A cidade dos pobres. Viseu, 1766
António João Cruz
São escassos os testemunhos da pobreza, em Viseu, por alturas do
século XVIII os pobres não têm acesso
às deliberações camarárias nem,
tão-pouco, merecem referência nas crónicas da
cidade. Os documentos todos que deles falam em caso algum são
de sua lavra. Esses homens chegam até nós, apenas,
através do poder de que, em geral, foram marginais. A sua
história não a escreveram eles não a
podemos escrever nós, por isso. Podemos tentar reconstituir
ambientes, a sua vida quotidiana, os seus hábitos, mas
não poderemos nunca saber o que sentiam.
E a pobreza de tão reduzidas dimensões, como o
sugere a escassez dos testemunhos?
Cerca de 1630, Manuel Botelho Ribeiro Pereira, o primeiro cronista
de Viseu, refere que ao redor da cidade, não obstante a
fertilidade da natureza, não há homens ricos, pois os
lugares «são tão bastos que não há
de uns a outros quarto de légua»1.
Algum tempo depois, em finais desse século ou em
princípios do séc. XVIII, o bispo D. Jerónimo
Soares relata que «neste bispado há muita pobreza por ser
uma província mui fecunda de
povoações»2. Outros
testemunhos da pobreza indirectos, no entanto
são as dádivas e as doações generosas dos
prelados visienses, distribuições mais irregulares do
que regulares, de dinheiro ou de roupas, e que os biógrafos
não se cansam de louvar. Por exemplo, D. Fr. João de
Portugal, bispo de Viseu de 1626 a 1629, segundo o seu
biógrafo, «passava às mãos da
pobreza», em cada ano, 13 dos 16 mil cruzados que
constituíam as rendas do bispado. Para isso tinha pessoas de
confiança «que o avisavam assim do desamparo, como do
procedimento dos beneméritos daquele cuidado». Desse
modo, esse dinheiro «não chegava só aos mendigos,
a que de pão, e dinheiro se socorria à porta, mas
entrava pelas da viúva autorizada, da donzela recolhida, e do
honrado, a que o pejo prendia os passos, e tapava a boca, sentenciado
entre duas paredes ao martírio de sua
miséria»3.
Embora neste último testemunho se possa ver uma tentativa
de classificação, estes e outros testemunhos
idênticos pouco nos adiantam sobre os pobres e a pobreza. Pelas
quantias distribuídas, pode adivinhar-se a sua
importância4. Porém,
há um grande número de questões que fica por
responder. Por exemplo, geograficamente como se distribuem?
Limitam-se à cidade ou estendem-se pelos campos em redor?
Vivem sós ou acompanhados? Quando as formam, qual a
composição das famílias?
Um manuscrito que se guarda no Arquivo Distrital de Viseu, embora
não esclareça completamente estes problemas,
avança-nos, no entanto, algumas pistas e permite-nos levantar
algumas hipóteses5.
Trata-se de um inventário minucioso embora
não tanto como o desejaríamos realizado em 1766
pelo P.e Manuel Lopes de Almeida o que mais tarde
responderá ao questionário do P.e Luís Cardoso para o Dicionário
Geográfico.
Sobre o objectivo e sobre o modo como foi feito tal
inventário, diz a nota final: «Segundo o meu
conhecimento, e informações, que achei, são as
pessoas neste meu rol contidas, as mais necessitadas da minha
freguesia; e em que se acham as razões, e circunstâncias
de serem atendidas na repartição dos vestidos, que V.
S. pretende fazer.»
Nesse ano, em 1766, a Sé de Viseu está vacante: o
bispo D. Júlio Francisco de Oliveira morrera em Dezembro de
1765 e D. Francisco Mendo Trigoso só em Dezembro de 1770
fará a entrada solene em Viseu6.
Portanto, a repartição das roupas a que se refere o
inventário tem de ser da responsabilidade de outra personagem.
