A teia de um crescimento: Viseu do século XVI ao século XX
António João Cruz
A história não
explica, no sentido em que ela não pode deduzir e prever
(só o pode um sistema hipotético-dedutivo); as suas
explicações não são o reenvio para um
princípio que tornaria o acontecimento inteligível.
elas são o sentido que o historiador empresta à
narrativa.
Paul Veyne
É só
em 1864 que em Portugal se realiza em moldes modernos o primeiro
recenseamento geral da população.
Então, nesse ano, Viseu (as
freguesias da cidade) tem uns 6.640 habitantes. Mais de um
século depois, em 1981, data do último censo,
são uns 20.070.
O crescimento médio anual de
0,95 % que estes números traduzem dá uma imagem errada
do que entretanto ocorre. Por exemplo, entre 1890 e 1911 a
população não aumenta e entre 1940 e 1950
há um decréscimo, ainda que não muito acentuado.
Pelo contrário, na década de 50 o crescimento é
mais que três vezes superior àquele crescimento
médio.
Este movimento não está
de acordo com o que acontece no espaço rural do concelho. Por
um lado, o crescimento médio anual é bastante inferior:
apenas 0,38 %. Por outro, as décadas de crescimento mais
rápido e as de crescimento mais lento (crescimento nulo ou
mesmo diminuição) não ocorrem ao mesmo tempo.
Assim, neste espaço, 1878 e 1890 definem um período em
que não há aumento demográfico, 1911 e 1920 um
outro em que há diminuição, tal como entre 1950
e 1970, e à década de 40 corresponde a maior velocidade
de crescimento, quatro vezes superior à velocidade
média desses quase 120 anos.
Estes dois movimentos que se parecem
ignorar, testemunham dois modos de vida quase diferentes e
indiferentes ou, pelo menos, com pouco de comum — o que se podia
prever da diferente composição social desses dois
universos, que se adivinha.
O que acontece no espaço rural
é o que se pode explicar mais facilmente: quer a
ausência de crescimento entre 1878 e 1890, quer a
regressão demográfica que ocorre entre 1950 e 1970,
quer o muito rápido crescimento da década de 40
estão directamente relacionados com a emigração.
Por detrás deste imediato motivo há, no entanto, causas
diferentes e caminhos diferentes. Em 1878 e em 1950 a crise do mundo
rural origina o sair dos braços, a procura de outros
países. Mas são crises diferentes e os caminhos
não são os mesmos: no final do século XIX
são as Américas que se buscam, o Brasil sobretudo; em
1950 é a diáspora europeia que se inicia, rurais que
partem para se fazerem operários na reconstrução
de uma Europa destruída pela guerra. A confiança que
então se manifesta nesses países contrasta com a
desconfiança da década de 40, traduzida na
diminuição grande da emigração portuguesa
e consequente aumento demográfico. Quanto ao retrocesso da
década de 10, duas causas se podem avançar: a epidemia
de gripe pneumónica que abala o país e, em menor grau,
a 1.ª guerra mundial.
O que na cidade sucede não se
pode saber com certezas. É provável que a
emigração rural, que se inicia por volta de 1870, tenha
levado atrás de si, consigo, uma emigração
urbana, num processo que se vem a prolongar pelos primeiros anos do
novo século. Mas como se pode explicar a
diminuição demográfica entre 1940 e 1950 e o
notável crescimento da década de 50?
O
crescimento — que, numa perspectiva global, caracteriza o
período coberto pelos recenseamentos, período que se
inicia em 1864 — é umas das características da
evolução viseense, pelo menos desde o século XV.
O mapa que se apresenta sobre o crescimento da cidade (traçado
a partir de um elaborado por Amorim Girão), ainda que suscite
algumas reservas (dentro dos espaços definidos há zonas
brancas que só tarde são preenchidas, é bastante
sugestivo: os limites da cidade, isto é, os limites da
ocupação urbana não deixam nunca de se afastarem
do "sítio genético" do povoamento onde a actual
Sé pode ser tomada como referência. Mais: este mapa
põe dois crescimentos em confronto: o que se dá depois
de 1864, mais visível, com o que ocorre antes.
