Memória de Manuel Joaquim
António João Cruz
Conheci-o, quer dizer: estive com ele algumas horas de uma tarde de sábado na sua casa, em frente à minha casa
Há quanto tempo foi, já não sei. Talvez tenha sido há dez anos, talvez tenha sido há oito. Talvez. Eu não sei.
Lembro-me de uma barba branca muito longa e de uns óculos de armação escura a sobressaírem do branco da pele e do branco dos cabelos. Sem os óculos, noutro ambiente, poderia ser um eremita — nele senti uma força sem limites, embora, modesto, ele nada fizesse para a mostrar, nele senti um mundo interior infinito, mal traduzido pelas mil recordações ao seu redor, dispostas com cuidado por uma sala cheia de livros. Não lhe faltava, sequer, a distância para o mundo, a distância para as pequenas grandes coisas de todos os dias, ao mesmo tempo banais e importantes.
Lembro-me de um ancião austero e tranquilo. A austeridade, isto é, a sobriedade era só por fora — talvez consequência da solidão, talvez consequência do esquecimento. Porque nele senti a ternura que só alguns velhos sabem ter, e a bondade.
Falou-me de livros, falou-me de trabalhos de uma vida inteira, falou-me de músicos. Coutou-me histórias de vidas de há quase cem anos, histórias verdadeiras. Mostrou-me algumas fotografias, alguns testemunhos e mostrou-me algumas pequenas homenagens de amigos (na memória ficou-me, apenas, a homenagem materializada numa fotografia autografada de Viana da Mota). Pôs os seus livros à disposição do garoto de 13 ou 14 anos que começava então a descobrir a história de Viseu. Só nesse sábado estive com ele. Mais tarde vim a encontrar alguns artigos seus quando folheava jornais de Viseu. Outros vi na "Beira Alta" sobre Estêvão Lopes Morago, sobre a música na Sé de Viseu, sobre alguns documentos, dos séculos XIII, XIV, XV e XVI existentes no Museu Grão Vasco. E, mais tarde ainda, vi nos alfarrabistas algumas obras suas, aquelas que mais contribuíram para que fosse considerado um grande musicólogo — resultado de pacientes pesquisas, sobretudo nos arquivos do Alentejo, anos a separar o trigo do joio, o trabalho de reconstruir a música antiga portuguesa.
Mas a imagem que primeiro me vem à memória é, no entanto, a de um vulto por detrás de uma janela fechada, um vulto misterioso uma imagem que, antes desse dia, vezes sem conta vi, quase todos os dias, manhã cedo.
Manuel Joaquim morreu em 28 de Março.
Mas na minha memória continua vivo. Para sempre.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Memória de Manuel Joaquim», Voz das
Beiras, 26, 24-4-1986, p. 5.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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