Para a sua identificação a referência a Vossa
Senhoria (abreviada por V. S.) na nota final não
ajuda muito. Depois da pragmática de 1739, as categorias de
pessoas que podem ser tratadas por Vossa Senhoria formam uma
lista muito longa; porém, pode notar-se que os membros do
Cabido têm direito a esse tratamento7.
Noutras ocasiões, seguindo exemplo dos bispos, o Cabido
procede a distribuições semelhantes. Por exemplo, na
Semana Santa de 1727 reparte 480 mil réis pelos pobres da
cidade8. Portanto, é
provável que por detrás de V. S. esteja o
Cabido.
A nota final do inventário deixa claro que não
é a toda a pobreza que ele se refere, mas apenas àquela
que se manifesta pela falta de vestuário. Por isso, num caso
ele refere a «precisão de saias, e mantilhas, para as
indispensáveis obrigações, que tem de ir
à missa, e confissão», noutros as necessidades que
têm, para «desobrigarem-se e confessarem-se pelo ano
adiante na Capela da Via Sacra», de «saias, e mantilhas,
que não têm», precisas também «para
virem a outras partes, e igrejas públicas para os referidos
ministérios», ou, noutro ainda, a «desnudez em que
se acha». No entanto, quase sempre são expressamente
referidas algumas qualidades, como a honestidade e o recolhimento, a
gravidade e a decência. Daqui se conclui que apenas um tipo
muito especial de pobreza está aqui inventariado. Estes pobres
que o P.e Manuel Lopes de Almeida refere não
são os pobres que em 1599, depois de terem sido tomadas
algumas medidas contra a peste, andavam a gritar pelas ruas da cidade
durante a noite e a assustar os homens bons9;
estes pobres participam nos mesmos actos religiosos que os homens
ricos, têm qualidades muito louváveis, não
perturbam a cidade.
Quais são, então, os motivos que, aos olhos do cura
da freguesia, os fazem ser os «pobres mais
necessitados»?
Para os 67 casos que enumera10 apenas
para metade dá alguma explicação. Dentro desse
grupo, 86% são doentes e/ou velhos (cf. tabela
1)11. Isto ajuda a compreender o
facto de esses pobres não se encontrarem completamente
à margem da sociedade.
Tabela 1
As causas da pobreza
Causa |
n.º |
% |
Órfãos |
4 |
11,4 |
Doentes |
18 |
51,4 |
Velhos |
12 |
34,3 |
Outros |
1 |
2,9 |
Total |
35 |
100 |
Estendendo ao séc. XVIII a classificação da
pobreza proposta por Michel Mollat para a Idade Média, os
pobres podem ser: a) assalariados, artesãos e camponeses de
pouco rendimento económico, que, frequentemente, têm a
sobrevivência ameaçada; b) doentes e inválidos;
c) vagabundos, criminosos, loucos e prostitutas. Os primeiros vivem
num limiar biológico, os segundos num limiar de incapacidade
física e os últimos num limiar de
associabilidade12. É claro,
são estes pobres que vivem no limiar da associabilidade que
marcadamente se encontram à margem da sociedade e em conflito
com ela. Ora, são precisamente eles que estão ausentes
deste inventário. (Aqueles 32 casos em que nada se diz sobre
as causas da pobreza correspondem aos pobres do primeiro grupo
definido?) Portanto, não há motivos para que os pobres
do rol do P.e Manuel Lopes de Almeida não tenham
normas de conduta aprovadas e estimadas pelos membros das classes
privilegiadas.
Não deixa de ser significativo que haja alguns casos em que
são mencionadas antigas profissões e outros, um
cirurgião «que se acha a aprender na Cidade da Guarda a
Boticário» e um órfão «que anda
aprendendo o ofício de sapateiro», em que, no momento em
que é feito o inventário, existe mesmo uma
profissão.
