Apontamentos para a
história de Viseu

A cidade dos pobres. Viseu, 1766

António João Cruz

São escassos os testemunhos da pobreza, em Viseu, por alturas do século XVIII – os pobres não têm acesso às deliberações camarárias nem, tão-pouco, merecem referência nas crónicas da cidade. Os documentos todos que deles falam em caso algum são de sua lavra. Esses homens chegam até nós, apenas, através do poder de que, em geral, foram marginais. A sua história não a escreveram eles – não a podemos escrever nós, por isso. Podemos tentar reconstituir ambientes, a sua vida quotidiana, os seus hábitos, mas não poderemos nunca saber o que sentiam.

E a pobreza de tão reduzidas dimensões, como o sugere a escassez dos testemunhos?

Cerca de 1630, Manuel Botelho Ribeiro Pereira, o primeiro cronista de Viseu, refere que ao redor da cidade, não obstante a fertilidade da natureza, não há homens ricos, pois os lugares «são tão bastos que não há de uns a outros quarto de légua»1. Algum tempo depois, em finais desse século ou em princípios do séc. XVIII, o bispo D. Jerónimo Soares relata que «neste bispado há muita pobreza por ser uma província mui fecunda de povoações»2. Outros testemunhos da pobreza – indirectos, no entanto – são as dádivas e as doações generosas dos prelados visienses, distribuições mais irregulares do que regulares, de dinheiro ou de roupas, e que os biógrafos não se cansam de louvar. Por exemplo, D. Fr. João de Portugal, bispo de Viseu de 1626 a 1629, segundo o seu biógrafo, «passava às mãos da pobreza», em cada ano, 13 dos 16 mil cruzados que constituíam as rendas do bispado. Para isso tinha pessoas de confiança «que o avisavam assim do desamparo, como do procedimento dos beneméritos daquele cuidado». Desse modo, esse dinheiro «não chegava só aos mendigos, a que de pão, e dinheiro se socorria à porta, mas entrava pelas da viúva autorizada, da donzela recolhida, e do honrado, a que o pejo prendia os passos, e tapava a boca, sentenciado entre duas paredes ao martírio de sua miséria»3.

Embora neste último testemunho se possa ver uma tentativa de classificação, estes e outros testemunhos idênticos pouco nos adiantam sobre os pobres e a pobreza. Pelas quantias distribuídas, pode adivinhar-se a sua importância4. Porém, há um grande número de questões que fica por responder. Por exemplo, geograficamente como se distribuem? Limitam-se à cidade ou estendem-se pelos campos em redor? Vivem sós ou acompanhados? Quando as formam, qual a composição das famílias?

Um manuscrito que se guarda no Arquivo Distrital de Viseu, embora não esclareça completamente estes problemas, avança-nos, no entanto, algumas pistas e permite-nos levantar algumas hipóteses5.

Trata-se de um inventário minucioso – embora não tanto como o desejaríamos – realizado em 1766 pelo P.e Manuel Lopes de Almeida – o que mais tarde responderá ao questionário do P.e Luís Cardoso para o Dicionário Geográfico.

Sobre o objectivo e sobre o modo como foi feito tal inventário, diz a nota final: «Segundo o meu conhecimento, e informações, que achei, são as pessoas neste meu rol contidas, as mais necessitadas da minha freguesia; e em que se acham as razões, e circunstâncias de serem atendidas na repartição dos vestidos, que V. S. pretende fazer.»

Nesse ano, em 1766, a Sé de Viseu está vacante: o bispo D. Júlio Francisco de Oliveira morrera em Dezembro de 1765 e D. Francisco Mendo Trigoso só em Dezembro de 1770 fará a entrada solene em Viseu6. Portanto, a repartição das roupas a que se refere o inventário tem de ser da responsabilidade de outra personagem. Para a sua identificação a referência a Vossa Senhoria (abreviada por V. S.) na nota final não ajuda muito. Depois da pragmática de 1739, as categorias de pessoas que podem ser tratadas por Vossa Senhoria formam uma lista muito longa; porém, pode notar-se que os membros do Cabido têm direito a esse tratamento7. Noutras ocasiões, seguindo exemplo dos bispos, o Cabido procede a distribuições semelhantes. Por exemplo, na Semana Santa de 1727 reparte 480 mil réis pelos pobres da cidade8. Portanto, é provável que por detrás de V. S. esteja o Cabido.

