Imagens da Misericórdia
António João Cruz
Chamar-lhe-ei crónica, como quem diz que está antes da história? Chamar-lhe-ei longo folheto publicitário? Ou que outro nome lhe poderei dar?
Reinaldo Cardoso Correia de Almeida, o seu autor, diz que o livro, edição de 1985 da Misericórdia de Viseu, sobre a Santa Casa da Misericórdia de Viseu não é história feita — apenas subsídios. Mas posso eu estar de acordo com ele? É como esses materiais que hoje a história se tece e se desfaz, como a teia de Penélope? Reinaldo Cardoso Correia de Almeida, naturalmente, acha que sim — senão teria escrito outro livro, ou tendo escrito este, o subtítulo Subsídios para a sua História não lhe teria dado. Eu não concordo — ao contrário do que creio que ele pensa, a sequência cronológica não faz a história, como o hábito não faz o monge.
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O pouco que sobre a história da Misericórdia de Viseu se consegue saber através de Maximiano de Aragão ou através do 12.º volume do Portugal Antigo e Moderno, este quase com cem anos e aquele com mais de cinquenta, deixa adivinhar a importância, para a história da cidade e região, de uma busca paciente e bem orientada nos arquivos daquela instituição — embora alguma documentação tenha sido destruída durante as invasões francesas.
Por um lado, como diz Fernando da Silva Correia no Dicionário de História de Portugal àcerca das monografias históricas sobre as Misericórdias, porque tal pesquisa permitiria conhecer melhor a composição e o comportamento das classes privilegiadas de Viseu de 1500 até hoje. Por outro lado, devido aos papéis assumidos pelas Misericórdias, porque permitiria avaliar grosseiramente a dimensão da pobreza durante esses séculos. Portanto, no domínio da história social, daria uma importante contribuição para a caracterização e quantificação da estrutura social dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, séculos para os quais outras fontes, quando existentes, são em pequeno número.
No plano económico também o contributo não seria desprezável. Durante alguns séculos, os períodos de desenvolvimento e de estagnação da. cidade estão intimamente ligados ao percurso das instituições religiosas — serve de exemplo o que acontece durante a primeira metade do século XVIII (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Viseu. A cidade do barroco", in História, Lisboa, 77, 1985, pp. 56-61). Ora, a Misericórdia não só deu trabalho a muitos artífices (basta lembrar a construção da actual Igreja da Misericórdia e a construção do hospital hoje existente e dos que o antecederam), como, à semelhança de outras confrarias e irmandades, tinha grandes interesses económicos (manifestados, por exemplo, na criação em 1868 do Banco Agrícola e Industrial Viseense).
Esta vida multifacetada que se deixa adivinhar, face ao estado da historiografia viseense — ainda muito limitada em interesses e métodos à historiografia liberal do século XIX e à historiografia oficial da primeira metade do século XX (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Cultura e Sociedade: a historiografia viseense", in História, Lisboa, 63, 1984, pp. 84-88) — justifica, sem sombra de dúvida, o trabalho que alguém quiser desenvolver nos arquivos da Misericórdia.
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É aqui que entra o trabalho de Reinaldo Cardoso Correia de Almeida — "quase dois anos de um labor dedicado e ininterrupto" (p. 8).
A uma pessoa que, sozinha, se mete no arquivo da Misericórdia de Viseu não se pode pedir que em dois anos faça um aproveitamento exaustivo de toda a documentação existente — não se pode pedir que faça em dois anos o que não se fez em quarenta ou cinquenta. Mas parece-me razoável que se peça um roteiro breve desse arquivo, afinal, creio, parte importante do património da Misericórdia, um roteiro idêntico, por exemplo, a um há pouco apresentado sobre a Biblioteca Municipal (António João de Carvalho da Cruz, "A Biblioteca Municipal de Viseu e a história da cidade", in LerHistória, Lisboa, 6 , 1985, pp. 149-151), como me parece razoável, também, que se peça que a investigação seja encaminhada nas direcções que, à partida, se possam supor mais fecundadas e mais importantes — na minha opinião as direcções que atrás foram apontadas.