Para se tentar reforçar estas conclusões, podemos
avançar noutras direcções. Fernand Braudel notou
que a outra pobreza, a que o inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida não menciona, a pobreza violenta,
marginal, associada ao banditismo, se encontra preferencialmente nas
cidades e que muitas vezes tem origem num movimento
migratório13. E aqui que
sucede?
A importância da resposta a esta questão não
se esgota aqui, no facto de poder reforçar as
conclusões sobre o tipo de pobres mencionados pelo cura. Ela
advém, sobretudo, dos elementos que nos pode fornecer sobre a
geografia social de Viseu setecentista uma cidade que pode,
eventualmente, servir como exemplo de outras cidades do interior.
O inventário permitir conhecer a distribuição
geográfica dos pobres. Mas, para se avançar nessa
direcção, mais do que os valores absolutos são
importantes os valores relativos. Por isso, é
necessário saber qual é a distribuição
demográfica. Na ausência de outros dados, podem-se
comparar esses números dos pobres em 1766 com os
números de fogos e de habitantes em 1758, os números
que constam da resposta do P.e Nicolau António de
Figueiredo às perguntas do P.e Luís Cardoso
para o Dicionário Geográfico14 (tabela 2).
Tabela 2
A geografia dos pobres
Povoação |
Distância à cidade
(km) |
Pobres |
Fogos |
Habitan-tes |
100 x pobres /fogos
(%) |
100 x pobres /habit.
(%) |
Cidade |
0 |
27 |
100 |
516 |
27,0 |
5,2 |
Marzovelos |
1,15 |
3 |
18 |
58 |
16,7 |
5,2 |
Gumirães |
1,7 |
1 |
40 |
128 |
2,5 |
0,8 |
Laijas |
2,05 |
1 |
16 |
72 |
6,3 |
1,4 |
Ranhados |
2,2 |
11 |
89 |
251 |
12,4 |
4,4 |
Rio de Loba |
2,85 |
9 |
64 |
163 |
14,1 |
5,5 |
Cabanões |
3,5 |
2 |
11 |
43 |
18,2 |
4,7 |
Póvoa de Sobrinhos |
3,55 |
5 |
40 |
127 |
12,5 |
3,9 |
Barbeita |
5 |
3 |
54 |
154 |
5,6 |
1,9 |
Carvalhal |
- |
1 |
4 |
16 |
25,0 |
6,3 |
Alagoa |
- |
1 |
4 |
13 |
25,0 |
7,7 |
Fontaínhas |
- |
1 |
- |
- |
- |
- |
Soqueiro |
- |
2 |
- |
- |
- |
- |
Outras |
- |
0 |
20 |
- |
- |
- |
Total |
- |
67 |
460 |
1601 |
14,6 |
4,2 |
Embora
não haja uma concordância perfeita entre o número
de fogos e o de habitantes15 e embora as
distâncias que separam cada povoação da cidade
sejam um pouco artificiais mais do que as distâncias,
ainda por cima, medidas em linha recta num mapa, como se não
houvesse obstáculos que os caminhos rodeassem, seria
preferível indicarem-se tempos determinados na época
, o gráfico traçado com essas taxas de pobreza em
função da distância, quer as calculadas
relativamente ao número de fogos quer as calculadas sobre o
número de habitantes, é rico de
informações, ainda que inesperado.
O insólito vem da forma das curvas: de início com
valores elevados parra as taxas de pobreza, descem rapidamente
à medida que se afastam da cidade, atingindo valores
mínimos para uma distância de cerca de 1,5 km, logo
começam a crescer até distâncias que rondam os 3
km, a partir de onde recomeçam a diminuir. É como se a
quilómetro e meio da cidade houvesse uma barreira a
isolá-la, uma barreira de onde se não podem aproximar
os pobres estes pobres, pelo menos.
Por detrás destas curvas observa-se uma tendência: a
importância dos pobres é maior na cidade nessa
parte da cidade, pelo menos do que na zona rural. Essa
oposição nota-se melhor quando se olha para os
quantitativos globais (tabela 3): contra o
mundo rural, a cidade perde pelo dobro.
