara que "foi coisa
maravilhosa que o infante D. Henrique veio de Viseu aos paços
da Serra em um dia e uma noite, que são quarenta
léguas". 40 léguas, 24 horas: 1,7 légua por
hora.
Entre estes dois extremos, há
as viagens mais vulgares: as dos almocreves (que trazem o peixe
fresco do Porto ou de Aveiro), as dos mercadores, as das
diligências (que em 1855 gastam 3 horas para percorrerem as 3
léguas da estrada de macadame entre Viseu e a Vila do Banho),
as dos correios (que em 1835 gastam 5 dias quer para o Porto quer
para Lisboa). Umas mais rápidas do que outras, é certo.
Mas compreendidas entre o limite das velocidades mínimas e o
limite das velocidades máximas.
Três velocidades,
portanto.
Com os homens viajam os produtos
comerciais, seja para venda no mercado, seja para venda na Feira
Franca, e as ideias. Por exemplo, alguns dos edifícios da
Praça D. Duarte, casas altas e estreitas, lojas no
rés-do-chão, janelas largas e sacadas, edifícios
que reproduzem um dos modelos portuenses, são testemunho
não apenas de uma intensa relação
económica mas também (sobretudo?) de uma afinidade de
ideias e de mentalidades que apenas contactos frequentes podem
justificar. Outro exemplo das ideias que passam por essas estradas
dá-as a fundação da Misericórdia de
Viseu, por volta de 1500, poucos anos depois de criada, em Lisboa, a
primeira Misericórdia do Reino.
Mas com os homens também vem,
por vezes, a guerra e a destruição. Como em 1373, 1385,
1396 ou 1398, quando os castelhanos entram por Portugal, tornam
sucessivamente Almeida, Pinhel, Linhares, Celorico, Viseu e Coimbra
ou Almeida, Pinhel, Trancoso e Viseu e destroem e matam, ou como
durante as invasões francesas — em 1808 Loison, que de
Almeida vai até Lamego, toma a estrada para Viseu e daqui
segue para Mangualde, Fornos, Celorico e Pinhel, enquanto em 1810 os
franceses vêm de Almeida, passam por Celorico, chegam a Viseu e
continuam, por Mortágua, até ao
Buçaco.
Homens, coisas, ideias — tudo
passa por aí.
Primeiro, vias pavimentadas em grande
parte dos percursos, lajes por onde passam as tropas imperiais,
depois caminhos abertos na terra ou na rocha. Estradas de macadame,
verdadeiras estradas, só dobrado o meio do século XIX.
Mas há sempre preferência pelas mesmas
direcções — ainda hoje, quando a melhor estrada
que sai de Viseu é a que se dirige a Coimbra e quando
está em construção a via rápida Aveiro -
Viseu - Vilar Formoso, com ligação à Guarda e ao
Porto.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Partir
e chegar: antes das estradas, as estradas de e para
Viseu», in Programa da Feira Franca de S. Mateus, Viseu,
1987.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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