Apontamentos para a
história de Viseu

Do mundo de Viseu ao mundo da quântica

António João Cruz

Durante anos e anos e séculos e séculos, a história que em Viseu se fez não abandonou nunca os terrenos do qualitativo. Basta procurar nas páginas clássicas de Botelho Ribeiro Pereira, Aragão, Lucena e Vale. Nunca um quadro ou tabela, nunca um gráfico. No texto, os números raramente são mais do que anos, dias ou páginas.

Uma fatalidade?

Joaquim Barradas de Carvalho mostrou, já a alguns anos, que o quantitativo e os números que com ele vêm não são escolha nossa ou de outro. Somos prisioneiros do tempo. Não há apenas coisas impossíveis — uma viagem à Lua no século X, por exemplo — como, ensinou Lucien Febvre, há ideias impossíveis. Embora a fronteira que, ao nível do mental, separa o possível do impossível seja qualquer coisa de difuso e de imaterial, que não passa aqui nem ali, qualquer coisa de que se não dá conta no momento, esses limites são tão reais como os limites materiais que dão forma a este papel, a interface que impede que esta folha se dissolva no ar como o açúcar na água.

Uma história quantitativa era impossível no século XVII de Botelho Ribeiro Pereira, era impossível no século XIX de Aragão. Mas no século XX? Nesta segunda metade do século XX?

Há grandes diferenças horárias entre os outros países europeus e o nosso, entre Lisboa e Viseu ou qualquer outra, cidadezinha do interior. Há, é um facto — e esta constatação não implica que seja melhor o que vai à frente. Porém, essas diferenças não implicam nem justificam que, neste momento, em Viseu seja impossível uma história quantitativa ou, pelo menos, que dela se não sinta necessidade. Por exemplo, o computador, que só apareceu depois de a história quantitativa ser noutras paragens um domínio consagrado academicamente, para o bem e para o mal já chegou a Viseu. Portanto, a diferença de fusos horários não o explica nem o justifica.

Será que pelo quantitativo nada depõe? Será que não haverá mesmo nenhuma vantagem em substituir a tradicional história qualitativa por uma nova história quantitativa ou, pelo menos, as colocar lado a lado? Será que este desprezo pelo quantitativo pode ser interpretado como um sinal de sabedoria — pois adivinha os caminhos do futuro?

É verdade que, por outros sítios, é a viagem do quantitativo para o qualitativo que, desde há alguns anos, se faz. Os outros, os franceses sobretudo, com Georges Duby à frente, tentam deste modo evitar o anacronismo de aplicar ao passado modelos e ideias contemporâneas. Se os homens medievais não tinham uma mentalidade quantitativa, porque é que se há-de tentar quantificar a vida económica medieval? Se queremos perceber esses homens da Idade Média os gestos e os saberes, o viver e o sentir, o pensar e o fazer, que outro caminho seguir senão o de tentar recriar os ambientes e as situações como esses homens os viram e os sentiram? Nada mais legítimo, nada mais justificado.

Então, porquê tentarmos apanhar um comboio que outros começaram a abandonar? Essa mudança que algumas correntes historiográficas ensaiam noutras paragens também não consegue justificar esta imobilidade da historiografia viseense. Nessas outras paragens pode-se agora tentar uma outra História porque previamente uma história quantitativa foi erguida. Que sentido teria falar dos homens medievais se estes não fossem situados no tempo, senão conhecêssemos o mundo que construíram, as vidas que viveram? E que melhores índices do que o seu número, a produção e o consumo, as suas viagens e os seus gastos, poderíamos ambicionar?

Portanto, essa mudança de perspectiva parece-me ser indício de uma mudança do quantitativo-como-um-fim para o quantitativo-como-um-meio. É, sem dúvida, uma reacção contra os excessos dos tempos primeiros.

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Argumenta-se contra o quantitativo a sua abstracção e a aridez a que dá origem, a nossa falta de sensibilidade a um quadro de números, como aos nossos antepassados das primeiras décadas do século lhes faltava a sensibilidade para apreciarem uma pintura abstracta. Pelo contrário, ao qualitativo associa-se a beleza das descrições, a materialização, o significado imediato logo bem visível. A matemática, mesmo a mais elementar, os números que lhe associamos, é para nós, ainda neste momento em que o computador se intromete em nossas vidas, algo que nada nos diz, qualquer coisa inconveniente que convém extirpar do que escrevemos ou do que lemos, não é ainda uma ferramenta que nos pode ajudar.

Neste momento, não conseguimos lidar bem com o abstracto — na mecânica quântica procuramos ainda as imagens impossíveis, recusamo-nos a ver numa equação apenas uma equação. No entanto, neste limite imaginado, o do mundo quântico, um mundo só de números e de equações, não se encontra um modelo para a história quantitativa. Afinal, o universo da física não é o universo dos homens.

Uma história quantitativa não é números, números e números. Uma história quantitativa há-de ser descrição e medida — porque não é possível medir sem primeiro descrever e classificar. Uma história quantitativa há-de ser descrição, segundo os modelos tradicionais de narração da historiografia viseense, quando esta se adaptar melhor ao fim em vista, e há-de ser alguns números e algumas tabelas e gráficos quando números, tabelas e gráficos mais se prestarem ao nosso objectivo — sem preconceitos. Uma história quantitativa há-de ser isto. Há-de ser como nós, que ora só ao sentir e às emoções damos atenção ora deitamos as contas à vida. Porque não haveremos de lhe chamar história? Só! História. História de Viseu.

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Que fantasmas são esses que ainda vivem em nós?

Os números, quando usados com saber, quando são um meio e não um objectivo, não são uma prisão. Afinal, o mundo não deixou de ser o que era nem nós perdemos ou ganhámos a liberdade quando Newton escreveu as suas equações. Nem, sequer, quando Einstein as reescreveu ou quando a mecânica quântica as tomou como limite. Porém, o mundo ficou mais belo, mais povoado de segredos. Há lá maior mistério e maior beleza do que esta sábia combinação do acaso com o determinismo, do reversível com o irreversível, da unidade com a pluralidade dos espaços e dos tempos?

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Do mundo de Viseu ao mundo da quântica», Voz das Beiras, 46, 12-9-1986, pp. 1-2.

Artigo em formato pdf (versão publicada)

Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.