Tabela 3
A cidade contra o mundo rural: as oposições da
geografia social
Zona |
Pobres |
Fogos |
Habitantes |
100 x pobres /fogos
(%) |
100 x pobres /habit.
(%) |
Cidade |
27 |
100 |
516 |
27,0 |
5,2 |
Rural |
40 |
360 |
1085 |
11,1 |
3.7 |
Porém, um olhar mais atento nota que essa vitória do
mundo rural não é total: quer no primeiro
quilómetro à volta da cidade, quer na faixa com a mesma
espessura centrada no quilómetro 3, a taxa de pobreza
não se afasta de modo nítido dos valores que toma na
cidade. Portanto, não se pode dizer que estes pobres se
concentram na cidade como os pobres que Braudel encontrou em quase
todas as cidades do Ocidente. Assim, tem-se a
confirmação que se buscava para a
identificação dos pobres do inventário do
P.e Manuel Lopes de Almeida.
Não é, no entanto, uma confirmação com
garantia total. As curvas do gráfico são demasiado
rígidas, quase parecem artificiais.
Poder-se-ão explicar esses perfis tão estranhos, que
fazem lembrar dois líquidos que se não misturam? Antes
de se avançar qualquer hipótese, convém
investigar se os dados que constam desse inventário permitem
distinguir os pobres desses dois espaços que se parecem
ignorar.
De facto há algumas diferenças. Na zona definida
pela cidade e por Marzovelos a povoação que se
encontra a pouco mais de 1 km e que parece ser uma
continuação de Viseu (zona A), a
importância dos velhos e/ou doentes é bastante menor do
que na zona definida pelo espaço rural excluído de
Marzovelos (zona B): 73% contra 95% dos pobres (cf. tabela
4). São os velhos que dão origem a essa assimetria:
eles têm um peso significativamente maior na zona B. Maior
número de velhos, maior número de viúvos
naturalmente (cf. tabela 5). Mas uma outra
diferença se nota: a taxa de feminilidade (excluindo os
casados) entre estes pobres é maior na zona B (tabela
6).
Tabela 4
As oposições geográficas: as causas da
pobreza
Causa |
Zona A |
Zona B |
n.º |
% |
n.º |
% |
Órfãos |
3 |
20,0 |
1 |
5,0 |
Doentes |
8 |
53,3 |
10 |
50,0 |
Velhos |
3 |
20,0 |
9 |
45,0 |
Outros |
1 |
6,7 |
0 |
0 |
Total |
15 |
100 |
20 |
100 |
Tabela 5
As oposições geográficas: o estado
civil
Estado civil |
Zona A |
Zona B |
n.º |
% |
n.º |
% |
Solteiros |
6 |
42,9 |
4 |
25,0 |
Casados |
7 |
50,0 |
9 |
56,2 |
Viúvos |
1 |
7,1 |
3 |
18,8 |
Total |
14 |
100 |
16 |
100 |
Tabela 6
As oposições geográficas: homens e
mulheres
Sexo |
Zona A |
Zona B |
n.º |
% |
n.º |
% |
Homens |
11 |
47,8 |
12 |
42,9 |
Mulheres |
12 |
52,2 |
16 |
57,1 |
Total |
23 |
100 |
28 |
100 |
A elevada taxa de feminilidade na zona rural e a maior
importância dos velhos pode ser interpretada como
consequência de um movimento emigratório dentro desse
grupo de pobres16. Em contrapartida, a
proporção de homens e de mulheres na zona urbana
não dá mostras de idêntico movimento
Portanto, a elevada taxa de pobreza na zona rural pode, em parte,
ser explicada pelas famílias que ficaram desamparadas devido
à emigração. Pode-se notar que, frequentemente,
sobretudo nas zonas rurais, a emigração é
proporcional à densidade da população17.
Como no século XVIII a densidade demográfica deve
diminuir com a distância a Viseu, a curva da taxa de pobreza,
que a partir dos 3 km começa a diminuir, deve-se adaptar bem a
essa curva de densidade.
