Apontamentos para a
história de Viseu

A economia, a sociedade e a política na demografia visiense dos sécs. XVI, XVII e XVIII

António João Cruz

Procurar identificar causas e efeitos talvez seja prematuro — admitindo que é possível destrinçar na teia da demografia os fios que a formam, segui-los, um a um, de uma ponta à outra, estabelecer hierarquias, desfazer os nós. Pode ser que pontualmente o acumular das evidências permita dizer quais são as causas imediatas mais importantes e quais são as principais consequências. Porém, no global, por certo, tal não ocorrerá. A estratégia possível neste momento é a de, mais modestamente, procurar no incessante ondular as fases e as oposições.

Dos três domínios, a economia é, provavelmente, o mais privilegiado. Nela se encontram movimentos que acompanham os da demografia (ou será ao contrário, a demografia a acompanhar a economia?) e dos três ela é o que mais facilmente se pode quantificar, para depois se seguir, ano após ano ou século após século.

Assim, enquanto o crescimento demográfico no século XVIII é um pouco inferior a 4/5 do crescimento no século XVII, o crescimento dos preços (pelo menos, o do azeite) é no século XVIII ligeiramente superior a 3/5 do seu crescimento no século XVII. Coincidência apenas? Em escala mais reduzida esse movimento paralelo é também evidente (ou talvez mais evidente): enquanto a cidade, na primeira metade do século XVII, segundo diversas fontes, oscila ao redor dos 900 fogos, sem aumentar nem diminuir, o preço do azeite mantém-se estável nas décadas de 10, 20 e 30 — salvo no que é consequência da Guerra da Sucessão de Espanha.

Se a economia explica a demografia ou, pelo menos, se a acompanha, há que buscar nesse espaço relações mais profundas, as que entre a demografia e o que por detrás da economia está se manifestam, há que o estilhaçar, transformá-lo num espaço de confluências, num mecanismo.

Nessa primeira metade do século XVIII, se em Viseu o preço do azeite mostra tendência a se manter estável contra a tendência de descida que nos outros mercados se encontra, se, portanto, tem tendência para subir relativamente à tendência geral, é ás obras que, por conta do Cabido, na cidade se fizeram nas décadas de 20 e de 30 se deve, àquelas obras que lhe deram um ar que, já se disse, a faz "cidade princesa do barroco". As obras, os artífices que por elas acorreram e o dinheiro posto em circulação, grandes somas, são suficientes para erguerem os preços contra a tendência geral — e, por aí, de favorecerem o movimento demográfico.

Se o que então acontece mostra a importância das classes privilegiadas para o desenvolvimento da cidade, ou, pelo, menos, de parte delas, noutras ocasiões é o contrário que mais sobressai: nesses outros momentos, essas mesmas classes, erguem obstáculos cm vez de incentivos, dificultam o quotidiano viver dos outros homens, levantam contra si motins e revoltas, vozes contidas que momentaneamente se libertam contra a opressão que cai sobre quem a terra trabalha.

Testemunho e exemplo é a queixa que. em 1821, depois de uma lenta e secular acumulação de injustiças, alguns lavradores dos arredores de Viseu fazem de que "padecem gravíssimos prejuízos e um muito considerável atrasamento da sua agricultura pelos pesadíssimos foros que têm nestes distritos os religiosos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra" pois "além do foro sabido são obrigados a pagar, uns o décimo, outros o oitavo e outros o sexto de suas produções" mais "os dízimos e pensões aos senhorios". Consequência desta e de idênticas situações são os conflitos que por vezes deflagram sob diversas roupagens. É o que se pode ver, por exemplo, na recusa de pagamento dos foros à Câmara, depois de publicado um decreto de Mouzinho da Silveira.

Por detrás da economia, ao lado dos movimentos sociais, está também a guerra.

Do século XVI ao século XIX é uma lista longa e negra. A da Restauração, a da Sucessão de Espanha, a de 1762, a de 1801, as invasões francesas e as lutas liberais são apenas algumas das contas desse rosário. No entanto, na região de Viseu, mais do que os mortos e os feridos, à excepção talvez das invasões francesas, são das destruições através da economia que mais marcas se vêem: campos destroçados, culturas perdidas, animais mortos, falta dos braços ocupados na guerra. Por isso, todas elas ficaram registadas no andamento dos preços — e, adivinha-se, na demografia.

O que do jogo de todas estas forças resulta mostra-se no crescimento da população durante esses séculos — embora, é preciso não esquecer, a própria evolução demográfica origina novas forças e condiciona as existentes.

É ela que, com a cumplicidade da economia, alimenta o número dos pobres — na segunda metade do século XVIII, num círculo, centrado na cidade, com uns 5 km de raio, só os que no limiar da incapacidade física vivem, isto é, os doentes e os aleijados, representam uns 10 % da população total; portanto, contabilizando os que se encontram no limiar biológico e os que vivem no limiar da associabilidade (vagabundos e criminosos), é possível que no total sejam uns 20, 30 ou mesmo 40 ou 50 % da população.

É ela que, com o auxílio da economia e do clima, origina as fomes e, através delas, as epidemias. Embora frequentes, sobretudo nos séculos XVI e XVII, as epidemias, contudo, provavelmente escassas consequências tiveram no crescimento demográfico de Viseu — na realidade, poucas vezes terão passado de ameaças, vozes que contam o que noutras cidades acontece, as portas das muralhas fechadas, finalmente as missas e as orações de agradecimento, depois de dias, meses ou anos cheios de terrores e de dúvidas e de sombras do passado.

Esta é a teia em que a demografia viseense dos séculos XVI, XVII e XVIII se ergue - e que ajuda a tecer.

NOTA: Este texto é um extracto do artigo "A teia de um crescimento. Viseu do século XVI ao século XX" publicado no programa da Feira de S. Mateus 1986.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A economia, a sociedade e a política na demografia visiense dos sécs. XVI, XVII e XVIII», Voz das Beiras, 62, 9-1-1987, p. 6.

Artigo em formato pdf (versão publicada)

Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.