O que aqui se vê de um modo
apenas qualitativo outros testemunhos nos mostram de um modo
semi-quantitativo.
Para o período anterior a 1864
mas posterior a 1527 um conjunto de fontes que se podem classificar
como numeramentos está disponível. Juntam-se-lhes, por
vezes, algumas estimativas dispersas por corografias,
dicionários geográficos e relatos de viagens.
Porém, os números que nos transmitem são muito
frágeis, por vezes duvidosos e, com alguma frequência,
de difícil interpretação. Portanto, de modo
algum se lhes pode atribuir o valor que aos recenseamentos
posteriores a 1864 se costuma dar. Apenas estimativas eles são
— neles se lê a probabilidade em vez da certeza, os
milhares e as centenas em vez das dezenas e das unidades.
A comparação dos 2.200
habitantes que na cidade vivem em 1527 com os 6.640 que o
recenseamento de 1864 refere permite estimar em 0,33 % o crescimento
médio anual de Viseu durante esse tempo de mais de três
séculos.
Mas, também aqui, o movimento
não se pode admitir uniforme. Com algumas dúvidas,
pode-se estimar em 2.000 habitantes a população da
cidade em 1500, em 2.600 em 1600, em 3.300 (ou talvez um pouco mais)
em 1700 e em 4.000 em 1800. Ou seja: um crescimento médio
anual de 0,26 % para o século XVI, de 0,24 % para o
século XVII, de 0,19 % para o século XVIII, de 0,80 %
para o período limitado por 1800 e 1864 e de 0,56 % para os
anos que vão de 1864 a 1900.
Como se pode explicar este movimento?
Ou seja: como se pode correlacionar este movimento com o pouco que da
história de Viseu se sabe?
Em três domínios, pelo
menos, há que procurar: nos da economia, da sociologia e da
política. Procurar identificar causas e efeitos talvez seja
prematuro — admitindo que é possível
destrinçar na teia da demografia os fios que a formam,
segui-los, um a um, de uma ponta à outra, estabelecer
hierarquias, desfazer os nós. Pode ser que pontualmente o
acumular das evidências permita dizer quais são as
causas imediatas mais importantes e quais são as principais
consequências. Porém, no global, por certo, tal
não ocorrerá. A estratégia possível neste
momento é a de, mais modestamente, comparar movimentos, isto
é, procurar as semelhanças e as diferenças,
procurar no incessante ondular as fases e as
oposições.
Dos três domínios, a
economia é, provavelmente, o mais privilegiado. Nela se
encontram movimentos que acompanham os da demografia (ou será
ao contrário, a demografia a acompanhar a economia?) e dos
três ela é o que mais facilmente se pode quantificar,
para depois se seguir, ano após ano ou século
após século.
Assim, enquanto o crescimento
demográfico no século XVIII é um pouco inferior
a 4/5 do crescimento no século XVII, o crescimento dos
preços (pelo menos, o do azeite) é no século
XVIII ligeiramente superior a 3/5 do seu crescimento no século
XVII. Coincidência apenas? Em escala mais reduzida esse
movimento paralelo é também evidente (ou talvez mais
evidente): enquanto a cidade, na primeira metade do século
XVIII, segundo diversas fontes, oscila ao redor dos 900 fogos, sem
aumentar nem diminuir, o preço do azeite mantém-se
estável nas décadas de 10, 20 e 30 salvo no que
é consequência da Guerra da Sucessão de
Espanha.
Se a economia explica a demografia
ou, pelo menos, se a acompanha, há que buscar nesse
espaço relações mais profundas, as que entre a
demografia e o que por detrás da economia está se
manifestam, há que o estilhaçar, transformá-la
num espaço de confluências, num mecanismo.