As povoações mais próximas da cidade, as que
ficam dentro de um círculo de 2 km de raio, estão menos
dependentes do acesso à terra e, portanto, da densidade
demográfica. É à volta de Viseu, mais do que na
própria cidade, que se encontram os artesãos18,
é numa aldeia a quilómetro e meio que se juntam os
moleiros que abastecem a cidade de pão19.
Por isso, se foi a pressão agrária que nos
espaços mais afastados levou os homens à
emigração, pode-se esperar que nestas aldeias junto
à cidade, os arrabaldes ou subúrbios, essa
emigração tenha uma importância consideravelmente
menor.
Embora deste modo se possa caracterizar e explicar a geografia
desta pobreza fora da cidade, sobre o que ocorre na cidade o
inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida nada
sugere.
Porém, ele permite abordar um outro aspecto: a
dimensão da família. Infelizmente, aqui os dados
são muito mais frágeis pois só raramente se pode
ter a certeza de que são mencionadas todas as pessoas
existentes em cada fogo.
Uma primeira impressão que se tira da leitura desse
inventário é a de que a grande maioria dos fogos
são constituídos por pessoas sós ou por um casal
com ou sem filhos. Portanto, segundo a tipologia apresentada por
Peter Laslett, tratam-se de fogos isolados ou de fogos compostos por
agregados familiares simples20.
Só em três casos são referidos expressamente
fogos com outra composição: num, são duas
órfãs «que vivem por esmola na companhia de Manuel
Leitão»; noutro, são duas irmãs solteiras,
talvez de idade, que residem juntas; no terceiro é Francisco
Coelho que «vive com sua mulher e quatro filhas, sogra,
cunhada». A dúvida que surge é a de se nos casos
em que uma só pessoa é referida se trata, na realidade,
de uma pessoa a viver só ou se com outras vive, não
sendo estas, no entanto, mencionadas no inventário.
Porém, essa dúvida pode-se estender aos outros casos:
quando outras pessoas são assinaladas num fogo podemos ter a
certeza de que mais ninguém aí mora? Na hipótese
de o inventário indicar, na realidade, todas as pessoas de
cada habitação, 81% dos fogos têm uma ou duas
pessoas, muito mais frequentemente uma do que duas (cf. tabela
7). Em média, são 1,75 habitantes por fogo.
Contudo, estes números são extremamente
frágeis.
Tabela 7
A dimensão dos fogos
Habitantes por fogo |
Número de fogos |
% |
1 |
31 |
59,2 |
2 |
11 |
21,2 |
3 |
8 |
15,4 |
6 |
1 |
1,9 |
8 |
1 |
1,9 |
Total |
52 |
100 |
Talvez um pouco mais seguros sejam os dados que o
inventário nos fornece sobre o número de filhos que
vivem com os pais. No total são 28 filhos para 12 fogos, ou
seja uma média de 2,3 filhos por fogo. Este número
está bastante próximo do número modal de 2
filhos por fogo. Convém, no entanto, notar que destes
cálculos estão excluídas as famílias sem
filhos.
Tabela 8
O número de filhos
Filhos por fogo |
Número de fogos |
1 |
2 |
2 |
7 |
4 |
3 |
Porém, é provável que estas não
alterem significativamente este quadro. Em 1950, no distrito de
Viseu, cerca de 12% dos casais não têm filhos e em 1970
são cerca de 10%21. No
século XVIII, os agregados familiares simples sem filhos
variam entre 29,2% no Norte (Mondim de Basto, 1760) e 14,4% no Sul
(Ourique, 1721), passando por valores intermédios no Ribatejo
(26,7% em Coruchéu em 1789 e 19,5% em Salvaterra de Magos em
1788)22. Fazendo-se uma
correcção ao valor médio de 2,3 filhos por
família de modo a se ter em conta as famílias sem
filhos, pode-se estimar que por cada uma existem em média ou
2,1 ou 1,9 ou 1,6 filhos, conforme se considere que casais sem filhos
correspondem, respectivamente a 10, 20 ou 30% do número de
famílias. Portanto, é provável que, na
realidade, o valor médio do número de filhos por casal
não esteja demasiadamente afastado do valor modal de 2.