A nota final do inventário deixa claro que não é a toda a pobreza que ele se refere, mas apenas àquela que se manifesta pela falta de vestuário. Por isso, num caso ele refere a «precisão de saias, e mantilhas, para as indispensáveis obrigações, que tem de ir à missa, e confissão», noutros as necessidades que têm, para «desobrigarem-se e confessarem-se pelo ano adiante na Capela da Via Sacra», de «saias, e mantilhas, que não têm», precisas também «para virem a outras partes, e igrejas públicas para os referidos ministérios», ou, noutro ainda, a «desnudez em que se acha». No entanto, quase sempre são expressamente referidas algumas qualidades, como a honestidade e o recolhimento, a gravidade e a decência. Daqui se conclui que apenas um tipo muito especial de pobreza está aqui inventariado. Estes pobres que o P.e Manuel Lopes de Almeida refere não são os pobres que em 1599, depois de terem sido tomadas algumas medidas contra a peste, andavam a gritar pelas ruas da cidade durante a noite e a assustar os homens bons9; estes pobres participam nos mesmos actos religiosos que os homens ricos, têm qualidades muito louváveis, não perturbam a cidade.

Quais são, então, os motivos que, aos olhos do cura da freguesia, os fazem ser os «pobres mais necessitados»?

Para os 67 casos que enumera10 apenas para metade dá alguma explicação. Dentro desse grupo, 86% são doentes e/ou velhos (cf. tabela 1)11. Isto ajuda a compreender o facto de esses pobres não se encontrarem completamente à margem da sociedade.

Tabela 1
As causas da pobreza

Causa n.º %
Órfãos 4 11,4
Doentes 18 51,4
Velhos 12 34,3
Outros 1 2,9
Total 35 100

Estendendo ao séc. XVIII a classificação da pobreza proposta por Michel Mollat para a Idade Média, os pobres podem ser: a) assalariados, artesãos e camponeses de pouco rendimento económico, que, frequentemente, têm a sobrevivência ameaçada; b) doentes e inválidos; c) vagabundos, criminosos, loucos e prostitutas. Os primeiros vivem num limiar biológico, os segundos num limiar de incapacidade física e os últimos num limiar de associabilidade12. É claro, são estes pobres que vivem no limiar da associabilidade que marcadamente se encontram à margem da sociedade e em conflito com ela. Ora, são precisamente eles que estão ausentes deste inventário. (Aqueles 32 casos em que nada se diz sobre as causas da pobreza correspondem aos pobres do primeiro grupo definido?) Portanto, não há motivos para que os pobres do rol do P.e Manuel Lopes de Almeida não tenham normas de conduta aprovadas e estimadas pelos membros das classes privilegiadas.

Não deixa de ser significativo que haja alguns casos em que são mencionadas antigas profissões e outros, um cirurgião «que se acha a aprender na Cidade da Guarda a Boticário» e um órfão «que anda aprendendo o ofício de sapateiro», em que, no momento em que é feito o inventário, existe mesmo uma profissão.

Para se tentar reforçar estas conclusões, podemos avançar noutras direcções. Fernand Braudel notou que a outra pobreza, a que o inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida não menciona, a pobreza violenta, marginal, associada ao banditismo, se encontra preferencialmente nas cidades e que muitas vezes tem origem num movimento migratório13. E aqui que sucede?

A importância da resposta a esta questão não se esgota aqui, no facto de poder reforçar as conclusões sobre o tipo de pobres mencionados pelo cura. Ela advém, sobretudo, dos elementos que nos pode fornecer sobre a geografia social de Viseu setecentista – uma cidade que pode, eventualmente, servir como exemplo de outras cidades do interior.