Nessa primeira metade do
século XVIII, se em Viseu o preço do azeite mostra
tendência a se manter estável contra a tendência
de descida que nos outros mercados se encontra, se, portanto, tem
tendência para subir relativamente à tendência
geral, é às obras que, por conta do Cabido, na cidade se
fizeram nas décadas de 20 e de 30 se deve, àquelas
obras que lhe deram um ar que, já se disse, a faz "cidade
princesa do barroco". As obras, os artífices que por elas
acorreram e o dinheiro posto em circulação, grandes
somas, são suficientes para erguerem os preços contra a
tendência geral — e, por aí, de favorecerem o
movimento demográfico.
Se o que então acontece mostra
a importância das classes privilegiadas para o desenvolvimento
da cidade, ou, pelo menos, de parte delas, noutras ocasiões
é o contrário que mais sobressai: nesses outros
momentos, essas mesmas classes, erguem obstáculos em vez de
incentivos, dificultam o quotidiano viver dos outros homens, levantam
contra si motins e revoltas, vozes contidas que momentaneamente se
libertam contra a opressão que cai sobre quem a terra
trabalha.
Testemunho e exemplo é a
queixa que, em 1821, depois de uma lenta e secular
acumulação de injustiças, alguns lavradores dos
arredores de Viseu fazem de que "padecem gravíssimos
prejuízos e um muito considerável atrasamento da sua
agricultura pelos pesadíssimos foros que têm nestes
distritos os religiosos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra" pois
"além do foro sabido são obrigados a pagar, uns o
décimo, outros o oitavo e outros o sexto de suas
produções" mais "os dízimos e pensões aos
senhorios". Consequência desta e de idênticas
situações são os conflitos que por vezes
deflagram sob diversas roupagens. É o que se pode ver, por
exemplo, na recusa de pagamento dos foros à Câmara,
depois de publicado um decreto de Mouzinho da Silveira.
Por detrás da economia, ao
lado dos movimentos sociais, está também a
guerra.
Do século XVI ao século
XIX é uma lista longa e negra. A da Restauração,
a da Sucessão de Espanha, a de 1762, a de 1801, as
invasões francesas e as lutas liberais são apenas
algumas das contas desse rosário. No entanto, na região
de Viseu, mais do que os mortos e os feridos, à
excepção talvez das invasões francesas,
são das destruições através da economia
que mais marcas se vêem: campos destroçados, culturas
perdidas, animais mortos, falta dos braços ocupados na guerra.
Por isso, todas elas ficaram registadas no andamento dos
preços — e, adivinha-se, na demografia.
O que do jogo de todas estas
forças resulta mostra-se no crescimento da
população durante esses séculos — embora,
é preciso não esquecer, a própria
evolução demográfica origina novas forças
e condiciona as existentes.
É ela que, com a cumplicidade
da economia, alimenta o número dos pobres — na segunda
metade do século XVIII, num círculo, centrado na
cidade, com uns 5 km de raio, só os que no limiar da
incapacidade física vivem, isto é, os doentes e os
aleijados, representam uns 10 % da população total;
portanto, contabilizando os que se encontram no limiar
biológico e os que vivem no limiar da associabilidade
(vagabundos e criminosos), é possível que no total
sejam uns 20, 30 ou mesmo 40 ou 50 % da
população.
É ela que, com o
auxílio da economia e do clima, origina as fomes e,
através delas, as epidemias. Embora frequentes, sobretudo nos
séculos XVI e XVII, as epidemias, contudo, provavelmente
escassas consequências tiveram no crescimento
demográfico de Viseu — na realidade, poucas vezes
terão passado de ameaças, vozes que contam o que
noutras cidades acontece, as portas da muralha fechadas, finalmente
as missas e as orações de agradecimento, depois de
dias, meses ou anos cheios de terrores e de dúvidas e de
sombras do passado.
Esta é a teia em que a
demografia viseense dos séculos XVI, XVII e XVIII se ergue
— e que ajuda a tecer.