Este número permite calcular como sendo 4 ou 3 o
número de pessoas por cada uma dessas casas, conforme se
encontre o pai e a mãe ou apenas um deles. A lista do P.e'
Manuel Lopes de Almeida e o que se sabe de outros
sítios23 leva a supor que esse
valor se deve aproximar mais de 3 do que de 4.
Assim, temos duas estimativas da dimensão do lar destes
pobres feitas por processos diferentes e que nos dão
resultados diferentes.
A que é feita a partir do número de pessoas
mencionadas para cada fogo dá-nos um valor médio de
1,75 habitantes por fogo. É bastante provável que ela
subestime o tamanho do lar pois há sempre a possibilidade de
não estarem referidas todas as pessoas de cada
habitação.
A outra estimativa dá-nos um pouco mais de 3 pessoas por
fogo. É certo que despreza todos os que não fazem parte
da família nuclear; porém, esquece igualmente todos os
fogos isolados que, sem dúvida, têm um peso muito maior.
Portanto, este valor deve ser superior à realidade.
Deste modo, tem-se um intervalo, limitado por 1,75 e por um valor
ligeiramente superior a 3, onde se deve situar o número de
habitantes por fogo.
No Antigo Regime, as casas dos pobres são aquelas onde
existe o menor número de filhos, pois filhos e riqueza
são dois termos que seguem um a par do outro24.
Como em Viseu no século XVIII o coeficiente entre habitantes e
fogo é, em média, um número igual ou um pouco
superior a 3,525, um coeficiente
diferencial, respeitante apenas aos pobres, deve ser inferior a este
valor. De facto, o intervalo atrás determinado está de
acordo com estas observações.
A taxa calculada para a pobreza a partir do inventário do
P.e Manuel Lopes de Almeida deve ficar algures entre o
valor mínimo de 4,2 e o valor máximo de 14,6%, que
correspondem às taxas calculadas, respectivamente, sobre o
número de habitantes e sobre o número de fogos. O
tamanho médio de cada lar, posteriormente calculado, permite
estreitar esse intervalo. Com um número médio de
pessoas por habitação que deve estar compreendido entre
1,75 e um valor um pouco superior a 3, digamos 3,2, essa taxa deve,
no mínimo estar entre 7,3% (4,2x1,75) e 13,4% (4,2x3,2) e, no
máximo ser de 14,6%. Portanto, é provável que
ronde os 10% ou um valor um pouco superior.
É claro que esse intervalo se refere apenas a uma parte da
pobreza, a dos homens e mulheres que, segundo a
classificação de Michel Mollat, vivem no limiar da
incapacidade física, embora talvez se estenda também,
embora parcialmente, aos que vivem no limiar biológico. Por
isso, a taxa total de pobreza terá de ser superior.
Por todas as cidades da Europa o número de pobres
representa, em média, entre 10 e 20% da
população total, seja em finais do século XV,
seja nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Porém, em
épocas de crise esse número facilmente duplica ou
triplica26. Em 1782, D. Luís
Ferrari de Mordau estima os pobres em Portugal em 5% da
população27. Em
comparação com o que parece acontecer em Viseu ou
nessas outras cidades, pode aparentar ser este um valor demasiado
baixo. Contudo, é preciso notar que, como dizia Henriques da
Silveira em 1789, é nas cidades e nas vilas que se
«entretêm grande número de ociosos, inimigos do
trabalho e inúteis para a cultura dos campos»28.