O inventário permitir conhecer a distribuição geográfica dos pobres. Mas, para se avançar nessa direcção, mais do que os valores absolutos são importantes os valores relativos. Por isso, é necessário saber qual é a distribuição demográfica. Na ausência de outros dados, podem-se comparar esses números dos pobres em 1766 com os números de fogos e de habitantes em 1758, os números que constam da resposta do P.e Nicolau António de Figueiredo às perguntas do P.e Luís Cardoso para o Dicionário Geográfico14 (tabela 2).

Tabela 2
A geografia dos pobres

Povoação Distância à cidade
(km)
Pobres Fogos Habitan-tes 100 x pobres /fogos
(%)
100 x pobres /habit.
(%)
Cidade 0 27 100 516 27,0 5,2
Marzovelos 1,15 3 18 58 16,7 5,2
Gumirães 1,7 1 40 128 2,5 0,8
Laijas 2,05 1 16 72 6,3 1,4
Ranhados 2,2 11 89 251 12,4 4,4
Rio de Loba 2,85 9 64 163 14,1 5,5
Cabanões 3,5 2 11 43 18,2 4,7
Póvoa de Sobrinhos 3,55 5 40 127 12,5 3,9
Barbeita 5 3 54 154 5,6 1,9
Carvalhal - 1 4 16 25,0 6,3
Alagoa - 1 4 13 25,0 7,7
Fontaínhas - 1 - - - -
Soqueiro - 2 - - - -
Outras - 0 20 - - -
Total - 67 460 1601 14,6 4,2

Embora não haja uma concordância perfeita entre o número de fogos e o de habitantes15 e embora as distâncias que separam cada povoação da cidade sejam um pouco artificiais – mais do que as distâncias, ainda por cima, medidas em linha recta num mapa, como se não houvesse obstáculos que os caminhos rodeassem, seria preferível indicarem-se tempos determinados na época –, o gráfico traçado com essas taxas de pobreza em função da distância, quer as calculadas relativamente ao número de fogos quer as calculadas sobre o número de habitantes, é rico de informações, ainda que inesperado.

O insólito vem da forma das curvas: de início com valores elevados parra as taxas de pobreza, descem rapidamente à medida que se afastam da cidade, atingindo valores mínimos para uma distância de cerca de 1,5 km, logo começam a crescer até distâncias que rondam os 3 km, a partir de onde recomeçam a diminuir. É como se a quilómetro e meio da cidade houvesse uma barreira a isolá-la, uma barreira de onde se não podem aproximar os pobres – estes pobres, pelo menos.

Por detrás destas curvas observa-se uma tendência: a importância dos pobres é maior na cidade – nessa parte da cidade, pelo menos – do que na zona rural. Essa oposição nota-se melhor quando se olha para os quantitativos globais (tabela 3): contra o mundo rural, a cidade perde pelo dobro.

Tabela 3
A cidade contra o mundo rural: as oposições da geografia social

Zona Pobres Fogos Habitantes 100 x pobres /fogos
(%)
100 x pobres /habit.
(%)
Cidade 27 100 516 27,0 5,2
Rural 40 360 1085 11,1 3.7

Porém, um olhar mais atento nota que essa vitória do mundo rural não é total: quer no primeiro quilómetro à volta da cidade, quer na faixa com a mesma espessura centrada no quilómetro 3, a taxa de pobreza não se afasta de modo nítido dos valores que toma na cidade. Portanto, não se pode dizer que estes pobres se concentram na cidade como os pobres que Braudel encontrou em quase todas as cidades do Ocidente. Assim, tem-se a confirmação que se buscava para a identificação dos pobres do inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida.

Não é, no entanto, uma confirmação com garantia total. As curvas do gráfico são demasiado rígidas, quase parecem artificiais.

Poder-se-ão explicar esses perfis tão estranhos, que fazem lembrar dois líquidos que se não misturam? Antes de se avançar qualquer hipótese, convém investigar se os dados que constam desse inventário permitem distinguir os pobres desses dois espaços que se parecem ignorar.

