O primeiro cronista de Viseu?
António João Cruz
Hoje, Manuel Botelho Ribeiro Pereira, autor de uns Diálogos Morais e Políticos escritos entre 1630 e 1636, é correntemente assinalado como o primeiro cronista de Viseu. Porém, o que com isso se quer significar é que dele é a crónica mais antiga que até nós chegou — o que não implica que outro tenha sido, em termos cronológicos, o primeiro.
Esta outra possibilidade tem sido, contudo, sistematicamente ignorada pela historiografia viseense, não só hoje como em anteriores séculos. Porque, na realidade, Manuel Botelho Ribeiro Pereira é mesmo o primeiro? Porque, antes de escrita a sua crónica outras foram, mas com tão escasso valor que rapidamente ficaram esquecidas? Porque, se existiram, essas crónicas anteriores à de Botelho Pereira eram incómodas a alguém (algum indivíduo, alguma família ou algum grupo social?) e, por isso, foram deliberadamente ignoradas? Quem sabe?!
Mas, se bem atentarmos, o problema torna-se ainda mais confuso: essa crónica que é referida como a primeira da historiografia viseense só em 1955, mais de três séculos depois de concluída, é impressa e convenientemente (?) divulgada, embora outra tenha sido a vontade do seu autor."Buscando eu todos os meios humanos para sair à luz com este meu trabalho e a quem o dedicasse, tão digno que o certo me ficasse por prémio — escreve Botelho Ribeiro Pereira na apresentação dos Diálogos, — achei sempre enganado o pensamento e frustrada a esperança, saindo-me a sorte tão contrária do que imaginara". Contudo, havia então todas as condições para que uma crónica dos bispos visienses — o que, no essencial, são os Diálogos — fosse acarinhada pela cidade e, sobretudo, pelo clero ou, pelo menos, pelo bispo (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Cultura e sociedade: a historiografia viseense", in História, Lisboa, 63, Janeiro de 1984, pp. 84-88).
As palavras da apresentação, que parecem ser as últimas dos Diálogos a serem escritas, contrastam com as palavras da última página. Aí escrevia Manuel Botelho Ribeiro Pereira a D. Dinis de Melo e Castro, bispo de Viseu de 1636 a 1638: o autor "pede o favor, emenda e censura de V. S.ª, com a qual poderá sair esta obra às praças e teatro do Mundo". E acrescenta sobre essa publicação: se "bem que por meus deméritos se escuse, já não poderá deixar de o fazer por ser história de uma Cidade".
Que se passou entretanto, entre estas palavras que dão como certa a publicação dos Diálogos e as palavras, sem esperança e desesperadas, colocadas no pórtico? A transferência para outra diocese, em 1638, e a morte, em 1639, de D. Dinis de Melo e Castro? Contava com a sua ajuda para a impressão da crónica — ficando, entretanto, à espera que novo bispo o auxiliasse? Desesperou, já velho, de esperar por um bispo que nunca mais era nomeado — o que acontece só em 1668 com Botelho Pereira morto já, provavelmente? Eis, talvez, a resposta.
Mas há as outras questões, ainda.
E aí Botelho Pereira é quem mais ajuda.
É ele quem refere um texto mais antigo que o seu — embora com ele não concorde muito.
Assim, sobre D. Pelágio, suposto bispo de Viseu que nem Fortunato de Almeida nem Miguel de Oliveira referem, escreve Botelho Pereira: "deste bispo há muito pouca notícia; somente afirma Francisco de Abreu, que fez um catálogo e suma dos bispos desta cidade, que consta de uma escritura do Cartório do Cabido que passou desta vida no ano de 1261, a qual eu não vi; antes vos advirto que há neste catálogo muitos erros, assim em o número de Prelados como em a conta dos anos, e por isso não dá a muitos o devido lugar de sua sucessão". E nota: "quis fazer esta advertência para que, se algum curioso sair à luz com aquele catálogo, que foi feito por ordem do bispo D. João Manuel, não lhes deis mais autoridade — que é que vos digo" (pp. 341-342).
D. João Manuel foi nomeado bispo de Viseu em 1609, entrou na cidade em 1610, foi transferido para o bispado de Coimbra em 1625 e nomeado arcebispo de Lisboa em 1632 e morreu em 1633 (cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova edição, Porto-Lisboa, Civilização, 2.º volume, 1968). Portanto, Francisco de Abreu deve ter começado a escrever o seu catálogo entre 1610 e 1625.
Quem foi Francisco de Abreu, não se sabe. Pode-se, contudo, supor que a sua obra foi rapidamente esquecida porque outra, a de Botelho Pereira, com muitos, mais merecimentos, logo foi escrita. Mas torna-se outra vez ao ponto de partida, mudando apenas um nome: é Francisco de Abreu o primeiro a dedicar-se à história de Viseu, isto é, à história dos bispos de Viseu? Ou...
Certo, certo, apenas isto: é impressionante o número de textos dedicados à história de Viseu que nunca tiveram uma divulgação adequada. Hoje, de alguns apenas se conhecem os manuscritos, os originais ou cópias. De outros nem isso. E o facto de alguns dos textos terem já sido impressos pouco ou nada significa: as edições disponíveis são frequentemente lamentáveis — é o caso, por exemplo, da edição dos Diálogos ou da edição das Memórias de Francisco Manuel Correia.
Surge então uma outra questão: que fatalidade é esta, sempre presente ao longo destes três séculos e meio?
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «O primeiro cronista de Viseu?», Voz das
Beiras, 55, 14-11-1986, p. 3.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
|