Certo é que nessa segunda metade do século XVIII
há em Viseu uma preocupação com esses homens que
vivem no limiar da incapacidade física. Além das
dádivas de dinheiro e de roupas, uma constante durante alguns
séculos, são nessa época tomadas algumas medidas
que têm como objectivo melhorarem a situação dos
doentes. Em 1758 o bispo D. Júlio Francisco de Oliveira
oferece-se para mandar reparar e alargar o hospital da
Misericórdia. Dois anos depois já se encontram
«prontas duas enfermarias para homens e mulheres com 24 lugares
cada uma, além das de doenças venéreas, e de uma
casa para Roda de enjeitados»29. Em
finais do século, o bispo D. Francisco Monteiro Pereira de
Azevedo lança a primeira pedra de um novo hospital, num
terreno doado à Misericórdia por um particular em
178630. Nesse edifício, onde em
1842 dão entrada os primeiros doentes, se encontra ainda hoje
o Hospital Distrital.
1 Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Dialogos Moraes e Políticos, [Viseu, 1955], p.
81.
2 «Descripção do
Bispado de Vizeu, e da sua Dioce-se», Arquivo Distrital de
Viseu, Cabido, m. 3, col. 125, fs. 2-2 vº.
3 Fr. Lucas de Santa Catarina,
«Quarta parte da história de S. Domingos», in Fr.
Luís de Sousa, História de S. Domingos, Porto,
Lello & Irmão, 2.º vol., 1977, p. 508.
4 No entanto, convém notar que
essas dádivas dos bispos se encontram por todo o lado. Cf.
Antonio Dominguez Ortiz, Las Clases Privilegiadas en el Antiguo
Régimen, Madrid, Istmo, 2.ª ed., 1979, pp.
230-231.
5 «Rol dos pobres mais necessitados
da freg.ª do P.e cura Manoel Lopes de Almeyda»,
1766, Arquivo Distrital de Viseu, Cabido, m. 3, col. 32, 5
fs.
6 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova
edição preparada e dirigida por Damião Peres,
Porto-Lisboa, Civilização, 2.º vol., 1968, p. 678
e 3.º vol., 1970, p. 591.
7 Luís F. Lindley Cintra,
«Origens do sistema de formas de tratamento do português
actual», in Sobre Formas de Tratamento na Língua
Portuguesa, Lisboa, Horizonte, 1972, p. 28 e p. 137.
8 Alexandre Alves, «Esculturas de
Laprade na diocese de Viseu», in Beira Alta, Viseu, XXXV,
4, 1976, p. 461.
9 Cf. Maximiano de Aragão, Viseu. Instituições Sociais, Lisboa, Seara Nova,
1936, pp. 213-214.
10 Cada um destes 67 casos refere-se
frequentemente a mais do que uma pessoa. No entanto, salvo duas
excepções, as pessoas que em cada caso vêm
mencionadas em primeiro lugar, têm, de um modo ou de outro, as
restantes a seu cargo. Portanto, as dificuldades e as necessidades
destas estão estreitamente ligadas às daquelas. Tal
é o caso, por exemplo, de mãe e filhos. Por isso, salvo
indicação em contrário, as tabelas referem-se
sempre à pessoa que primeiro vem referida.
11 Quando simultaneamente se fala em
velho e em doente, tomou-se apenas a idade como causa da pobreza pois
muitas dessas doenças devem, por certo, ser doenças
associadas à idade.
12 Cf. Augusto Santos Silva,
Eugénia Moura e Luís Alberto Alves, «Pobreza e
loucura na Idade Média», in História,
Lisboa, 11, 1979, p. 4.
13 Fernand Braudel, O
Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de
Filipe II, Lisboa, Dom Quixote, 2.º vol., 1984, pp. 96-116;
idem, Civilización Material y Capitalismo, Barcelona,
Labor, 1974, pp. 387-389.
14 «Viseu no Dicionário
Geográfico», in Beira Alta, Viseu, XXVI, 4, 1968,
pp. 433-438.