Se esta teia sugere sempre um mesmo
viver, se mil gestos mil vezes repetidos ela desenha, se dos
três séculos faz um só, é porque a vida
material, no essencial, pouco se modificou durante essas três
centenas de anos. Tirando a introdução do milho grosso
na alimentação durante o século de quinhentos
— uma importação da América a que, por
causa do seu grande rendimento, não deve ser estranho o facto
de o século XVI ser, dos três, o de mais rápido
crescimento —, que hábitos verdadeiramente se modificaram
de uma forma profunda e com consequências
importantes?
Se esta teia sugere um século
XIX igual aos outros séculos, se ela não explica os
tempos que depois vêm, é porque ao rés da terra
não se explica o que de fora desse espaço vem a
modificá-lo.
Por um lado, é a
destruição gradual, empreendida pelo estado liberal
que, depois de 1820, de forma descontínua se instala, do
sistema de relações quase feudais existente no mundo
agrícola. Por outro, é a generalização do
consumo da batata, antes utilizada quase exclusivamente na
alimentação do gado — o que, sem dúvida,
significa um aliviar de tensões entre a
população e os recursos naturais. É ainda, o
desenvolvimento dos transportes, lento e pouco visível na
primeira metade do século mas efectivo — é esse
desenvolvimento que permite escrever em 1866 que "não
há feira em Portugal aonde na actualidade se apresente o
comércio em tão larga escala" como na Feira Franca, em
Viseu. Além destes factores de mudança há,
provavelmente, mais um: as invasões francesas. As suas marcas,
gravadas a ferro e fogo, encontram-se na economia, no
imaginário colectivo, na demografia. Mas essas marcas
não foram muito profundas. Porém (ou talvez por isso),
perturbado o equilíbrio, uma reacção plena de
força e de vida parece ter tomado conta da cidade e dos campos
ao redor: a cidade de 3.760 habitantes em 1820 passa para 4.450 em
1834 e para 6.640 em 1864, ou seja, em média aumenta por ano
1,22 % entre 1820 e 1834 e 1,34 % entre 1834 e 1864, enquanto as
cinco freguesias ao redor (Abraveses, Orgens, Ranhados, Rio de Loba e
S. Salvador) passam de 9.200 habitantes em 1820 para 13.630 em 1864,
a que corresponde um crescimento médio anual de 0,90
%.
Estas novas linhas, que se vêm
a sobrepor às que do século XVIII se continuam, estas
novas linhas que ajudam a tecer uma outra teia na primeira metade do
século XIX e, por isso, a modificar o crescimento
demográfico, gradualmente se entrelaçam e confundem com
as mais antigas. Assim, a essa fase inicial de rápido
crescimento, segue-se, na segunda metade do século, uma fase
de moderação, resultado quer do rápido
crescimento da primeira fase, que de novo estabelece a tensão
entre a população e os recursos, quer de crises
agrícolas como a filoxera, que a partir de 1872 destrói
grande número de vinhedos, quer do desaparecimento da
criação do bicho da sede, "uma boa fonte de riqueza que
findou" como escreve um abade do norte do distrito, sob o duplo
efeito da orientação dos mercados consumidores da seda
para regiões extra-europeias e da doença.
É assim que se inicia o
século XX, um futuro que cada vez é mais estranho
à própria região e onde, por isso, mais
difícil se torna desfazer esta teia, outra, em que o
crescimento demográfico se estrutura para depois a tornar a
tecer. Se até aqui tudo era frágil, este desfazer e
este tecer, como o não seria depois? Se até aqui ainda
há muito por compreender e muitos espaços brancos por
preencher, como não seria depois, nesse século em que
todos nós vivemos, um século de miragens e de
ilusões, tão perto e tão longe?
Motivos, creio, suficientes para
não avançar mais. Por agora.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A teia de
um crescimento. Viseu do séc. XVI ao séc.
XX», in Programa da Feira Franca de S. Mateus, Viseu, 1986.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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