Os
subúrbios
António João Cruz
"Todas as cidades do mundo, começando pelas do Ocidente, têm os seus subúrbios. Não há carvalho que se preze sem bolotas ao pé, nem cidades sem subúrbios. São manifestações de vigor, mesmo quando se trata de arrabaldes miseráveis, de bairros de lata. Mais vale um subúrbio leproso do que nada" (Fernand Braudel, Civilización Material y Capitalismo, Barcelona, Labor, 1974, p. 400).
Nas grandes cidades formam-nos uma multidão que ocorre atraída por um mundo novo, um mundo de esperança. Procuram um futuro, a estabilidade que a vida rural não proporciona. Nas cidades mais pequenas formam-nos, por vezes, um rosário de pequenas aldeias para onde se mudam as gentes da cidade à busca de espaço, de distinção e de sossego, gentes que nunca se misturam com os habitantes de viver tradicional que, ainda hoje, repetem, iguais, gestos com mil anos.
Outrora, quando os caminhos eram longos e os transportes terrivelmente lentos, os subúrbios destas pequenas cidades têm um outro aspecto, o que lhes advém do facto de alimentarem a cidade.
Umas vezes chamam-se arrabaldes, outras apenas arredores. Às vezes são também o termo ou o alfoz ou ainda outras coisas com saborosos nomes populares (cf. José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, reimpressão, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2.° vol., 1980, pp. 335-352).
Em regra, os arrabaldes referem-se a um espaço mais pequeno que o termo.
Em 1527, os núcleos populacionais do Cimo de Vila, da Regueira e do Arco, que saem das muralhas afonsinas, são considerados arrabaldes de Viseu. O seu peso demográfico é, no entanto, importante pois, no total, contribuem com 105 fogos para a população de Viseu contra os 354 da cidade de "muros adentro" (João Teles de Magalhães Colaço, "Cadastro da população do Reino( 1527)", in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2, 1934, p. 153). Camilo, que escreve em 1861 o que diz passar-se num dos primeiros anos desse século, faz Mariana dos arrabaldes de Viseu, ela que mora com o pai a um quarto de légua da cidade, talvez um quilómetro ou dois (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, ed. de Augusto C. Pires de Lima, Porto, Porto Editora, s. d., caps. IV, XVI, pp. 57, 197).
Em 1946 formam os arrabaldes de Viseu "um grande número de quintas, com recatadas residências, cercadas de pomares e vinhedos, produtores de excelentes frutos e vinhos de mesa", entre as quais a quinta de Marzovelos ("Passeios e excursões de Viseu", in Revista Turismo, Lisboa, 67, 1946). Esse parece ser o espaço a que Lucena e Vale chama de alfoz de Viseu, o espaço que se estende a Abraveses, Gumirães, Rio de Loba, Ranhados, Repeses, São Salvador, Paradinha, Orgens, Santo Estêvão, "lindas aldeias do arredor" (Alexandre de Lucena e Vale, Viseu Monumental e Artístico, 2.ª ed., Viseu, Junta Distrital, 1969, p. 155).
O facto de no século XVI os arrabaldes começarem logo à saída das muralhas, onde se suporia ser ainda cidade, não significa que os arrabaldes se fiquem por aí. No século seguinte, entre as fontes dos arrabaldes é mencionada, a do Carregal, uma povoação ou uma quinta que hoje ninguém sabe onde ficava mas que, por certo, não se encontrava juntinho da cidade (cf. Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955, p. 144).
Frequentemente, as corografias e os dicionários geográficos, sobretudo no século XVIII, referem a população da cidade e subúrbios quando pretendem dar uma ideia do tamanho de Viseu. Embora se não possa ter a certeza, é apenas uma hipótese razoável embora com bastantes probabilidades de não se afastar muito da realidade, esse espaço deve corresponder ao das freguesias da cidade e ao das freguesias da cidade e ao das cinco freguesias que hoje a cercam: Abraveses, Orgens, Ranhados, Rio de Loba, S. Salvador. Um círculo de uns 50 quilómetros quadrados, o primeiro círculo do modelo de Pierre Chaunu, o círculo que consome 90 % do que produz. Pode-se estimar que nesse círculo, esse espaço da cidade e subúrbios, 34 % dos habitantes se encontram em 1636 fora da cidade, 39 % em inícios do século XVIII, 48 % em 1767, 55 % em 1838 (António João de Carvalho da Cruz, "A demografia viseense (Sécs. XVI-XIX). Introdução ao seu estudo", in Beira Alta, Viseu, XLIII, 3, 1984. p. 494). Em 1864, números seguros, são 51 %, em 1900 52 %, em 1960 47 %, em 1970 41 %. Estes números mostram que, pelo menos até às primeiras décadas do século XIX. a importância dos subúrbios não pára de crescer, Só nos nossos dias ela parece ser posta em causa.