15 Este é um problema comum
à generalidade dos numeramentos anteriores aos primeiros
recenseamentos oficiais feitos em moldes modernos e que surge
sobretudo à escala local. Cf. Albert Silbert, Le Portugal
Méditenanéen à la Fin de 1Ancien
Régime. XVIIIe Début du
XIXe siècle. Contribution à 1histoire
agraire comparée, 2.ª ed., Lisboa, INIC, 1978,
1.º vol., pp. 113-115.
16 Cf. Joel Serrão. A
Emigração Portuguesa. Sondagem histórica,
Lisboa, Horizonte, 3.ª ed., 1977, pp. 119-123.
17 Vitorino Magalhães Godinho,
«Lémigration portugaise
(XVe-XXe siècles). Une constante
structurale et les réponses aux changements du monde», in Revista de História Económica e Social, Lisboa,
1, 1978, p. 24.
18 António João de
Carvalho da Cruz, «Os mestres artesãos de 1800: um
primeiro reconhecimento», in A Voz das Beiras, Viseu,
524, 13-12-1984; A. de Amorim Girão, Viseu. Estudo de uma
aglomeração urbana, Coimbra, Coimbra Editora, 1925,
pp. 55-56.
19 É da força e da
importância destes moleiros que nascem (no século XVII?)
as Cavalhadas de Vil de Moinhos, que ainda hoje se realizam. Cf.
Alberto Correia, «Cavalhadas de Vil de Moinhos, in Beira
Alta, Viseu, XXXVIII, 3, 1979, pp. 639-680.
20 Cf. Robert Rowland,
«Âncora e Montaria, 1827. Duas freguesias do Noroeste
segundo os livros de registo das Companhias de
Ordenanças», in Studium Generale. Estudos
Contemporâneos, Porto, 2-3, 1981, pp. 217-220.
21 Ana Margarida Nunes de Almeida, Comportamentos Demográficos e Estratégias Familiares
no Continente Português: 1900-1970, Lisboa, Instituto de
Ciências Sociais, 1984, p. 81.
22 Robert Rowland, «Sistemas
familiares e padrões demográficos em Portugal:
questões para uma investigação comparada»,
in Ler História, Lisboa, 3, 1984, p. 25; J. Manuel
Nazareth e Fernando de Sousa, «Aspectos
socio-demográficos de Salvaterra de Magos nos finais do
século XVIII», in Análise Social, Lisboa,
66, 1981, p. 363; idem, A Demografia Portuguesa em Finais do
Antigo Regime Aspectos socio-demográficos de
Coruche, Lisboa, Sá da Costa, 1983, p. 54.
23 Cf., por exemplo, Pierre Goubert, Cent Mille Provinciaux au XVIIe siècle. Beauvais
et le Beauvaisis de 1600 à 1730, Paris, Flammarion, 1977,
p. 286.
24 Peter Laslett, O Mundo que
Nós Perdemos, Lisboa, Cosmos, 1975, p. 109.
25 Cf. António João de
Carvalho da Cruz, «A demografia viseense (Sécs. XVI-XIX).
Introdução ao seu estudo», in Beira Alta,
Viseu, 4, 1984, p. 691.
26 Cario M. Cipolla, História
Económica da Europa Pré-Industrial, Lisboa,
Edições 70, 1984, pp. 26-30.
27 Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, 4.ª ed.,
Lisboa, Arcádia, 1980, p. 257.
28 Cit. em idem, ibidem, p.
275.
29 Maximiano de Aragão, Viseu.
Subsídios para a sua história desde fins do
século XV. Instituições Religiosas, Porto,
1928, pp. 243-244.
30 Maximiano de Aragão, Viseu.
Instituições Sociais, cit., pp. 35-44; A. de Lucena
e Vale, «O manuscrito sobre Viseu de Francisco Manuel
Correia», in Beira Alta, Viseu, XXXII, 1, 1974, pp.
14-15.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A
cidade dos pobres. Viseu, 1766»,
História, 87, 1986, pp. 64-74.
Artigo em formato pdf
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