De facto há algumas diferenças. Na zona definida pela cidade e por Marzovelos – a povoação que se encontra a pouco mais de 1 km e que parece ser uma continuação de Viseu – (zona A), a importância dos velhos e/ou doentes é bastante menor do que na zona definida pelo espaço rural excluído de Marzovelos (zona B): 73% contra 95% dos pobres (cf. tabela 4). São os velhos que dão origem a essa assimetria: eles têm um peso significativamente maior na zona B. Maior número de velhos, maior número de viúvos – naturalmente (cf. tabela 5). Mas uma outra diferença se nota: a taxa de feminilidade (excluindo os casados) entre estes pobres é maior na zona B (tabela 6).

Tabela 4
As oposições geográficas: as causas da pobreza

Causa Zona A Zona B
n.º % n.º %
Órfãos 3 20,0 1 5,0
Doentes 8 53,3 10 50,0
Velhos 3 20,0 9 45,0
Outros 1 6,7 0 0
Total 15 100 20 100

Tabela 5
As oposições geográficas: o estado civil

Estado civil Zona A Zona B
n.º % n.º %
Solteiros 6 42,9 4 25,0
Casados 7 50,0 9 56,2
Viúvos 1 7,1 3 18,8
Total 14 100 16 100

Tabela 6
As oposições geográficas: homens e mulheres

Sexo Zona A Zona B
n.º % n.º %
Homens 11 47,8 12 42,9
Mulheres 12 52,2 16 57,1
Total 23 100 28 100

A elevada taxa de feminilidade na zona rural e a maior importância dos velhos pode ser interpretada como consequência de um movimento emigratório dentro desse grupo de pobres16. Em contrapartida, a proporção de homens e de mulheres na zona urbana não dá mostras de idêntico movimento

Portanto, a elevada taxa de pobreza na zona rural pode, em parte, ser explicada pelas famílias que ficaram desamparadas devido à emigração. Pode-se notar que, frequentemente, sobretudo nas zonas rurais, a emigração é proporcional à densidade da população17. Como no século XVIII a densidade demográfica deve diminuir com a distância a Viseu, a curva da taxa de pobreza, que a partir dos 3 km começa a diminuir, deve-se adaptar bem a essa curva de densidade.

As povoações mais próximas da cidade, as que ficam dentro de um círculo de 2 km de raio, estão menos dependentes do acesso à terra e, portanto, da densidade demográfica. É à volta de Viseu, mais do que na própria cidade, que se encontram os artesãos18, é numa aldeia a quilómetro e meio que se juntam os moleiros que abastecem a cidade de pão19. Por isso, se foi a pressão agrária que nos espaços mais afastados levou os homens à emigração, pode-se esperar que nestas aldeias junto à cidade, os arrabaldes ou subúrbios, essa emigração tenha uma importância consideravelmente menor.

Embora deste modo se possa caracterizar e explicar a geografia desta pobreza fora da cidade, sobre o que ocorre na cidade o inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida nada sugere.

Porém, ele permite abordar um outro aspecto: a dimensão da família. Infelizmente, aqui os dados são muito mais frágeis pois só raramente se pode ter a certeza de que são mencionadas todas as pessoas existentes em cada fogo.

Uma primeira impressão que se tira da leitura desse inventário é a de que a grande maioria dos fogos são constituídos por pessoas sós ou por um casal com ou sem filhos. Portanto, segundo a tipologia apresentada por Peter Laslett, tratam-se de fogos isolados ou de fogos compostos por agregados familiares simples20. Só em três casos são referidos expressamente fogos com outra composição: num, são duas órfãs «que vivem por esmola na companhia de Manuel Leitão»; noutro, são duas irmãs solteiras, talvez de idade, que residem juntas; no terceiro é Francisco Coelho que «vive com sua mulher e quatro filhas, sogra, cunhada». A dúvida que surge é a de se nos casos em que uma só pessoa é referida se trata, na realidade, de uma pessoa a viver só ou se com outras vive, não sendo estas, no entanto, mencionadas no inventário. Porém, essa dúvida pode-se estender aos outros casos: quando outras pessoas são assinaladas num fogo podemos ter a certeza de que mais ninguém aí mora? Na hipótese de o inventário indicar, na realidade, todas as pessoas de cada habitação, 81% dos fogos têm uma ou duas pessoas, muito mais frequentemente uma do que duas (cf. tabela 7). Em média, são 1,75 habitantes por fogo. Contudo, estes números são extremamente frágeis.