Porém, Reinaldo Cardoso Correia de Almeida não partilha destas ideias. O que para ele parece ser importante não são os homens nem a cidade — são os edifícios, são os contratos e os estatutos, são as inaugurações, são as homenagens.
Ao contrário dos membros da Mesa, acho que Reinaldo Cardoso Correia de Almeida prestou um mau serviço à Misericórdia. Nessas páginas essa instituição parece morta — não há reflexos, não há pressões, não há necessidades. O ambiente faz lembrar o de um planeta ou o de um país onde uma instituição se confunde com a cidade — não há vida cá fora, a instituição não surge como uma resposta, as ideias lá dentro surgem (quando surgem) só por geração espontânea. Em suma, a Misericórdia é mostrada como uma instituição que não dialoga com a cidade.
Além disso, embora nas palavras introdutórias o autor diga estar interessado na "actividade da nossa Misericórdia nas suas diversas valências, desde a fundação até aos nossos dias" (p.13), das 200 páginas há umas 180 sobre o período posterior a 1900 contra umas escassas 20 sobre os quatrocentos anos anteriores. Este facto é reforçado pela periodização estabelecida: uma primeira época que se estende da fundação da Misericórdia à implantação da República (cerca de 400 anos), uma segunda que vai de 1910 a 1927, uma terceira de 1927 a 1957 e uma quarta época que vem de 1957 até ao presente (p.27)!
Por tudo isto, parece-me ser este livro quase de nulo interesse para a história de Viseu.
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Que não era esse o seu objectivo — pode-me responder Reinaldo Cardoso Correia de Almeida.
Tenho de aceitar.
De facto, escreve na "Apresentação" o actual provedor Manuel Augusto Engrácia Carrilho, a Mesa da Misericórdia "formula os mais ardentes votos para que o mesmo (trabalho) contribua para o despertar da consciência da Boa Gente de Viseu, reconhecendo os relevantes serviços prestados pela Santa Casa em prol do Bem Comum" (p .8).
Posso admitir ser este o objectivo deste livro — que assim se transforma ou se assume como um longo folheto publicitário. Mas há duas coisas que não percebo bem.
Primeira: a quem se destina? Quem é a "Boa Gente de Viseu"? Se ele falasse em gente de Viseu, ou em habitantes de Viseu, ou em viseenses, eu percebia. Mas "Boa Gente" (com maiúsculas)? Se há "Boa", admito eu, por oposição deve haver "Má Gente de Viseu". E, possivelmente, devem existir dois grupos intermédios: "boa gente" e "má gente" (com minúsculas). Levando mais longe esta dúvida", eu pergunto: que predicado é este, o ser "Boa Gente"? Adquire-se por nascença ou por compra? Cultiva-se ou é atribuído por alguém omnisciente?
Segunda: que novos caminhos da publicidade são estes? Será um livro com 200 páginas e que custa 700$00 o melhor modo de fazer publicidade? Ou, pelo menos, um bom modo?
A esse objectivo sugerido, o do folheto publicitário, acrescento, por minha conta, um outro: o do documento. Para o historiador marciano que no século XXV visitar este planeta, este livro será um importante testemunho de um determinado tipo de mentalidade. Como a classificará? — eis a minha última dúvida.
P.S. Já que, ao contrário do que se lê na capa (não digo no frontispício, que não existe), este livro não tem preocupações históricas, dispenso-me de comentar afirmações como a de que "a metodologia seguida obedece à finalidade de dar uma ideia, o mais possível exacta, precisa e objectiva da actividade da nossa Misericórdia (p. 13). Lamento que isso aconteça, a ausência de preocupações históricas. Ainda há pouco senti a falta de uma boa monografia sobre a Misericórdia (cf. António João de Carvalho da Cruz, " A cidade dos pobres. Viseu, 1766", in História, Lisboa, 87, 1986, pp. 64-74).
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Imagens da Misericórdia», Voz das
Beiras, 30, 23-5-1986, p. 5.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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