| José Coelho, entreactoAntónio João Cruz Gauguin pergunta: de onde vieste? Do nada?  Cristalizaste o pó e o gelo que a espaços  infinitos toste buscar à nebulosa primitiva, à mãe de todos os planetas.  Moldaste um rosto, um corpo a que deste um nome e tomaste-o para ti.  A um espaço de solidão foste. E a solidão  trouxeste. Contigo. Toda a solidão que outros corpos já habitaram e que tu,  agora, reencarnas. José Coelho é o teu nome. Mas Solidão deveria ser.  E à solidão a vida juntou-te sacrifícios e  conflitos e derrotas e injustiças e tudo o mais.  Eu sei que atrás de ti há muitos lugares,  muitas pessoas, muitos objectos.  Viseu, a casa da Via-Sacra, o Liceu, a  Biblioteca, as quintas ao redor da cidade. Leite de Vasconcelos, Salazar,  Mendes Correia, Almeida Moreira. Os livros, os fragmentos cerâmicos que  recolheste, com um amor sem fim, nas necrópoles de outros tempos, os  manuscritos que pacientemente copiaste para os teus Cadernos de Notas Arqueológicas. E Oliveira Berardo e Maximiano de  Aragão. E o DNA.  Tudo isto (ou quase) em ti consigo ver. Mas  não conheço os teus gestos de alquimista. Não sei como tudo isto combinaste com  o pó e o gelo, o frio e o calor, a luz e a escuridão. Não sei que ritos  encenaste, não sei que milenares segredos te serviram.  ***  Foste um «beirão da nobre e velha estirpe  lusa», dizes tu. Mas que significam hoje essas palavras, que imagens carregam,  que valor transportam, que símbolos evocam?  Hoje tudo isso se esqueceu. Não sei se bem,  não sei se mal. Livrámo-nos desse peso que, no teu tempo, no teu mundo de  cavalaria, esmagava qualquer um; construímos outras prisões, bloqueámos outros  caminhos.  Tudo isso se esqueceu. E esquecemos-te, também  — a maior de todas as injustiças que há na tua vida e na tua morte. Entre  tantas, tantas.  E, no entanto, tinha a vida para ti um  objectivo que poucos perseguem: uma vida oferecida à comunidade, a Viseu, à tua  terra. Sacrifício e prazer de outro tempo, certamente — um tempo mais violento  do que este, em que não vives já.  ***  Durante anos e anos não descansaste um só  momento.  Os teus pés deixaram marcas em todos os  caminhos à volta da cidade — buscavas testemunhos de outros dias, de outras  vidas, vozes que há mil anos guardavam o silêncio e, com ele, mil segredos que  outros não souberam (ou não quiseram) entender. Procuravas os outros homens —  num pequeno machado de pedra, numa fíbula de bronze, num pedaço de telha.  Trilhaste caminhos velhos, descobriste povoados que hoje já não são povoados —  «cidades mortas», disseste tu — e necrópoles.  Chamaram-te arqueólogo. Mas só alguns, os outros  não pronunciaram sequer um nome.  E esqueceram-te, esquecemo-nos.  Utilizaste métodos antigos, eu sei. Procuraste  sobretudo os objectos, esqueceste os ambientes, a estratigrafia. Mas que podias  fazer tu, há cinquenta anos, em Viseu, só, sem apoios, sem estímulos, sem  compreensão sequer? Pelo contrário, dizes que te roubaram as descobertas, gente  importante, daquela que não olha aos meios, dizes que viram em ti sempre um  inimigo. E eu, há tempos, encontrei um artigo teu que não passou na Comissão de  Censura.  Contra ventos e marés construíste, mesmo  assim, uma bonita colecção arqueológica, que ficava bem em qualquer museu — o  Museu Etnológico das Beiras, por exemplo, aquele museu por que tanto lutaste.  Os teus filhos doaram-na à Câmara de Viseu, para o futuro, sempre futuro, Museu  de História da Cidade. Mas para quê? A Câmara guardou-a num canto de um  pavilhão. Amontoada. Esquecida. Se calhar, um fardo. Nem sequer completamente  protegida da chuva.  ***  Dizem que morreste em 1977, com 89 anos. Por  essa ocasião, davas frequentes passeios a pé pelas ruas de Viseu. Mais do que  nunca, caminhavas só, caminhavas como sempre neste mundo estiveste. Muitas  vezes, contam-me, caminhavas com uma flor na mão, colhida de manhã cedo no  quintal da tua casa, a Casa da Via-Sacra,  como gostavas de lhe chamar. À tarde a flor já não o era. Murcha, desfeita, sem  cor. Qualquer coisa amarrotada, irreconhecível.  A flor, o que antes tinha sido uma flor,  mostrava-te, a alma.  Dois destroços.  Mas tu nada viste.  O único sinal de vida era, então, esse teu  andar pelas ruas da cidade, quase como um vagabundo.  Imagino-te: passos lentos, uns atrás dos  outros, sem rumo, talvez a mostrarem dificuldade. Imagino-te: apertados os  botões do sobretudo, um chapéu na cabeça. Mas onde poisa o teu olhar? No chão?  Nas pessoas com quem te cruzas? No meio da rua, à procura das árvores que já  não existem então?  Mas não eras tu, pois não?  Dizem que morreste assim.  Chegaste a casa, sempre com o mesmo olhar,  puxaste uma cadeira e sentaste-te a ver o Sol. Durante uma eternidade de alguns  segundos se olharam. E depois, quando o Sol desapareceu, o vulto sentado fechou  os olhos, cansado, e tu seguiste a luz e o calor para outros mundos.  Dizem que foi assim.  Mas eu não acredito. Então, em 1977, já não  estavas tu aqui nesta cidade, em Viseu. Eu sei.  Tu, que no escrever encontraste o que os  homens não te deram, tu, que passaste as décadas de 20, 30 e 40 a escrever, a  escrever, a escrever (centenas de artigos nos jornais de Viseu, outros artigos  noutros jornais da região, comunicações a congressos, estudos em revistas),  morreste logo a seguir ao II Colóquio Portuense de Arqueologia, em 1964. A tua  mão nunca mais percorreu o papel como dantes, nunca mais uma linha escreveu.  Isto eu sei, isto consegui descobrir. Mas não  sei o resto. Foi um acidente na viagem de regresso a casa? O destino? O que  foi?   
	 Referência bibliográfica: António João Cruz, «José Coelho, entreacto», Voz das
      Beiras, 68, 20-2-1987, p. 4-5. Artigo em formato pdf (versão publicada)  Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
 |