Nessa ocasião em que a importância dos subúrbios é maior, contribuem os subúrbios de modo significativo para o abastecimento da cidade. Ao abrir o século XIX, a 5 km de Viseu uma casa em cada três é uma casa de lavradores, uma casa que vive para o mercado — em grande parte o da cidade (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Oposições e continuidades da geografia social: os lavradores de Viseu em 1807", estudo em preparação). Essa pressão demográfica e essa luta pela posse útil da terra geram desigualdades sociais bastante importantes que. por sua vez, dão origem a um movimento emigratório bastante notável. Os homens partem, as mulheres e os filhos ficam. Muitas vezes ficam desamparados, sem a ajuda dos familiares, pobres eles também. Não têm sequer roupas decentes com que possam cumprir as obrigações religiosas (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Viseu, 1766: a cidade dos pobres", a publicar).
Nesse espaço vive também grande número de artesãos, quase ausentes da cidade (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Os mestres artesãos de 1800: um primeiro reconhecimento", in A Voz das Beiras, Viseu, 524, 13- 12- 1984), vivem os moleiros que abastecem a cidade de pão, em Vil de Moinhos, que, pelo seu número e pela sua força, dão origem (no século XVII?) às Cavalhadas (cf. Alberto Correia, "Cavalhadas de Vil de Moinhos", in Beira Alta, Viseu, XXXVIII, 3, 1979, pp. 639-680).
No século XX a dependência da cidade relativamente ao espaço que imediatamente a cerca diminui com os novos meios de transporte. O necessário à vida pode-se ir buscar a outros sítios, mais longe ou mais perto conforme as conveniências da economia e da política. Viseu deixa de corresponder à imagem do mercado continental que os movimentos dos preços nos séculos XVIII e XIX deixam entrever, com oscilações de grande amplitude (cf. António João de Carvalho da Cruz, "A demografia viseense", cit., in Beira Alta, XLIII, 4, 1984, pp. 674- 680). Essa imagem do mercado afastado dos outros mercados, a contar sobretudo consigo próprio, dependente dos lavradores da região, surge com grande nitidez, por exemplo, durante as invasões francesas: um ano depois de os franceses terem passado por Viseu ainda os preços vão em grande aumento (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Os franceses em Viseu: as consequências das invasões", a publicar). Testemunho desse mercado continental, testemunho dessa vida árdua e rigorosa, que outro se poderá encontrar melhor que o das pinturas de milagres, pinturas de homens que só podem contar com a ajuda dos Céus (cf. António João de Carvalho da Cruz, "Uma investigação por fazer. As 'pinturas de milagres", in História, Lisboa, 44, 1982, pp. 82- 89)?
No século XX, uma rede quase com a dimensão do mundo, embora mais não seja do que um pequeno pequeno grão de areia num imenso areal. Os subúrbios perdem essa importância económica, ganham uma importância social. Nos inícios da década de 60 começa um movimento em sentido inverso, da cidade para os subúrbios. As gentes ligadas ao sector terciário, sobretudo estas, constroem nesse espaço novas habitações. Sempre com rés-do-chão e 1" andar, rodeadas por um pequeno jardim-quintal, opõem-se às habitações mais modestas e mais sombrias dos antigos povoadores (António João de Carvalho da Cruz, Paradinha. Subsídios para uma monografia duma aldeia do termo de Viseu (Alguns aspectos económicos e sociais), trabalho dactilografado apresentado nos Jogos Florais da Feira Franca de 1981). Esse movimento, como o mostram os números dos recenseamentos, não consegue no entanto compensar a saída dos tradicionais habitantes dos subúrbios para as cidades, a de Viseu, sobretudo, as cidades maiores, que atraem a si todos os homens, Lisboa, Paris, um número sem fim.
Nessa entrada de uns e nessa saída dos outros esgotar-se-á a vida dos subúrbios, esses espaços sempre ligados à cidade?
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