Escrito à mão
António João Cruz
Lembro-me bem daquele dia, ao fim da tarde, em que peguei no manuscrito pela primeira vez. Lembro-me do formato almaço, da espessura, dos cheiros de século e meio, da caligrafia, dos cadernos cosidos uns aos outros, das margens traçadas a tinta, dos mapas, da capa de cartão e de couro.
Era Inverno, todo o dia chovera Uma chuva miúda, leve, e uma luz cinzenta onde o tempo parece não se mover, em que os sentidos são mais sensíveis e mais sentidos, em que o prazer se mistura com uma dor branda, mansa, de saudade do futuro.
Mas ao fim da tarde, quando o sossego começa a tomar conta daquela sala da biblioteca e outras coisas começam, as mesas a ficarem livres de estudantes que só por engano ali passam o dia, e o quadro do dr. António Nunes de Carvalho, na parede, a tomar vida, tal descoberta, um outro mundo a nascer, poderia dar-se em qualquer outro dia. Deste lado daquelas janelas bem desenhadas, com pequenos vidros interrompidos por madeira de branco pintada, o calendário não tem importância, não se sente, talvez não exista mesmo.
Ao cansaço dos dedos que há horas seguram a caneta e transportam, uma a uma, as palavras daquele manuscrito para o meu caderno em branco, sobrepõem-se a curiosidade e o pudor de estar ali, intruso, a devassar aquela alma assim exposta, ainda que voluntariamente. As palavras falam de história, dos tempos idos de uma cidade, apenas; mas por detrás delas, por detrás das escritas palavras de qualquer texto, há gente, há sentimentos que se repartem, há amor e raiva sempre que as palavras são sentidas, verdadeiras ainda que imaginadas, doridas.
Copiei todas as páginas do manuscrito. Com paciência e prazer. Devagar. Lentamente. Monasticamente. Foram dias (semanas?) assim passados, nesta satisfação saboreada e absoluta. Como se tudo voltasse a ser escrito à mão, como se os livros tornassem a ter o valor de um desejo, se transformassem numa obra de artesão e pudessem ser lidos, vezes sem fim, sempre o mesmo e sempre outro, sem pressas, sem outro livro para ler.
E foi assim que ganhei esta paixão pelo José de Oliveira Berardo, um mito quase e um desgraçado («um dos primeiros homens de letras de Portugal», escreve Herculano, mas «está excessivamente pobre»).
Agora, que longe estou dessa sala-santuário e desse manuscrito-verdadeiro, consola-me apenas esta cópia, este manuscrito-falso, que aqui religiosamente guardo entre outros livros que ninguém conhece, nomes ignorados, mas que me tocam de um modo especial: Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Maximiano de Aragão, José Coelho, outros.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Escrito à mão», Diário de Notícias, 43089,
10-3-1987, p. 31.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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