Tabela 7
A dimensão dos fogos

Habitantes por fogo Número de fogos %
1 31 59,2
2 11 21,2
3 8 15,4
6 1 1,9
8 1 1,9
Total 52 100

 

Talvez um pouco mais seguros sejam os dados que o inventário nos fornece sobre o número de filhos que vivem com os pais. No total são 28 filhos para 12 fogos, ou seja uma média de 2,3 filhos por fogo. Este número está bastante próximo do número modal de 2 filhos por fogo. Convém, no entanto, notar que destes cálculos estão excluídas as famílias sem filhos.

Tabela 8
O número de filhos

Filhos por fogo Número de fogos
1 2
2 7
4 3

Porém, é provável que estas não alterem significativamente este quadro. Em 1950, no distrito de Viseu, cerca de 12% dos casais não têm filhos e em 1970 são cerca de 10%21. No século XVIII, os agregados familiares simples sem filhos variam entre 29,2% no Norte (Mondim de Basto, 1760) e 14,4% no Sul (Ourique, 1721), passando por valores intermédios no Ribatejo (26,7% em Coruchéu em 1789 e 19,5% em Salvaterra de Magos em 1788)22. Fazendo-se uma correcção ao valor médio de 2,3 filhos por família de modo a se ter em conta as famílias sem filhos, pode-se estimar que por cada uma existem em média ou 2,1 ou 1,9 ou 1,6 filhos, conforme se considere que casais sem filhos correspondem, respectivamente a 10, 20 ou 30% do número de famílias. Portanto, é provável que, na realidade, o valor médio do número de filhos por casal não esteja demasiadamente afastado do valor modal de 2.

Este número permite calcular como sendo 4 ou 3 o número de pessoas por cada uma dessas casas, conforme se encontre o pai e a mãe ou apenas um deles. A lista do P.e' Manuel Lopes de Almeida e o que se sabe de outros sítios23 leva a supor que esse valor se deve aproximar mais de 3 do que de 4.

Assim, temos duas estimativas da dimensão do lar destes pobres feitas por processos diferentes e que nos dão resultados diferentes.

A que é feita a partir do número de pessoas mencionadas para cada fogo dá-nos um valor médio de 1,75 habitantes por fogo. É bastante provável que ela subestime o tamanho do lar pois há sempre a possibilidade de não estarem referidas todas as pessoas de cada habitação.

A outra estimativa dá-nos um pouco mais de 3 pessoas por fogo. É certo que despreza todos os que não fazem parte da família nuclear; porém, esquece igualmente todos os fogos isolados que, sem dúvida, têm um peso muito maior. Portanto, este valor deve ser superior à realidade.

Deste modo, tem-se um intervalo, limitado por 1,75 e por um valor ligeiramente superior a 3, onde se deve situar o número de habitantes por fogo.

No Antigo Regime, as casas dos pobres são aquelas onde existe o menor número de filhos, pois filhos e riqueza são dois termos que seguem um a par do outro24. Como em Viseu no século XVIII o coeficiente entre habitantes e fogo é, em média, um número igual ou um pouco superior a 3,525, um coeficiente diferencial, respeitante apenas aos pobres, deve ser inferior a este valor. De facto, o intervalo atrás determinado está de acordo com estas observações.

A taxa calculada para a pobreza a partir do inventário do P.e Manuel Lopes de Almeida deve ficar algures entre o valor mínimo de 4,2 e o valor máximo de 14,6%, que correspondem às taxas calculadas, respectivamente, sobre o número de habitantes e sobre o número de fogos. O tamanho médio de cada lar, posteriormente calculado, permite estreitar esse intervalo. Com um número médio de pessoas por habitação que deve estar compreendido entre 1,75 e um valor um pouco superior a 3, digamos 3,2, essa taxa deve, no mínimo estar entre 7,3% (4,2x1,75) e 13,4% (4,2x3,2) e, no máximo ser de 14,6%. Portanto, é provável que ronde os 10% ou um valor um pouco superior.

