O essencial sobre o fundamental: Os portugueses segundo Jorge Dias
António João Cruz
Como somos nós, os portugueses? O que nos caracteriza? Que traços se têm mantido constantes no nosso comportamento ao longo dos séculos? Estas são algumas das questões a que Jorge Dias tentou dar resposta em 1950 no I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em Washington, com uma comunicação sobre Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa. Agora, 35 anos depois, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda publica este estudo na sua colecção O Essencial. Um livrinho pequenino que cabe em qualquer bolso, 59 páginas, 100$00.
O tema é, sem dúvida, difícil e ambicioso. Jorge Dias, exemplo de consciência científica, não deixa de o dizer: «No estado actual dos nossos conhecimentos não é possível desenvolver satisfatoriamente o tema que me foi designado neste Colóquio. Estabelecer os elementos fundamentais duma cultura representa o fim máximo a que a etnologia (antropologia cultural) se propõe; é, digamos, a cúpula dum edifício que ainda está nos alicerces. A vastidão e a complexidade do assunto não permitiram sequer que nestes escassos meses se pudesse traçar uma visão panorâmica da cultura portuguesa com a solidez científica indispensável. Pode dizer-se que tal tema é a tarefa de toda a vida daqueles que se lhe dediquem». Por isso, esteve quase a desistir do intento. Não fugiu no entanto, pois achou que era tempo de «quebrar o encanto de penetrar num mundo que a todos atrai, mas onde ninguém ousa afoitamente entrar, pelos perigos que encerra».
O resultado foi este estudo a fervilhar de ideias, extremamente sugestivo ainda que discutível.
O modo de ser português, embora existam diferenças regionais, está segundo Jorge Dias, profundamente marcado pelo espaço geográfico: um país junto ao mar, no cruzamento de grandes rotas, Foi essa posição que nos permitiu começar as descobertas e construir o que foi um dos maiores impérios. Mas nada de equívocos: «às vezes, o que foram virtudes numa época podem ser defeitos noutra, e uma mutação de culturas pode alterar inteiramente os destinos às nações». Foi também essa posição que ajudou a moldar um homem que «é um misto de sonhador e de homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista». Como somos e de que gostamos? Eis a resposta: temos um gosto paradoxal, amorosos e bondosos sem sermos fracos, não gostamos de fazer sofrer mas quando feridos podemos ser violentos e cruéis, a nossa religião, ao contrario da espanhola, não é abstracta, nem mística, nem trágica, mas temos uma crença forte nos milagres e nas soluções milagrosas, temos enorme capacidade de adaptação, somos inibidos pelo sentimento do ridículo e medo da opinião alheia, temos um forte espírito crítico e trocista e uma ironia pungente mas falta-nos o humor.
Da combinação de factores diferentes resultou em nós um estado de alma sui generis a que chamamos saudade. Umas vezes é um sentimento poético de fundo amoroso ou religioso, outras é a ânsia permanente da distância. Umas vezes é a força activa que nos leva à realização das maiores empresas, outras morbidamente nos alimenta o espírito de glórias passadas. Estas duas facetas explicam os períodos de apogeu e de decadência da história portuguesa. Quando somos chamados a desempenhar qualquer papel importante cumprimos como poucos. Porém, quando é um papel medíocre que nos espera, esmorece logo a nossa actividade. Somos um povo que não sabe viver sem sonho e sem glória.
Em suma, somos um povo paradoxal e difícil de governar. Conforme o momento, os nossos defeitos podem ser as nossas virtudes e as virtudes os nossos defeitos.
É assim que somos. Pelo menos, é assim que Jorge Dias nos vê a nós, portugueses. E assim que este livro belo e pioneiro nos descreve, este livro que abriu caminho às interpretações de nós feitas, mais tarde, por Eduardo Lourenço e Vitorino Magalhães Godinho, entre outros.
Este livro, pequenino no formato mas grande pelo saber e pela reflexão que nos suscita, pode sem dúvida conduzir-nos a outras obras de maior fôlego escritas por Jorge Dias, como Vilarinho da Furna. Uma aldeia comunitária (1948) e Rio de Onor. Comunitarimos Agro-pastoril, há pouco reeditadas. Embora sejam dois estudos monográficos sobre comunidades rurais do norte do País, o saber de Jorge Dias, um mestre de onde nunca estão ausentes as preocupações pedagógicas, consegue facilmente ultrapassar todos esses obstáculos de que a especialização normalmente se rodeia. É que, como escreveu no Diário de Lisboa de 14-2-1968, «uma coisa é nascer-se antropólogo e outra estudar Antropologia».
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «O essencial sobre o fundamental: os portugueses segundo Jorge Dias», Voz das Beiras, 5 , 21-11-1985, p. 3.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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