É claro que esse intervalo se refere apenas a uma parte da pobreza, a dos homens e mulheres que, segundo a classificação de Michel Mollat, vivem no limiar da incapacidade física, embora talvez se estenda também, embora parcialmente, aos que vivem no limiar biológico. Por isso, a taxa total de pobreza terá de ser superior.

Por todas as cidades da Europa o número de pobres representa, em média, entre 10 e 20% da população total, seja em finais do século XV, seja nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Porém, em épocas de crise esse número facilmente duplica ou triplica26. Em 1782, D. Luís Ferrari de Mordau estima os pobres em Portugal em 5% da população27. Em comparação com o que parece acontecer em Viseu ou nessas outras cidades, pode aparentar ser este um valor demasiado baixo. Contudo, é preciso notar que, como dizia Henriques da Silveira em 1789, é nas cidades e nas vilas que se «entretêm grande número de ociosos, inimigos do trabalho e inúteis para a cultura dos campos»28.

Certo é que nessa segunda metade do século XVIII há em Viseu uma preocupação com esses homens que vivem no limiar da incapacidade física. Além das dádivas de dinheiro e de roupas, uma constante durante alguns séculos, são nessa época tomadas algumas medidas que têm como objectivo melhorarem a situação dos doentes. Em 1758 o bispo D. Júlio Francisco de Oliveira oferece-se para mandar reparar e alargar o hospital da Misericórdia. Dois anos depois já se encontram «prontas duas enfermarias para homens e mulheres com 24 lugares cada uma, além das de doenças venéreas, e de uma casa para Roda de enjeitados»29. Em finais do século, o bispo D. Francisco Monteiro Pereira de Azevedo lança a primeira pedra de um novo hospital, num terreno doado à Misericórdia por um particular em 178630. Nesse edifício, onde em 1842 dão entrada os primeiros doentes, se encontra ainda hoje o Hospital Distrital.

 

1 Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Dialogos Moraes e Políticos, [Viseu, 1955], p. 81.

2 «Descripção do Bispado de Vizeu, e da sua Dioce-se», Arquivo Distrital de Viseu, Cabido, m. 3, col. 125, fs. 2-2 vº.

3 Fr. Lucas de Santa Catarina, «Quarta parte da história de S. Domingos», in Fr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, Porto, Lello & Irmão, 2.º vol., 1977, p. 508.

4 No entanto, convém notar que essas dádivas dos bispos se encontram por todo o lado. Cf. Antonio Dominguez Ortiz, Las Clases Privilegiadas en el Antiguo Régimen, Madrid, Istmo, 2.ª ed., 1979, pp. 230-231.

5 «Rol dos pobres mais necessitados da freg.ª do P.e cura Manoel Lopes de Almeyda», 1766, Arquivo Distrital de Viseu, Cabido, m. 3, col. 32, 5 fs.

6 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova edição preparada e dirigida por Damião Peres, Porto-Lisboa, Civilização, 2.º vol., 1968, p. 678 e 3.º vol., 1970, p. 591.

7 Luís F. Lindley Cintra, «Origens do sistema de formas de tratamento do português actual», in Sobre Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, Lisboa, Horizonte, 1972, p. 28 e p. 137.

8 Alexandre Alves, «Esculturas de Laprade na diocese de Viseu», in Beira Alta, Viseu, XXXV, 4, 1976, p. 461.

9 Cf. Maximiano de Aragão, Viseu. Instituições Sociais, Lisboa, Seara Nova, 1936, pp. 213-214.

10 Cada um destes 67 casos refere-se frequentemente a mais do que uma pessoa. No entanto, salvo duas excepções, as pessoas que em cada caso vêm mencionadas em primeiro lugar, têm, de um modo ou de outro, as restantes a seu cargo. Portanto, as dificuldades e as necessidades destas estão estreitamente ligadas às daquelas. Tal é o caso, por exemplo, de mãe e filhos. Por isso, salvo indicação em contrário, as tabelas referem-se sempre à pessoa que primeiro vem referida.

11 Quando simultaneamente se fala em velho e em doente, tomou-se apenas a idade como causa da pobreza pois muitas dessas doenças devem, por certo, ser doenças associadas à idade.

12 Cf. Augusto Santos Silva, Eugénia Moura e Luís Alberto Alves, «Pobreza e loucura na Idade Média», in História, Lisboa, 11, 1979, p. 4.

13 Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Lisboa, Dom Quixote, 2.º vol., 1984, pp. 96-116; idem, Civilización Material y Capitalismo, Barcelona, Labor, 1974, pp. 387-389.

14 «Viseu no Dicionário Geográfico», in Beira Alta, Viseu, XXVI, 4, 1968, pp. 433-438.

15 Este é um problema comum à generalidade dos numeramentos anteriores aos primeiros recenseamentos oficiais feitos em moldes modernos e que surge sobretudo à escala local. Cf. Albert Silbert, Le Portugal Méditenanéen à la Fin de 1’Ancien Régime. XVIIIe – Début du XIXe siècle. Contribution à 1’histoire agraire comparée, 2.ª ed., Lisboa, INIC, 1978, 1.º vol., pp. 113-115.

16 Cf. Joel Serrão. A Emigração Portuguesa. Sondagem histórica, Lisboa, Horizonte, 3.ª ed., 1977, pp. 119-123.

17 Vitorino Magalhães Godinho, «L’émigration portugaise (XVe-XXe siècles). Une constante structurale et les réponses aux changements du monde», in Revista de História Económica e Social, Lisboa, 1, 1978, p. 24.

18 António João de Carvalho da Cruz, «Os mestres artesãos de 1800: um primeiro reconhecimento», in A Voz das Beiras, Viseu, 524, 13-12-1984; A. de Amorim Girão, Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana, Coimbra, Coimbra Editora, 1925, pp. 55-56.

19 É da força e da importância destes moleiros que nascem (no século XVII?) as Cavalhadas de Vil de Moinhos, que ainda hoje se realizam. Cf. Alberto Correia, «Cavalhadas de Vil de Moinhos, in Beira Alta, Viseu, XXXVIII, 3, 1979, pp. 639-680.

20 Cf. Robert Rowland, «Âncora e Montaria, 1827. Duas freguesias do Noroeste segundo os livros de registo das Companhias de Ordenanças», in Studium Generale. Estudos Contemporâneos, Porto, 2-3, 1981, pp. 217-220.

21 Ana Margarida Nunes de Almeida, Comportamentos Demográficos e Estratégias Familiares no Continente Português: 1900-1970, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1984, p. 81.

22 Robert Rowland, «Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal: questões para uma investigação comparada», in Ler História, Lisboa, 3, 1984, p. 25; J. Manuel Nazareth e Fernando de Sousa, «Aspectos socio-demográficos de Salvaterra de Magos nos finais do século XVIII», in Análise Social, Lisboa, 66, 1981, p. 363; idem, A Demografia Portuguesa em Finais do Antigo Regime – Aspectos socio-demográficos de Coruche, Lisboa, Sá da Costa, 1983, p. 54.

23 Cf., por exemplo, Pierre Goubert, Cent Mille Provinciaux au XVIIe siècle. Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, Paris, Flammarion, 1977, p. 286.

24 Peter Laslett, O Mundo que Nós Perdemos, Lisboa, Cosmos, 1975, p. 109.

25 Cf. António João de Carvalho da Cruz, «A demografia viseense (Sécs. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo», in Beira Alta, Viseu, 4, 1984, p. 691.

26 Cario M. Cipolla, História Económica da Europa Pré-Industrial, Lisboa, Edições 70, 1984, pp. 26-30.

27 Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, 4.ª ed., Lisboa, Arcádia, 1980, p. 257.

28 Cit. em idem, ibidem, p. 275.

29 Maximiano de Aragão, Viseu. Subsídios para a sua história desde fins do século XV. Instituições Religiosas, Porto, 1928, pp. 243-244.

30 Maximiano de Aragão, Viseu. Instituições Sociais, cit., pp. 35-44; A. de Lucena e Vale, «O manuscrito sobre Viseu de Francisco Manuel Correia», in Beira Alta, Viseu, XXXII, 1, 1974, pp. 14-15.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A cidade dos pobres. Viseu, 1766», História, 87, 1986, pp. 64-74.

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